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Especialista explica por que é um erro ignorar cena do crime

7 de março de 2016, 10h52

Por João Ozorio de Melo

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Um beco sem saída no centro da cidade, um bar em um bairro em decadência, um iate de luxo ancorado no Iate Club, a piscina da mansão com vista para o mar, uma suíte de um hotel cinco estrelas. Não importa quão miseráveis ou luxuosos sejam os cenários, duas coisas são certas em casos criminais: uma, todo e qualquer cenário recebe uma denominação comum, a “cena do crime”; outra, advogados e promotores dificilmente visitam a “cena do crime”.

Esse é, ou deveria ser, um dos locais das atividades de advogados e promotores que precedem o tribunal do júri nos EUA, de acordo com o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do Trial Theater. Eles olham fotos, examinam mapas das áreas, colhem descrições detalhadas de testemunhas. Mas raramente deixam o conforto de seus escritórios para examinar pessoalmente a famosa cena do crime.

Em outras áreas do Direito é a mesma coisa. O cenário está lá: os escritórios de uma grande corporação, o galpão da fábrica, a sala de cirurgia do hospital, os laboratórios de uma fabricante de remédios, o prédio em construção – existem inúmeros cenários que, em um processo civil ou trabalhista podem servir como “cenas do crime”, em que a maioria dos advogados americanos dificilmente bota os pés, diz Wilcox.

Obviamente, há explicações, que podem ou não se justificar. Nos EUA, particularmente, os advogados e promotores argumentam que 99% dos casos criminais terminam em acordos entre defesa e acusação. Assim, por que perder tempo com visitas à cena do crime, se não haverá julgamento, eles perguntam. E não as visitam nem mesmo quando há julgamento.

Além disso, a carga de trabalho pode ocupar praticamente todo o tempo de advogados e promotores — e especialmente de defensores públicos que, muitas vezes, mal têm tempo para examinar o processo.

“Mas, é uma pena”, diz Wilcox, para quem é preciso ouvir o que o cantor Jimmy Buffett diz em sua canção “Mañana”: “Não tente descrever o oceano, se você nunca o viu… Não se esqueça de que pode falar coisas erradas” [se você não viu com seus próprios olhos].

“O exame da cena do crime pode dar uma grande vantagem à parte que arruma tempo e disposição para realizar esse simples procedimento”, ele diz. Ele fornece aos profissionais detalhes preciosos para a inquirição de testemunhas e, mais que isso, para convencer os jurados nas alegações iniciais.

“Imagine que você tenha de descrever algum acontecimento em um cenário que lhe é habitual. Você irá simplesmente acessar sua memória visual e descrever com detalhes preciosos o que você viu (ou que você vê, quando descreve no presente). Se você examina a cena do crime, irá dar vida a seu relato, ao transferir as imagens captadas pelo ‘olho de sua mente’ para a mente dos jurados”, ele diz.

Inquirição direta
Na inquirição de sua própria testemunha, os detalhes irão tornar o testemunho muito mais convincente. Wilcox sugere que se compare duas inquirições diretas, em um caso de prisão de motorista embriagado. No primeiro, apenas o relatório policial e depoimento do acusado foram consultados:

P: Policial, a que distância você estava do carro do réu, quando ligou a sirene?

R: Cerca de dois carros atrás dele.

P: Onde você estava quando ligou a sirene?

R: Na Main Street, logo após o Dunkin' Donuts.

P: Quando você ligou a sirene, ele parou o carro?

R: Não. Ele só parou 230 metros depois.

P: Mas havia outros lugares que ele poderia ter parado com segurança?

R: Sim, havia. Mas ele não parou em nenhum deles.

Não há nada de errado com essa inquirição direta. Porém, a inquirição pode se tornar muito mais persuasiva, se o advogado ou promotor tem uma visão, em primeira mão, da cena do crime, como a seguir:

P: Policial, a que distância você estava do carro do réu, quando ligou a sirene?

R: Cerca de dois carros atrás dele.

