Tribuna da Defensoria

Sem contato com o acusado, como o defensor público arrola testemunhas?

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

15 de março de 2016, 8h05

Uma das finalidades da reação defensiva à peça acusatória consiste em conferir ao acusado a possibilidade de especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, sob pena de preclusão. A experiência prática na Defensoria Pública já me demonstrou que em muitos casos simplesmente não conseguimos contato com o assistido, residindo aqui, portanto, um dos grandes problemas enfrentados na prática penal do defensor público: como arrolar testemunhas na resposta à acusação sem ter conhecimento dos seus nomes e endereços?[1].

Existem algumas táticas para superar a preclusão advertida pelo artigo 396-A, caput, do CPP. Vejamo-las.

A primeira tática, praticada por muitos defensores públicos, consiste em arrolar as mesmas testemunhas que o Ministério Público para, posteriormente, conseguindo algum contato com o acusado, peticionar requerendo a substituição de determinada(s) testemunha(s) por outra(s)[2]. Todavia, essa tática não me parece acertada nem muito mesmo segura, isso porque a substituição de testemunhas no processo penal se submete a um regime específico, exigindo que a parte motive a substituição, como, por exemplo, nos casos em que a testemunha não é encontrada ou morreu[3]. Nesse sentido, aliás, já decidiu o STF que “é cabível o indeferimento de pedido imotivado de substituição de testemunha, por não se enquadrar nem na redação anterior do artigo 397 do CPP (em vigor à época da decisão agravada), nem no artigo 408 do CPC (…)” (AP 470 AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. 09/09/2010)[4].

A segunda tática consiste em apresentar a reação defensiva à peça acusatória, veiculando um tópico com a justificativa da não indicação de rol de testemunhas naquela ocasião (contato não estabelecido com o assistido) e requerendo, portanto, a relativização do prazo para apresentar rol de testemunhas posteriormente. Recentemente, o STJ acolheu esta tese e decidiu que “não há preclusão se a parte, no momento da apresentação da defesa prévia, formula pedido de indicação de rol de testemunhas a posteriori; tampouco há violação do contraditório se o magistrado defere o pedido em busca da verdade real e diante da impossibilidade de contato do defensor público com o acusado” (REsp 1443533, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 23/06/2015). Considero essa tática acertada. Nesse sentido, a lição de Nereu José Giacomolli:

“Por isso, o prazo para ser oferecido o rol das testemunhas, quando justificado, é de ser relativizado, em face da ampla defesa. A ausência de comunicação entre o preso e o defensor nomeado afasta a preclusão temporal ao oferecimento do rol de testemunhas”[5].

Digamos, porém, que o juiz defere o pedido do defensor público e estabelece o prazo de mais 20 dias para que seja apresentado o rol de testemunhas, mas o defensor continua sem obter sucesso no contato com o seu assistido. Nesse caso, temos a terceira tática, que consiste na oitiva de testemunhas que o acusado levar para a audiência de instrução independentemente de intimação. Importante lembrar que a CADH prevê como garantia mínima “o direito da defesa inquirir as testemunhas presentes no tribunal (…)” (artigo 8.2.f), não podendo o magistrado, portanto, indeferir a oitiva de tais testemunhas. Recomenda-se que, nesse caso, o defensor público peticione no processo requerendo ao juiz para que no mandado de intimação do acusado para comparecimento na audiência conste expressamente o aviso de que ele, querendo, poderá levar testemunhas para serem ouvidas.

Ocorre que essa tática, embora acertada, também pode se revelar insuficiente para garantir o desempenho da atividade probatória pela defesa. Basta pensarmos no caso do réu preso. Devidamente intimado para a audiência, ainda que o juiz defira o pedido da defesa e faça constar no mandado o aviso ao acusado de que, querendo, ele poderá levar testemunhas para serem ouvidas na audiência, devemos reconhecer o quanto será improvável que o acusado, de dentro da prisão, se comunique com a testemunha para avisá-la sobre a audiência.

Surge nesse cenário, então, a quarta tática, que decorre de uma compreensão do caráter amplo da defesa, consistindo na possibilidade de o acusado que tem o primeiro contato com o defensor público na audiência, querendo, arrole testemunha naquela ocasião. Nesse sentido, o teor da Tese Institucional 18 da DPE/SP (2008): “O acusado que tem o primeiro contato com o defensor público na audiência de instrução, debates e julgamento possui o direito subjetivo a requerer a produção de provas neste ato processual, mesmo após decorrido o prazo para a apresentação de resposta escrita ou defesa preliminar”. Assim, também a lição de Guilherme Madeira, que compreende esse cenário a partir da sua tese de flexibilização do processo:

“(…) a flexibilização do processo permite que seja superado este dogma da preclusão. Na tese de doutorado que defendemos perante a Universidade de São Paulo sustentamos que a flexibilização permite aceitar que, caso o acusado somente tenha contato com seu defensor no dia da audiência (o que normalmente ocorre nos casos envolvendo defensores públicos) é possível que a testemunha seja arrolada na própria audiência”[6].

Esta quarta tática tem o mérito de evitar que o acusado seja prejudicado pela falha ou ineficiência do serviço prestado pela Defensoria Pública e somente deve ser utilizada em circunstâncias realmente excepcionais, tal como ocorre, por exemplo, quando o estabelecimento penal em que o assistido esteja recolhido fique muito distante de onde o defensor público desempenhe o seu trabalho, inviabilizando, consequentemente, a visita para colher informações sobre o caso. O defensor público que, podendo, não visita com antecedência o réu preso para indagá-lo sobre a existência de testemunhas que possam depor acerca dos fatos, além de correr o risco de ser instado para prestar esclarecimentos perante a Corregedoria da Defensoria a que pertence, ainda coloca em risco a procedência dessa tática, que eventualmente pode ser considerada um abuso do direito pelo julgador.

