Opinião

Pacote anticorrupção do MPF enfrenta risco do canto das sereias

Autor

  • Djefferson Amadeus

    é advogado mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU).

5 de março de 2016, 11h44

Acabo de saber que o pacote anticorrupção do Ministério Público Federal atingiu 1,5 milhão de assinaturas, o que viabilizaria a apresentação de projeto de lei de iniciativa popular ao Congresso Nacional.[1] Em tempos de autoritarismo, o projeto ganhou – e vem ganhando – apoio da “opinião pública(da), mormente após a operação “lava jato”. Mas, mais do que isso, o projeto traz à tona um dilema fundamental representado pela discórdia entre a política majoritária e os anteparos previstos na Constituição.

É dizer: pode um marco constitucional, que foi escrito num determinado contexto histórico, exercer tão grande poder sobre nossas vidas atuais? Por que uma nação que fundamenta a legalidade no consentimento dos governados decidiria constituir sua vida política mediante um compromisso com um pacto/acordo original estruturado deliberadamente para impedir mudanças?[2]

Para os fins deste texto, interessa-me, pois, a defesa das garantias previstas na Constituição. Portanto, contra o pacote “anticorrupção” apresentado pelo MPF e, principalmente contra o apoio manifestado por boa parte da população ao pacote, invocarei a Odisseia, de Homero. Com isso, pretendo deixar claro que minha posição objetiva proteger, antes de tudo – e isso não é uma ironia –, àqueles que defendem o pacote punitivista. Dito de outro modo: para que não bebam do próprio veneno oriundo de sua sanha punitivista, invoco a Constituição contra a bondade dos bons (Agostinho Ramalho). Pois bem.

Como é sabido, na Odisseia, Ulisses, durante seu regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria uma provocação irresistível: o “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviá-lo-ia de seu objetivo e o conduziria para ser devorado pelas sereias. Ulisses, então – sabendo que não resistiria ao canto – pediu para que os marinheiros o amarrassem e não o obedecessem (mesmo que ele desse uma ordem paro soltá-lo).[3] Claro: como Ulisses sabia que não resistiria ao canto – porquanto este era extremamente sedutor – ele criou uma autoproteção.

Pois assim são as Constituições, conforme sempre asseverou Streck, isto é: elas funcionam como as correntes de Ulisses, criando algumas restrições – as cláusulas pétreas – para não sucumbir às eventuais maiorias que possam surgir. É neste sentido que me aproprio da metáfora do canto das sereias para, diversamente do que acaba de ser dito, emprestar-lhe uma nova leitura.

Explico: se o canto das sereias acabou sendo consagrado como o fascínio diante de um canto que, quando escutado, nos atraía como chamado, para logo sermos devorados pela sereia que cantava, então indago: o que aconteceria se a sereia ouvisse o seu próprio canto? Respondo: escutando a si mesma a sereia acabaria devorada… por si mesma, numa espécie de autoantropofagia.

Pois é exatamente isso que está acontecendo com o deputado Fernando Capez (PSDB), que foi citado em um esquema de propinas relacionado à merenda escolar:[4] ele está sendo devorado por si mesmo; por seu próprio canto! Afinal, quando ele (imerso no paradigma da filosofia da consciência) escreveu nos seus livros de concurso público adotados pela maioria dos juízes e promotores, no Brasil, que o juiz, no processo penal, “tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos”,[5] ele “ensinou” aos juízes do seu caso que estes deveriam investigá-lo, não se conformando com a “verdade formal” constante nos autos. Pois é. Agora Capez está sendo devorado pelo canto que ele criou. Sua “doutrina” o condenará sem direito a nenhuma garantia processual.

E o mesmo pretende, diga-se de passagem, o Ministério Público Federal com seu pacote anticorrupção. O interessante é que, no limite, não seria disparatado supor que, se o pacote anticorrupção já tivesse sido aprovado, o MPF protagonizaria como um dos primeiros a sofrer os impactos de sua própria medida, porque, ao deixar de fora trecho relevante de delação que afastou o envolvimento de Marcelo Odebrecht, na “lava jato”,[6] o Ministério Público se comportou de forma não condizente com a sua importância institucional. Dito de outro modo: não é isso que a sociedade espera de um órgão incumbindo de ser o “fiscal da lei”! Entristece a República quando se vê a atuação do MP nos moldes da operação “lava jato”.

Por isso, não tenho dúvida em afirmar que, enquanto a discussão sobre os paradigmas não assumir um papel de destaque nas discussões jurídicas, ficaremos sem solução aparente. Ora, no paradigma do Estado Democrático de Direito, o Ministério Público (não mais) formula a denúncia para saber o que o juiz tem a dizer sobre o caso; e tampouco a defesa elabora seus argumentos para saber o que o juiz tem a dizer sobre o caso dela. Ou seja: em um Estado Democrático de Direito, como é o nosso, o juiz está ali para saber o que o direito tem a dizer sobre os argumentos levantados pelas partes (estas, sim, as verdadeiras protagonistas do processo).