P: Onde você estava quando ligou a sirene?

R: Na Main Street, logo após a Dunkin' Donuts.

P: Logo após a Dunkin' Donuts tem uma Waffle House, correto? É um lugar seguro para se parar o carro?

R: Sim.

P: Como a sirene já estava ligada, ele parou no estacionamento da Waffle House?

R: Não.

P: Logo depois há um restaurante Appleblee. É um lugar seguro, bem iluminado, para se parar?

R: Sim.

P: Ele parou no estacionamento do Applebee?

R: Não. Ele não parou.

P: Logo depois, tem o estacionamento da Bennigan’s. É um lugar seguro, bem iluminado, para se parar?

R: Sim.

P: Ele parou no estacionamento da Benningan?

R: Não. Ele continuou dirigindo.

P: E o estacionamento do McDonald’s, a seguir. É um lugar seguro, bem iluminado, para se parar?

R: Sim.

P: Ele parou no estacionamento do McDonald’s?

R: Não. Continuou dirigindo.

P: E o estacionamento seguinte, o da Bob’s Big Boy? É um lugar seguro, bem iluminado, para se parar?

R: Sim.

P: Ele parou no estacionamento do Bob’s Big Boy?

R: Não, ele passou direto.

P: A seguir há um posto de gasolina da Hess. Ele poderia ter parado lá?

R: Sim.

P: E ele parou?

R: Não.

P: Afinal, onde o réu finalmente parou seu carro?

R: No estacionamento da Miller’s Pub, cerca de 230 metros depois que liguei a sirene.

Com tantos detalhes, os jurados construíram a cena toda em suas mentes. Não há falhas, não há buracos a serem preenchidos na história resultante da inquirição direta.

Inquirição cruzada
Na inquirição da testemunha da outra parte, o exame criterioso da “cena do crime” irá fornecer os detalhes preciosos que irão permitir a elaboração de perguntas mais inteligentes e, possivelmente, “desmontar” o testemunho da outra parte.

Isso fica particularmente fácil, quando a outra parte (advogado ou promotor) não examinou a cena do crime, preferindo confiar em informações de segunda mão. Porém, só visitando a cena do crime é possível descobrir pistas que outras pessoas podem não perceber ou não reconhecer como importantes.

Veja esse exemplo de inquirição cruzada “letal”, segundo Wilcox, de uma testemunha que poderia complicar a vida de um réu na inquirição direta (só perguntas que induzem a resposta “sim”):

— Você disse que estava sentado no Starbucks, às 16h25, quando olhou lá fora pela janela e viu meu cliente, Money Richpockets, avançar o sinal vermelho e atropelar seu melhor amigo, Harvey Deadbeat, correto?

— O dia estava claro, não estava?

— Nenhuma nuvem no céu, certo?

— A essa hora, o sol brilhava forte do Oeste para o Leste, correto?

— Isso explica porque você disse na inquirição direta que pôde ver claramente o acidente. Afinal, o sol brilhava por trás de você, quando olhou pela janela, não é verdade?

— Do outro lado da rua, bem em frente ao Starbucks, tem uma loja de vidros, não tem?

— A loja de vidros tem uma grande janela espelhada na fachada frontal, não é mesmo?

— Das 15h50 até às 16h45, o sol bate diretamente na janela espelhada da loja, não é?

— Nesse lapso de tempo, a luz do sol reflete diretamente no Starbucks, cegando, de certa forma, os frequentadores, correto?

— Você não sabe dizer… mas você observou que, nesse lapso de tempo, os funcionários do Starbucks fecham as cortinas das janelas, porque a luz do sol, além de refletir diretamente nos olhos dos fregueses, reflete nas máquinas de fazer café, o que piora a situação?

Só um exame criterioso da “cena do crime” e seus arredores, por volta do “horário do crime”, pode fornecer detalhes tão decisivos, como a participação do sol e das máquinas de fazer café, no destino do julgamento e do cliente do advogado.