Olhar Econômico

Cartel internacional hard core é desafio a ser enfrentado

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

17 de março de 2016, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Muito embora o mundo seja dividido em Estados, as respectivas fronteiras não possuem o condão de impedir os fluxos econômicos e comerciais. Sendo relativa a soberania estatal nesse tocante, há fenômenos que perpassam os linhas limítrofes e atingem parcelas apreciáveis do globo. Um bom exemplo são os cartéis internacionais, relativamente aos quais, o ordenamento jurídico e o aparato jurisdicional, de um ou mesmo de vários Estados, revelam-se limitados ou impotentes; e que tem sido objetos do estudo por parte de organizações internacionais, com o intuito de entendê-los e para possibilitar o seu combate.

Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), um dos principais aspectos do direito antitruste deve ser a proibição dos cartéis ou acordos entre empresas concorrentes que impeçam a competição pela fixação de preços, divisão de mercados e tratamento indevido de empresas não partícipes de cartel. Cartel é uma maneira de comportamento coordenado entre empresas, que normalmente, seriam concorrentes. Há várias espécies de cartéis, no entanto discussões internacionais e estudos acadêmicos vem centrando-se nos cartéis hard core.

Jenny alerta os Estados para o crescimento de forças anticompetitivas transnacionais que, por meio de cartéis de importação, abusos nacionais de posição dominante, cartéis internacionais hard core e restrições verticais, podem prejudicar a liberalização do comércio; bem como de cartéis de exportação e fusões internacionais anti-concorrenciais, que impeçam ou dificultem os países comerciantes de usufruir dos benefícios do comércio.

Um dos consensos existentes em matéria de política de defesa da concorrência é a de que cartéis hard core são intrinsecamente negativos em nível mundial. Para Khemani et al. “esses tipos de acordos são amplamente reconhecidos como tentativas ostensivas de aplicar o comportamento monopolista de aumento de preços, acima de níveis competitivos por meio da redução da produção. Essa conduta resulta na má alocação de recursos e na redução do bem-estar econômico.”

A Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica (OCDE) distingue entre cartéis hard core, que implicam fixação de preços, restrição de produção, divisão de mercado, alocação de clientes e licitação irregular, que podem redundar na diminuição ou eliminação da concorrência; e cartéis que não prejudicam, significativamente, a concorrência, ou que causem efeitos benéficos de modo a compensar efeitos anticoncorrenciais. Esta última categoria de cartéis pode incluir pesquisa, desenvolvimento e acordos de especialização ou racionalização. Cartéis hard core distinguem-se nitidamente de joint ventures e de outros acordos inter-empresas que, envolvendo colaboração entre elas, tenham potencial de melhorar o bem estar social e não incluem “acordos, práticas concertadas, ou acordos que: (i) estejam razoavelmente relacionados à realização legal de redução de custos ou de eficiências de incremento de produção; (ii) estejam direta ou indiretamente excluídas da cobertura da lei de um país-membro; ou (iii) estejam autorizadas de acordo com aquelas leis.”

Cartéis hard core compreendem os de exportação ou de importação. Cartéis de importação tem por objetivo regular o preço ou algum outro aspecto de bens ou serviços que são importados para o mercado interno da firma participante. Um cartel de importação, exemplificativamente, pode controlar a demanda e o preço de insumos cruciais.

Cartéis de exportação são arranjos cooperativos entre firmas visando à comercialização de bens e serviços no exterior, a fim de entrar em novos mercados e expandir sua fatia em mercados existentes, ou fixar preços ou produção em mercados de exportação. Os cartéis de exportação variam em escopo e composição. Cartéis de exportação puros estão exclusivamente direcionados a mercados estrangeiros, ao passo que cartéis de exportação mistos podem restringir a concorrência no mercado interno do país exportador, assim como em mercados estrangeiros. Cartéis de exportação nacionais são constituídos por fornecedores de um país, enquanto que cartéis de exportação internacionais são compostos por fornecedores de vários países. Finalmente um cartel de exportação pode ser privado (firmas componentes do cartel são independentes do governo) ou público (o cartel é estabelecido pelo governo).

Cartéis hard core internacionais geralmente fixam preços, níveis de produção e outros elementos de competição em um grande número de mercados nacionais, incluindo-se, aí frequentemente, os países sede das empresas participantes. Contrastando com isso, cartéis de exportação podem se engajar nas mesmas atividades em mercados de exportação — e não em seus mercados internos. Ademais, cartéis de exportação estão isentos das leis nacionais de concorrência de vários países, ao passo que cartéis hard core, frequentemente, são ilegais e são, via de regra, praticados em segredo, tornando-se públicos, somente quando são investigados.

A maioria dos países considera que cartéis hard core minam os benefícios que deveriam advir da liberalização do comércio internacional. Por exemplo, cartéis internacionais hard core, alocando e distribuindo mercados nacionais entre empresas participantes, podem influir sobre o acesso ao mercado. Além disso, cartéis tal espécie de cartel impõe altos custos sobre as economias e os consumidores dos países, tanto desenvolvidos, quanto em desenvolvimento; além de impactarem, adversamente, nas perspectivas futuras destes últimos países.

Para organizações internacionais e acadêmicos, os cartéis de exportação possuem, potencialmente, efeito negativo sobre o próprio comércio. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) propalou que, na hipótese de um cartel de exportação que tenha resultado na discriminação entre o mercado interno e o de exportação, o cartel de exportação poderia ter efeito negativo sobre os demais membros da OMC. Inobstante isso, essa mesma organização observou que “já foi expressada a opinião de que a extensão do prejuízo causado por cartéis de exportação é menor do que se imagina, na medida em que nem todos os consórcios de exportação ou arranjos similares fixam preços ou exercem poder de mercado”.