De tudo o que foi exposto, conclui-se que, num Estado Democrático de Direito, as partes (e não mais o juiz) assumem o papel de protagonistas do processo, de modo que se faz mister a adoção de correntes processuais comparticipativas e policêntricas (Nunes)[7], bem como a superação da filosofia da consciência e o reconhecimento do sistema acusatório como um imperativo constitucional (Streck),[8] porque, a partir deste paradigma, não é mais possível que o juiz tenha a gestão da prova (Coutinho).[9]

Por isso não basta à presunção de inocência, como bem diz Coutinho, a mera referência constitucional, como se fosse um poema; belo de ser lido, mas difícil de ser colocado em prática.[10] Há muito se sabe disso – ou devia sabê-lo – mas não é o que se passa (o STF está aí – vivo – para demonstrar). Então, de uma vez por todas, guardemos o seguinte: a presunção de inocência e o devido processo legal são como a máquina de raio-x dos aeroportos, isto é: mesmo que se cogite (e até se tenha a certeza) de que a velhinha que está atrasada não é uma terrorista, ainda assim ela terá que passar na máquina do raio-x, como diz Streck: mesmo que o custo disso seja a perda do seu voo!

Assim também é o processo. É dizer: mesmo que alguém (supostamente) tenha desviado dinheiro da merenda de uma escola, ainda assim ele deverá ser submetido ao devido (processo) legal. Por quê? Porque isso é uma exigência da democracia. Uma questão de princípio[11], diria Dworkin. Como o personagem Coronel Vitorino, do Romance Fogo Morto, de Lins do Rego, tão citado por Streck em seus textos. “Ele lutou contra os policiais que agiram arbitrariamente contra o seu maior inimigo. E este lhe perguntou: Por quê? Ele respondeu: porque sou contra injustiças, mesmo contra meu maior inimigo.”[12] Poderia, claro, ser mera retórica, mas não é; trata-se, antes de tudo, da defesa dos princípios da autonomia do direito e da democracia processual.

Numa palavra final: se o réu é acusado de corrupção; e tem direito de responder ao processo em liberdade, mas o juiz do caso compartilha a ideologia de um partido político diverso do que o réu faz parte (mesmo assim!), ele terá que decidir com responsabilidade política, é dizer: embora as suas pulsões queiram satisfação e, por isso, não se preocupam com as “construções racionais,[13] o juiz não poderá aliviar a sua consciência e tampouco moralizar o direito. Então, como diz Streck, “contra tudo e contra todos” (e por que não: até contra ele mesmo) o juiz deverá deixar que o réu responda ao processo em liberdade, ou seja: “se o direito do réu existe e está comprovado, deve conceder o habeas corpus ou absolver, mesmo que, internamente, pense que o acusado deva ser fritado no inferno.”[14]

Há de se concluir, porque já se foi longe para as singelas pretensões inicias. E, para tanto, valho-me da afirmação do mestre Geraldo Prado que, citando Hans Kudlich, adverte para o fato de que, no Estado Democrático de Direito, “a lei processual penal deve ser a lei de execução da Constituição.”[15]

 


[1]https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/218337/MPF-atinge-assinaturas-para-pacote-anticorrup%C3%A7%C3%A3o.htm

[2] Essas questões estão respondidas de modo completo por Lenio Streck no seu livro: Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 74 e sgs.

[3] HOMERO. A odisseia. 1ª ed., Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p. 269 

[4] http://www.conjur.com.br/2016-fev-16/justica-quebra-sigilo-fiscal-presidente-assembleia-sp

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 366-383.

[6] http://www.conjur.com.br/2016-jan-18/mpf-escondeu-depoimento-afasta-culpa-marcelo-odebrecht

[7] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

[8] STRECK, Lenio Luiz. O Livre Convencimento e sua Incompatibilidade com o Dever de Accountability Hermenêutica: o Sistema Acusatório e a Proteção dos Direitos Fundamentais no Processo Penal IN: Processo Penal e Direitos Humanos, Coordenadores: Geraldo Prado e Diogo Malan, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014, p. 158.

[9] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Processo Penal brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 30, p. 163-164, 1998

[10] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Temas de Direito Penal & Processo Peal (por prefácios selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 123.

[11] Segundo Dworkin, princípio “é  um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejada, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”. Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, p. 36, 2014.

[12]http://www.conjur.com.br/2016-fev-11/senso-incomum-fator-stoic-mujic-juiza-kenarik-papel-advogados-hoje

[13] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Estado de Polícia: Matem O Bicho! Cortem A Garganta! Tirem O Sangue. (Coord.) Direito e Psicanálise: intersecções e Interlocuções a Partir de O Senhor das Moscas de Willian Golding. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p.179.

[14] http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/senso-incomum-decidir-principios-diferenca-entre-vida-morte

[15] KUDLICH, Hans. El principio de legalidad em El derecho procesal penal (em especial, em El derecho procesal penal alemán), obra citada, p. 436. Apud: Prado, Geraldo. Prova Penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Monografias Jurídicas. Marcial Pons, 2014, p. 16. Alerta o mestre Geraldo, na mesma obra, que: “Em verdade, Kudlich remete á proposição de Henkel, citada por Manuel da Costa Andrade: <<o direito processual penal como verdadeiro direito constitucional aplicado>>. Costa Andrade, Manuel. Sobre as proibições de prova no processo penal. Coimbra, 2006, p. 12.

Autores

  • Brave

    é mestrando em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).

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