Opinião

Relativizar o trânsito em julgado afeta todo o Direito

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12 de março de 2016, 10h00

Em 17 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 126.292, declarou ser possível o início da execução da pena quando confirmada, em segundo grau, decisão condenatória exarada em 1ª instância. Já tivemos oportunidade de abordar, em artigo recentemente publicado neste mesmo veículo de comunicação[1], o flagrante desrespeito à Constituição Federal cometido pela Corte responsável por ser a guardiã da Lei Maior quando do proferimento da aludida decisão.

Não fosse isso suficiente, ao desconstruir a jurisprudência até então consolidada em suas duas Turmas com competência para julgar matéria criminal e alijar o princípio da presunção de inocência do nosso ordenamento jurídico, o Supremo Tribunal Federal acabou, também, por criar celeumas que vão além daqueles isoladamente relacionados ao Processo Penal.

Vejamos:

Antes mesmo das alterações promovidas pela Lei 11.719/2008, o Código de Processo Penal já trazia, em seus artigos 63 e 64, a possibilidade da sentença penal condenatória transitada em julgado ser executada no juízo cível, momento no qual também ocorreria sua liquidação. Com o advento do aludido Diploma Legal, mais especificamente de seu artigo 387, inciso IV, foi imposta, ao Magistrado Criminal, a obrigação de, por ocasião da sentença, fixar o valor mínimo dos danos ocasionados pela prática do delito, “sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.[2]

Da mesma forma, o Código Penal, em seu artigo 50, afirma que a pena de multa somente deverá ser paga depois de transcorridos 10 dias do trânsito em julgado da sentença condenatória. Sendo assim, o que temos na sistemática penal e processual penal atual é que qualquer sentença condenatória, desde que efetivamente transitada em julgado, poderá servir como título executivo passível de ser executado na esfera cível, independentemente da fase de liquidação, justamente porque já haverá um valor mínimo arbitrado pelo Juízo Criminal.

Se o Supremo Tribunal Federal, quando a pauta é liberdade, um dos bens mais raros do ser humano, dispensa o trânsito em julgado para que tenha início o cumprimento da pena imposta ao réu, pergunta-se: em que momento, diante do atual entendimento jurisprudencial da Corte Máxima, deverá ocorrer a execução da sentença penal condenatória no âmbito cível, onde o que se está em jogo é, na enorme maioria das vezes, o patrimônio, bem jurídico consideravelmente menor do que o acima mencionado?

Mais difícil do que responder essa questão é compreender o raciocínio do Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando levado em conta que a edição, em dezembro de 2009, da Súmula Vinculante 24, a qual prevê que “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”, teve, como principal finalidade, evitar que contribuintes respondessem, ou até iniciassem o cumprimento de suas penas pela suposta prática de delitos contra a ordem tributária, antes do trânsito em julgado do procedimento administrativo fiscal.

É contraditório, para dizer o mínimo, que o Supremo Tribunal Federal exija o trânsito em julgado do procedimento administrativo para o início de tramitação de qualquer feito envolvendo crimes contra a ordem tributária e, ao mesmo tempo, entenda que a execução de sentença penal condenatória – o que para o réu é, sem sombra de  dúvidas, demasiadamente mais grave do que figurar como investigado/réu em inquérito policial ou ação penal –  possa ter início antes da interposição, perante os Tribunais Superiores, dos Recursos Especial e Extraordinário.

Não chega a surpreender, portanto, o fato de um magistrado do  Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em 18 de fevereiro de 2016, ou seja, no dia seguinte ao proferimento, por parte do Supremo Tribunal Federal, da decisão que ora se debate, ter determinado, nos autos da Ação Civil Pública 00507008320055020014, que a falida empresa de aviação Vasp quitasse, antes do trânsito em julgado do referido procedimento, uma dívida perante os seus então funcionários, utilizando, para tanto, a seguinte e perigosíssima fundamentação:  “Ora, se em esfera penal, em que o objeto é a própria liberdade da pessoa, é possível a execução da pena, com maior razão é legitima a execução total da sentença de segundo grau na esfera trabalhista, em que o executado fraudou o direito de mais de 6 mil trabalhadores”.[3]

Ao que tudo indica, teremos que nos acostumar com a possibilidade das sentenças penais condenatórias, uma vez confirmadas pelos Tribunais, serem imediatamente executadas na esfera cível. O argumento a ser utilizado pelos advogados para que isto aconteça será, por óbvio, a de que a própria Corte Suprema relativizou o conceito do que seria o trânsito em julgado, algo como “se pode prender antes, pode pagar antes também’’.

Como se vê, o Supremo Tribunal Federal, além de relativizar cláusulas pétreas insculpidas no texto Constitucional, ou seja, dispositivos que não podem ser alterados nem mesmo através de texto Proposta de Emenda à Constituição – o que, convenhamos, já é demasiadamente grave – , criou um cenário que possibilita, aos magistrados atuantes nas mais variadas searas que não somente a Penal, do que são exemplo a cível e a trabalhista, a exararem decisões que contrariam totalmente a lógica contida nos Diplomas Federais correlatos às referidas áreas.

Não restam dúvidas de que o Brasil é, no atual contexto, um frágil barco navegando em águas turbulentas, Há, como se sabe, uma crise generalizada nos poderes executivo, legislativo e judiciário.  Ao contrário do que possa parecer, os diversos direitos desrespeitados no curso da operação “lava jato”, da qual falo de forma isenta, já que não advogo para nenhum dos envolvidos, bem como as recentes decisões violadoras de Direitos Fundamentais proferidas pelos Tribunais Superiores, não deixa nem o mais otimista dos operadores do direito tranquilos quanto ao rumo das coisas.

A fim de que possamos refletir acerca dos principais pontos que foram abordados neste breve artigo que mais tem cara de desabafo, gostaria de transcrever algumas lúcidas palavras de ninguém mais, ninguém menos, do que o Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio, o qual, em seus mais de 25 anos na Suprema Corte, sempre se mostrou um incansável defensor dos Direitos e Garantias Fundamentais previstos na Carta Magna:

“Em quadra como a presente, cumpre atuar sem paixão, com serenidade, temperança e contenção. Deve-se guardar princípios e valores. Sei muito bem que a sociedade almeja e exige a correção de rumos, mas está há de acontecer sem açodamento. Não se avança culturalmente fechando a Lei das leis da República, que é a Constituição Federal, sob pena de vingar a lei do mais forte, o critério de plantão, a Babel. A prevalecer as pinceladas notadas, para não falar em traulitadas de toda ordem, onde vamos parar? Não sei, o horizonte é sombrio”.[4]


[1] Artigo intitulado “Supremo vai na contramão das garantias fundamentais”, publicado, em 19 de fevereiro de 2016, no sítio eletrônico Consultor Jurídico.

[2]Art.387.O juiz, ao proferir sentença condenatória:

(…) IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido

[3] Informações extraídas de matéria intitulada “Juiz do Trabalho segue STF e antecipa recursos trabalhadores da Vasp”, veiculada, em 24 de fevereiro de 2016, no sítio eletrônico www.conjur.com.br.

[4] Trecho do discurso proferido pelo Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio no evento de lançamento do livro “Direito Financeiro: na Jurisprudência do STF”, realizada em 24 de fevereiro de 2016.

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