Opinião

Prisão antecipada, erro judiciário à vista em uma cultura punitiva que cresce

Autores

  • Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

    é ex-presidente da OAB-SP da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) ex-secretário de Justiça e de Segurança do estado de São Paulo e membro do conselho deliberativo do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

4 de março de 2016, 12h12

Parcela numericamente expressiva da sociedade brasileira deve estar exultante com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que permite o cumprimento da pena antecipadamente, quando do julgamento em segundo grau, antes, pois, do trânsito em julgado da decisão condenatória. Como a expectativa diante de uma acusação criminal é sempre pela culpa e pela condenação, e nunca pela inocência e pela absolvição, a sociedade, em face do crime, espera a inevitável prisão como única resposta ao crime. Esquece-se, no entanto, da possibilidade de condenações injustas, de inocentes, bem como se olvida de que todos os seus membros e cada um deles poderão ser vítimas de acusações e punições imerecidas.

O STF, após anos de orientação em contrário, entendeu por bem permitir prisões antes do julgamento dos recursos cabíveis aos tribunais superiores. Mas essas prisões poderão ser anuladas pelo próprio Supremo Tribunal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Dos 11 ministros, sete alegaram que o longo percurso dos recursos especial e extraordinário, e de outros opostos posteriormente, emprestam um sentido de impunidade e acarretam muitas vezes a prescrição da ação penal. Ora, não se há de falar em impunidade, uma vez que já houve condenação. Quem é condenado já está sendo punido. Aliás, a mera existência de um processo já constitui uma pena. A execução da condenação é um complemento e só sob uma óptica exclusivamente prisional é que se entende a prisão como exclusivo sinônimo de punição.

Quanto à prescrição, bastaria o Supremo decidir que o trânsito em julgado das condenações ocorreria com o julgamento dos recursos especial e extraordinário, retirando dos recursos posteriores o condão de impedir o trânsito, pois efetivamente há abusos e tais medidas na maioria dos casos são meramente protelatórias.

O artigo 60 da Constituição federal, em seu parágrafo 4.º, estatui que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir dentre outras cláusulas os direitos e garantias individuais” (inciso IV). Um desses direitos é exatamente a presunção de inocência (artigo 5.º, LVII), ou seja, somente após o trânsito em julgado de qualquer decisão condenatória poderá o acusado ser considerado culpado.

Com a nova orientação do Supremo – não unânime, diga-se, quatro ministros não a acataram –, a cláusula pétrea da presunção de inocência foi atingida, eis que se está antecipando o trânsito em julgado, com desprezo pelas decisões futuras dos recursos cabíveis, e considerando definitivamente culpado ainda quem não o é. Situação esdrúxula, porquanto parece que o trânsito já ocorreu, com a quebra da presunção de inocência, mas ao mesmo tempo não ocorreu, pois a decisão pode ser reformada e o condenado, inocentado.

Lembre-se que com uma fundamentação um pouco diversa foi apresentada no Congresso Nacional a denominada PEC dos Recursos, cujo escopo primordial era também permitir o cumprimento da pena após a decisão de segunda instância. Não foi aprovada. Ou melhor, agora parece ter sido, não pelo Congresso Nacional, mas pelo Poder Judiciário, que mais uma vez legislou. Desta feita, com desrespeito ao artigo 60, aos princípios da presunção de inocência e da ampla defesa, em nome dos quais até outro dia impedia prisões antecipadas, salvo nos casos excepcionais das prisões cautelares.

Note-se que a referida PEC ao menos procurou manter uma coerência doutrinária e sistêmica, pois para permitir a execução da pena em segundo grau declarou ocorrer o trânsito em julgado das decisões condenatórias naquele momento e aboliu os recursos especial e extraordinário. Criava a possibilidade de ações rescisórias em substituição desses recursos. Foi uma construção cerebrina, que sofreu emendas ao projeto, afinal, não aprovado.

Já a decisão do Supremo pura e simplesmente viola a cláusula pétrea da presunção de inocência, pois sem aguardar o trânsito em julgado executa a pena proclamando culpado quem poderá ser inocentado.

Aliás, com a orientação correta de não executar prematuramente a prisão, inúmeras condenações anuladas evitaram indevidos cumprimentos de pena. Cumpre salientar que aproximadamente 30% dos recursos extraordinários interpostos são providos para reformar condenações anteriores. Porcentual semelhante deve ser encontrado nos julgamentos dos recursos especiais pelo STJ. Há anos o ministro Ricardo Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 144, afirmou que 28,5% dos recursos examinados pelo STF eram providos. Portanto um terço dos condenados foi declarado inocente.

Imagina-se o número de prisões que serão decretadas, com a antecipação de execução de penas ainda não definitivamente confirmadas. Prisões que, com a eventual reforma dos acórdãos, se mostrarão injustas, inadequadas, desumanas, fruto de uma cultura punitiva, na verdade, uma cultura do castigo e da vingança, que, infelizmente, está se disseminando, tendo a mídia como seu principal arauto, por todos os segmentos sociais e mesmo pelas instituições pátrias.

Espera-se que o entendimento do Supremo, aliás desprovido de caráter vinculativo, não obrigando os tribunais do País, venha a ser repensado e modificado, até porque quatro de seus ministros não o aceitaram, para que a liberdade individual só venha a ser, quando e se for o caso, atingida num momento processual adequado (trânsito em julgado) evitando-se, assim, que ela venha a ser sacrificada, para posteriormente reconhecer-se a injustiça desse sacrifício, que, no entanto, já terá produzido efeitos irreparáveis.

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    é conselheiro honorário do MDA, ex-presidente da OAB-SP e da AASP, foi secretário de Justiça e de Segurança do Estado de São Paulo.

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    é advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

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