Ambiente Jurídico

Exploração de poços artesianos envolve mitos, mas já tem jurisprudência

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

28 de maio de 2016, 8h00

A água é um recurso natural existente nos mais diversos lugares onde habitam seres vivos. Isso porque sem ela não há vida, nunca houve, tampouco haverá! A relação entre o homem e os recursos hídricos nos proporciona incontáveis histórias pessoais.

O rio da infância, uma praia onde o amor de sua vida surgiu, um marcante passeio de barco, seu batismo ou o de alguém importante, a enchente que vivenciou, aquele esporte radical! Cada um tem suas lembranças, e ainda outras tantas experiências poderão suceder.

Quem é ou foi do meio rural, em particular, normalmente convive ou conviveu com poços artesianos. Em muitas localidades no interior, são utilizados poços escavados, aqueles de onde se extrai água com o auxílio de uma corda e balde – ou algo do gênero.

Já os poços tubulares são os mais empregados na zona urbana, apesar de também serem corriqueiros no meio rural. Eles contêm pequeno diâmetro e são de natureza mais profunda do que os escavados, variando de algumas dezenas a centenas de metros.

Em 2005, a Companhia de Saneamento do Rio Grande do Sul buscou resolver um problema de abastecimento de água na Cidade de Erechim construindo um poço no Aquífero Guarani, que alcançou 929 metros. Na obra de perfuração, foram gastos mais de R$ 1 milhão. Todavia, a água não pode ser utilizada para o consumo humano em razão de suas (im)propriedades naturais – excesso de sais.

Um mito existe quando algo está arraigado no senso comum, que lhe dá vida. Normalmente é repassado verbalmente de uns a outros, até que alguém o conteste e demonstre se tratar de uma lenda, de algo falso, que apenas parece verdadeiro. A água envolve vários mitos e, no tocante aos poços, sua persistência vem acarretando prejuízos a direitos fundamentais como à vida, à saúde humana e ao meio ambiente.

O primeiro dos mitos diz respeito ao próprio nome comumente dado aos poços, que sugere sejam eles artesianos. Embora essa incorreção realmente exista, não origina consequências maléficas. Outro mito bastante propalado dá conta de que o dono da área onde se localiza o poço também é proprietário da água existente abaixo do solo. Aqui já temos implicações jurídicas importantes, com repercussão no uso e abuso dos recursos hídricos situados no subsolo.

Ainda, costuma-se ouvir que a água de poços é sempre de qualidade superior do que a superficial, e que os aquíferos são fontes intermináveis de armazenamento e fornecimento de água. Será que essas assertivas de fato correspondem à realidade?

A captação de água ocorre na superfície ou abaixo dela. No subterrâneo, as águas podem estar localizadas em camadas próximas do solo, no nível freático. Em tais situações, seu aproveitamento é facilitado, embora mais arriscado. As infiltrações atingem os lençóis freáticos e, juntamente com a água superficial que percola, seguem os elementos impróprios, que podem ser nocivos à saúde e à vida de quem venha a utilizar o líquido contaminado. Esses poços, ainda que tubulares, não são artesianos do ponto de vista técnico.

Poços artesianos são aqueles onde existe artesianismo, fenômeno que se observa quando a água jorra do poço sem a necessidade de bombeamento. São pouco comuns e ocorrem em perfurações profundas que atingem aquíferos confinados, nos quais camadas de rochas de menor permeabilidade confinam as águas, que ficam sujeitas a pressão inferior do que a atmosférica.

No Guarani, porções significativas de águas estão armazenadas nos poros da rocha arenítica, que está sob o basalto. Mesmo nos poços profundos e quando atingem aquíferos confinados, a regra é que a extração da água se dê com o emprego de bombeamento elétrico.

Então, a água subterrânea é captada de lençóis freáticos ou de aquíferos; ou seja, tecnicamente de poços de captação. Nada impede, contudo, que se continue a chamá-los de poços artesianos, pois a locução faz parte do cotidiano da linguagem brasileira, sendo adotada tanto pela doutrina especializada quanto pelos tribunais, como pelo STJ no julgamento do AgRg no REsp 1235194/RJ.

A tradição do Direito pátrio, estampada na redação do art. 526 do Código Civil de 1916 (revogado), era de que o dono do terreno também o era em relação ao que estava acima e abaixo da superfície, onde se incluíam as águas. A CF/88 mudou completamente esse paradigma, estabelecendo que as águas superficiais são da União e dos Estados, enquanto as subterrâneas tão somente dos Estados.

O Decreto 24.643/34, conhecido como Código de Águas, tratou das águas públicas, comuns e particulares. Essa norma continua em vigor apenas naquilo que não afronta a CF ou a legislação infraconstitucional superveniente, com destaque para a Lei 9.433/97, que se popularizou como Lei das Águas, e dispõe ser “a água um bem de domínio público” (art. 1º).

Nesse contexto, o art. 96 do Código de Águas, ao estabelecer que o “dono de qualquer terreno poderá apropriar-se por meio de poços, galerias, etc.”, sem exigir autorização do poder público, está revogado. A captação e os lançamentos de águas superficiais dependem de outorga da União ou dos Estados, conforme sejam federais ou estaduais.

Quanto às águas do subsolo, é igualmente vital a outorga para as captações, conforme vem sustentando o STJ: “É firme a orientação desta Corte Superior no sentido de ser necessária a outorga do ente público para a exploração de águas subterrâneas através de poços artesianos.” (AgRg no AREsp 263253/RS).

Desse modo, mantém-se apenas como mito a ideia de que as águas são do dono do terreno, que poderia delas se apropriar como bem entendesse, até mesmo perfurando poços a qualquer profundidade sem anuência estatal.