Pensando, ainda, em cercar o colega defensor público de todos os argumentos para oferecer uma defesa técnica efetiva para o seu assistido, surge uma quinta tática para o caso de indeferimento da anterior, que consiste na explicação para o acusado de que, conforme dispõe o artigo 189 do CPP, se ele negar a acusação, “poderá prestar esclarecimentos e indicar provas”, entendendo-se que as testemunhas obviamente se enquadram na definição de “provas”. Embora essa tática também seja adequada, o seu êxito infelizmente fica condicionado à percepção do juiz de que a testemunha indicada pode contribuir para o julgamento do caso.

Finalmente, com a exceção da primeira tática, considero todas as demais corretas, sendo que a opção entre utilizar uma ou algumas dessas táticas deverá ficar sob a apreciação de cada defensor público diante do caso concreto, tratando-se, portanto, de exercício da independência funcional. Em qualquer caso, porém, deve o defensor público pensar a defesa técnica a partir do atributo da efetividade, a ele incumbindo, portanto, o empenho para tornar realizável a atividade probatória defensiva, inclusive se valendo da impetração de Habeas Corpus para pugnar pela nulidade do processo ante à violação do direito à ampla defesa de seu assistido diante de eventual improcedência dos pleitos de flexibilização da regra da preclusão para arrolar testemunhas.

Táticas para superar a preclusão para arrolar testemunhas quando o defensor público não consegue contato prévio com o assistido

Tática Prós e contras

Tática 1: arrolar as mesmas testemunhas da acusação e posteriormente pedir a substituição

Tática inadequada e com grande potencial de ser indeferida, porquanto qualquer pedido de substituição de testemunhas deve ser motivado, conforme já decidiu o STF

Tática 2: apresentar a resposta à acusação, justificar que não consegue arrolar testemunhas na ocasião diante do contato não estabelecido com o assistido e requerer a relativização do prazo para apresentar o rol de testemunhas posteriormente

Tática adequada, que já conta, inclusive, com precedente favorável do STJ

Tática 3: oitiva de testemunhas que o acusado levar para a audiência de instrução independentemente de intimação, requerendo o defensor público que o acusado seja avisado desta possibilidade no mandado de intimação para a audiência

Tática adequada, que encontra respaldo normativo na CADH quando a Convenção prevê o direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal

Tática 4: sustentar a tese de que o acusado que tem o primeiro contato com o defensor público na audiência de instrução e julgamento possui o direito de requerer a produção de provas, como p. ex., a oitiva de testemunhas, neste ato processual

Tática adequada, que, no entanto, somente deve ser utilizada em circunstâncias excepcionais, porquanto expõe a deficiência estrutural da Defensoria Pública ou eventual falha do defensor público

Tática 5: explicar para o acusado que, conforme dispõe o art. 189 do CPP, se ele negar a acusação, “poderá prestar esclarecimentos e indicar provas”, entendendo-se que as testemunhas obviamente se enquadram na definição de “provas”

Tática adequada, embora o seu êxito infelizmente fique condicionado à percepção do juiz de que a testemunha indicada pode contribuir para o julgamento do caso

* Este texto foi extraído do livro que estou finalizando, com o título Defensoria Pública: Manual de Teoria e Prática Penal, a ser publicado em breve pelo Grupo Editorial Nacional.
 

[1] Este problema é praticamente eliminado com a audiência de custódia no que diz respeito ao réu preso.
[2] Neste sentido: “(…) merece destaque o fato do defensor público poder pleitear a substituição das testemunhas de defesa, cujo rol inicial apenas remetia àquelas arroladas pela acusação, mas cujo contato posterior com o acusado pôde permitir a colheita de nomes de pessoas que realmente possuam elementos defensivos relevantes” (RUGGERI RÉ, Aluísio Iunes Monti. Manual do Defensor Público: Teoria e Prática. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 331).
[3] Importante anotar que a Lei 11719/2008 curiosamente alterou a redação do artigo 397 do CPP, que previa a possibilidade de substituição de testemunhas. No entanto, conforme já decidiu o STF, “a ausência de previsão específica do Código de Processo Penal acerca do direito à substituição não pode ser interpretada como ‘silêncio eloquente’ do legislador”, permitindo-se, assim, a aplicação analógica do artigo 408 do CPC (AP 470 AgR-segundo, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. 23/10/2008).
[4] Registro o entendimento interessante, porém minoritário, de Franklyn Roger, que defende que “por esta razão, pouco importa que o acusado tenha negado a conduta (art. 189 do CPP) ou as testemunhas sejam falecidas, estejam enfermas ou tenham mudado de endereço (…). O direito à substituição é incondicionado e se extrai da interpretação da CADH (…)” (ALVES SILVA, Franklyn Roger. Indicação de Testemunhas de Defesa no Processo Penal: Arrole-se Agora ou Cale-se Para Sempre. Disponível em: http://arquivos.proderj.rj.gov.br/dpge/site/Upload/INDICACAO-TEST-DEF-PROC-PENAL.pdf Acessado no dia 9/3/2016).
[5] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 127. No mesmo sentido, o entendimento de Fauzi Hassan Choukr: “(…) embora seja essa defesa prévia revigorada o momento processual inicialmente adequado para a especificação das provas, não há neste momento o rigorismo processual civil a ditá-las como definitivamente preclusas em nome do conteúdo da ‘ampla defesa’ no processo penal, o que não significa a dispensa de justificar a prova requerida a destempo” (CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal Comentado: Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 780).
[6] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. São Paulo: RT, 2015, p. 709.

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    é defensor público federal, chefe da Defensoria Pública da União em Guarulhos (SP), especialista em Ciências Criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos". Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

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