A questão dos cartéis de exportação pode ser relacionada àquela dos cartéis de importação. Um cartel de importação pode ser utilizado para impor limites à importação, tais como a imposição voluntária de restrições sobre as exportações de um país para o outro. As organizações internacionais não parecem ter levado em conta o potencial efeito negativo sobre o comércio do cartel de importação, apesar da sugestão feita pelo Comitê Assessor para Políticas Internacionais de Concorrência dos Estados Unidos da América, de que práticas governamentais que tolerem condutas privadas anticoncorrenciais, assim como cartéis de importação, podem ser vistas como uma substituição, de fato ou de direito, dos tradicionais mecanismos de proteção a importações.

Tanto os setores públicos, quanto os privados tem realizado análises significativas, que identificam e comprovam as distorções dos cartéis de exportação sobre o comércio internacional. Em vários foros de discussão internacional, entre os quais a OCDE e a OMC, tem-se discutido maneiras de se aprimorar as leis nacionais e internacionais para enfrentar essa questão.

A OMC tem reconhecido a importância da inclusão de princípios concorrenciais nas tratativas de liberalização do comércio; tanto que os vem inserindo em muitos dos acordos sob sua égide.

Por outro lado, a OCDE afirma, que além dos óbvios efeitos negativos desse tipo de conduta anticoncorrencial, os cartéis hard core também não oferecem qualquer benefício social ou econômico legítimo, a justificar as perdas que poderiam gerar. Conclui a OCDE que “o prejuízo advindo de cartéis é ainda maior do que o anteriormente pensado e, numa estimativa conservadora, ultrapassa bilhões de dólares por ano”. Adverte também que “operadores de cartel esforçam-se grandemente para manter secretos os seus acordos, demonstrando assim plena consciência da ilegalidade de sua conduta deletéria”.

A OCDE condena os cartéis hard core, considerando-os nefasta violação da lei de concorrência, notando que eles aumentam preços e restringem a oferta, distorcem o comércio mundial, criam ineficiências e desperdiçam recursos, ao mesmo tempo em que reduzem o bem-estar do consumidor, além de infligir-lhes enormes prejuízos. Estima que os cartéis produzem, em média, uma sobre-cobrança que chega a 10% do comércio atingido e podem causar um prejuízo geral ao redor de 20% desse comércio. Observa também que é difícil medir as dimensões exatas dos efeitos prejudiciais dos cartéis. Isso não simplesmente pela ausência de provas de tais efeitos, que são condições exigidas pela maioria das leis de concorrência dos países, para levar a julgamento os cartéis hard core; mas também às dificuldades inerentes ao cálculo do prejuízo que podem impedir a imposição de sanções apropriadas.

O efeito destrutivo de cartéis em países em desenvolvimento é ainda mais preocupante. Informações disponíveis sobre as importações de países em desenvolvimento de dezesseis produtos afetados por cartéis internacionais “sugerem que o impacto no preço por cartéis, fornecedores desses produtos, variou entre 16 e 32 bilhões de dólares, somente com relação a tais produtos. Outro estudo que levou em conta dados de 14 de um total de 39 cartéis internacionais estima, conservadoramente, que perdas sofridas por países em desenvolvimento causadas por essa pequena amostragem chega a aproximadamente 1.7% do PIB desses países.

“Os cartéis internacionais, provavelmente, pouco respeitarão os bem delimitados territórios abrangidos por acordos bilaterais existentes, que hajam entre países. Eles tendem a agir estrategicamente e a destrinchar as brechas que possam existir entre acordos regionais e bilaterais relevantes”. Esses cartéis são frequentemente, caracterizados por fixarem preços internacionais, esquemas de alocação de mercados e consumidores, possuindo, geralmente, importantes alvos estrangeiros localizados em diferentes Estados. Os cartéis, por vezes, não aparecem no mercado interno e, assim, não necessitam realizar reuniões nos mercados base das empresas integrantes dos cartéis (e desse modo podem evitar a violação das leis nacionais de concorrência). Ademais, os cartéis estão, frequentemente, envolvidos com múltiplos produtos e engajados em grande volume de comércio, podendo influenciar o acesso ao mercado, principalmente pela alocação de mercados nacionais entre as empresas partícipes. [1]

A criação de medidas universais contra cartéis hard core implica primeiramente em se encontrar conceituação aceitável para essa espécie de cartel. A partir daí, poder-se-ia encetar a formulação de políticas e leis adequadas e respectivas estratégias de aplicação. Certamente, essa “legislação” deveria ser sustentada por penas substanciais, de multa e de privação de liberdade. Como os Estados são soberanos e inexiste “legislador universal”, as medidas contra os cartéis hard core, precisariam ser efetivadas por uma das seguintes maneiras, obviamente com diferentes alcances e efetividades: por tratados internacionais multilaterais, a serem ratificados e internalizados nos ordenamentos jurídicos internos dois países. Por projetos de lei modelo, elaborados internacionalmente, que seriam adotados pelos legislativos dos Estados. Ou, ao menos, regras assumidas por organizações internacionais que as “impusessem” aos seus Estados-membros, na medida de sua capacidade de persuasão, econômica ou jurídica.


1 Ver: Rodas, João Grandino e Fried, Jonathan T., Competition and Cartels in the Americas, Organization of American States General Secretariat, Washington, D.C., 2005.

Autores

  • Brave

    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!