Opinião

Moro faz com o processo penal o que ele quer e o que agrada à população

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17 de março de 2016, 15h56

Todos sabem o que aconteceu no Brasil nessa quarta-feira (16/3), coincidentemente no processo que tramita na 13ª Vara Federal de Curitiba, no bojo da chamada operação “lava jato", tendo à frente o juiz federal Sergio Fernando Moro.

Nesse processo, e com esse magistrado em particular, sempre é possível as mais teratológicas decisões, tomadas muitas delas ao arrepio das leis de processo e, especialmente, da Constituição Federal, sempre à luz dos holofotes da grande mídia e da inebriante repercussão "positiva" da opinião pública. Goza-se, ao que parece (Lacan explica!).

Nada obstante, ontem ele superou-se. Sergio Moro superou Sergio Moro. Vejamos. Ele determinou a interceptação telefônica do ex-presidente da República. Ok. Até então, ao que parece, sem problemas. Tudo em conformidade com a Lei 9.296/86 e com o artigo 5º, XII da Constituição Federal.

Ocorre que, durante o curso da interceptação telefônica, a presidente da República liga para o telefone que estava sob monitoramento judicial e ambos, presidente e ex-presidente, travam um diálogo, cujo conteúdo, do ponto de vista político, moral, ético, católico, protestante, filosófico etc., não nos interessa.

Surge, portanto, o que chamamos de encontro casual ou  fortuito (fenômeno da serendipidade): durante a interceptação telefônica é possível que fatos novos (não objetos da autorização judicial) ou nomes novos (não indicados pelo magistrado) possam vir a ser citados.

Nesses casos, discute-se doutrinariamente, e mesmo na jurisprudência, a validade probatória do que foi interceptado casualmente (ou mesmo como mero ato investigatório ou como uma notícia-crime).

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já enfrentou a matéria em algumas oportunidades, como no julgamento do Agravo de Instrumento 626.214, admitindo-se o uso de prova obtida casualmente em interceptação telefônica judicialmente autorizada. Em outro caso, julgando o Habeas Corpus 102.304, a suprema corte também entendeu que a prova foi obtida de forma legal. Nesse caso, nas escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal na linha de um corréu na mesma ação, com a devida autorização judicial, a polícia encontrou indícios da prática do crime previsto no artigo 333 do Código Penal, por parte dos dois. A relatora da ação, ministra Cármen Lúcia, rechaçou os argumentos da defesa. Para ela, a conversa foi interceptada quando já havia autorização para quebra do sigilo e, portanto, foram obtidas de forma totalmente lícita. Se durante uma interceptação se revela uma realidade fática nova, mesmo que sobre terceiros, explicou a ministra, nada impede que essas provas possam ser usadas para sustentar uma persecução penal. A ministra lembrou, inclusive, que a autorização de quebra de sigilo telefônico vale não só para o crime objeto do pedido, mas quaisquer outros. Se a interceptação foi autorizada, concluiu a ministra, ela é licita e captará toda a conversa licitamente.

A matéria também foi objeto de análise no Superior Tribunal de Justiça:

"O fato de elementos indiciários acerca da prática de crime surgirem no decorrer da execução de medida de quebra de sigilo bancário e fiscal determinada para apuração de outros crimes não impede, por si só, que os dados colhidos sejam utilizados para a averiguação da suposta prática daquele delito. Com efeito, pode ocorrer o que se chama de fenômeno da serendipidade, que consiste na descoberta fortuita de delitos que não são objeto da investigação. Precedentes citados: HC 187.189-SP, Sexta Turma, DJe 23/8/2013; e RHC 28.794-RJ, Quinta Turma, DJe 13/12/2012." (Habeas Corpus 282.096-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/4/2014). Também no Recurso em Habeas Corpus 50011/PE – 2014/0170879-8, autuado em 31/07/2014.

A questão, porém, é outra. Sucedeu que durante a interceptação telefônica judicialmente autorizada captou-se uma conversa do investigado com a presidente da República, detentora, pelo que sabemos e por enquanto, de prerrogativa de função junto ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, I, "b", da Constituição Federal.

Ora, o que deveria fazer o juiz Sergio Moro? Remeter imediatamente os autos, sob sigilo absoluto, ao presidente da suprema corte para encaminhamento ao procurador-geral da República, única autoridade no Brasil com atribuição inicial para avaliar, sob o prisma do Direito Penal, a conduta da chefe de governo. Sim, sob rigoroso sigilo. Obviamente que o segredo não aproveitaria o investigado, mas a presidente da República, não investigada e detentora de prerrogativa de foro. Isso era do interesse público: a preservação da autoridade da presidente da República (que não está imune à jurisdição penal, evidentemente)

Não o fazendo, ou melhor, fazendo rigorosamente o inverso, ou seja, levantando o sigilo anteriormente imposto à investigação e possibilitando a divulgação da conversa, incidiu o magistrado, ao menos em tese, no tipo penal previsto no artigo 4º, "h", da Lei 4.898/65, pois praticou "ato lesivo da honra" de pessoa física "sem competência legal". É crime! Ele é um juiz de Direito, conhece as leis da República e sabia o que estava fazendo. Agiu com dolo.

Para recordar, leia-se o artigo 5º X, da Constituição Federal: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Decididamente, estamos vivendo dias muito estranhos (para dizer o mínimo). É preciso atentarmos para o que Bobbio escreveu: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”[1].

Não é possível que assistamos passivamente a esse estado de coisas. Rasga-se solenemente a Constituição Federal todos os dias, especialmente na 13ª Vara Criminal de Curitiba e em Brasília. O juiz Sergio Moro faz do processo penal o que ele quer, o que ele acha que deve fazer, o que agrada à população e à grande mídia (que lhe premia, inclusive). Impressiona a sua ousadia. O seu destemor (nesse sentido). Não é possível que a cúpula do Poder Judiciário brasileiro, seja o Supremo Tribunal Federal, seja o Conselho Nacional de Justiça, não imponha um freio a esse pernóstico ativismo judicial curitibano.

Como pode um juiz de primeiro grau ter acesso a uma conversa privada de uma chefe de Estado e, simplesmente, com uma canetada espúria, divulgá-la? Em nome de quê? Do interesse público? Qual interesse público? Desestabilizar o governo, as instituições, a nação? Ele não tem responsabilidade? Havia outras autoridades na República com competência para fazê-lo. Não ele.  

Lembremos que Hitler praticou as suas atrocidades, em certo aspecto e para os seus propósitos, também em nome do interesse público e "los profesores de derecho desempeñaron un papel importante en el declive del derecho durante el tercer Reich. Brindaron un ropaje filosófico a los actos arbitrarios y los crímenes de los nazis, que sin esse disfraz se habrían reconocido claramente como actuaciones ilegítimas. Prácticamente no hubo desafuero alguno perpetrado por los nazis que no hubiese sido reconocido durante el régimen como 'supremamente justo' y que no hubiese sido defendido después de la guerra por los mismos académicos, valiéndose de los mismos dudosos argumentos en cuanto a su 'justificación' o incluso su 'conveniencia' desde un punto de vista jurídico"[2]. Será que não vamos aprender com a história?

Definitivamente, chegamos ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio Agamben:

"O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (…) O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo"[3].


[1] BOBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, páginas 1 e 5.
[2] MÜLLER, Ingo, Los Juristas del Horror, Bogotá: Inversiones Rosa Mística Ltda., 2009, p. 101.
[3] Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13. 

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