A propósito, convém pontuar a diferença entre licença para perfuração de poços e outorga para captação de água subterrânea. Ambas são resultantes de ato administrativo que autoriza o interessado a fazer algo. Na primeira hipótese, a desenvolver atividade potencialmente poluidora. Na segunda, a usar o bem público “água”.

Na Lei 9.433/97, estão listadas as infrações administrativas, importando para os fins desta coluna as seguintes: “Art. 49. Constitui infração das normas de utilização de recursos hídricos superficiais ou subterrâneos: I – derivar ou utilizar recursos hídricos para qualquer finalidade, sem a respectiva outorga de direito de uso; V – perfurar poços para extração de água subterrânea ou operá-los sem a devida autorização;”.

Vê-se que a lei federal não deixa dúvidas, sendo reforçada por algumas decisões judiciais. Nesse sentido: “A necessidade de prévio licenciamento para a perfuração de poços artesianos é inquestionável…” (TJRGS, AC n. 70047159538). Apesar disso, temos acompanhado discussões acerca da exigibilidade da licença ambiental para a perfuração de poços, sobretudo na esfera criminal.

De fato, se a atividade exige licença, e sendo realizada sem a sua obtenção, configura-se o crime do art. 60 da Lei 9.605/98, independentemente de a ação não figurar na Resolução CONAMA 237/97, já que seu rol de atividades potencialmente poluidoras é exemplificativo.

Contudo, não localizamos qualquer condenação criminal pela prática desse ilícito penal, apesar de a perfuração de poços ser das atividades mais corriqueiras e ilegalmente praticadas. Os julgados que foram encontrados referem a atipicidade da conduta sob o argumento de que a Lei das Águas apenas a prevê como infração administrativa (TJMS, HC 14024876020148120000), no que se equivocam, porque as responsabilidades civil, administrativa e penal são independentes, nos termos do art. 225, § 3º, e normalmente cumulativas.

Registre-se que o Ibama, na Instrução Normativa 06/2013 (item 22.9), incluiu na tabela das atividades potencialmente poluidoras a sondagem e perfuração de poços artesianos.

Superexploração
Afirmamos sem risco de errar que são incontáveis as perfurações diárias e ilegais no território brasileiro, sem que haja fiscalização efetiva ou controle dos impactos em razão das construções, que normalmente não levam em consideração as técnicas adequadas da geologia de engenharia, estabelecidas pela ABNT (NBR 12.212 e 12.244).

Mas é sobre a abundância e a qualidade da água subterrânea que se concentram os mitos mais incrustados na sociedade. É certo afirmar que as águas localizadas no subsolo são vastas e, como regra, de melhor qualidade do que a superficial. Ainda, concordamos com sua importância crucial para o Brasil e o mundo.

Para exemplificar, elas foram e têm sido essenciais na minimização da estiagem que afligiu o Sudeste até 2015, e que já castiga o Nordeste pelo 5º ano, tanto que a seca nordestina vem sendo comparada àquela retratada no clássico livro O Quinze, de Rachel de Queiroz.

Em contrapartida, sua superexploração em situações de normalidade vem fazendo com que os níveis das reservas se rebaixem significativamente, pois as captações são descontroladas, mal geridas e, não raro, excedem as recargas naturais dos aquíferos.

É o caso de Ribeirão Preto, que é 100% abastecida pelas águas do Guarani. A população da cidade paulista está aumentando rapidamente, razão pela qual há um incremento na demanda por água. Ainda que se trate de área de recarga do Aquífero, as captações são progressivamente mais intensas e ocorrem em profundidades maiores, ante o rebaixamento visto, prevendo-se sérios riscos ao abastecimento público em um futuro não muito distante.

Como bem adverte o ministro Herman Benjamin, em importante julgamento do STJ, “é evidente que a perfuração indiscriminada e desordenada de poços artesianos tem impacto direto no meio ambiente e na disponibilidade de recursos hídricos para o restante da população, de hoje e de amanhã.” (REsp 994.120/RS).

Ao lado do mito da abundância está o de que a água de poços é melhor do que a fornecida pela rede pública. Ledo engano! Os riscos não compensam sua utilização quando existe rede geral. Tanto é assim que o uso de água de fontes alternativas – que inclui os poços – nessa circunstância é vedado (art. 45 da Lei 11.445/97).

A relação entre água e saúde vem retratada em relatório de 2015 da Unicef e OMS, o qual dá conta de que o acesso a água própria, saneamento e higiene é determinante para prevenir 16 das 17 doenças tropicais negligenciadas.

Diversas podem ser as causas de impropriedade das águas do subsolo para o consumo humano. As mais comuns e decorrentes de atividades antrópicas são resultantes da infiltração de agentes contaminantes presentes na superfície, podendo ser de natureza biológica ou química, tais como chorume, agrotóxicos, esgotos a céu aberto e oriundos de fossas, líquidos da mineração, descartes da indústria, vazamentos em postos de combustíveis. E os poços mal projetados e executados contribuem para a interação entre os poluentes e a água subterrânea.

As causas biológicas provocam doenças de veiculação hídrica que aparecem rapidamente, tais como diarreia, disenteria, cólera, febre tifoide e hepatite, esta constatada no julgamento da Apelação 70024474223, do TJRS.

Já as químicas podem nem ser de diagnóstico associado ao consumo de água e aparecer ao longo do tempo, podendo-se citar alguns resultados danosos para o homem: transtornos neurológicos, reprodutivos, imunológicos, insuficiência renal e hepática, doenças pulmonares e respiratórias, cânceres.

Por vezes, quem perfura um poço faz o exame inicial de natureza bacteriológica e, não sendo constatada a presença de coliformes, conclui que a água é excelente. Comete, assim, dois erros: a um, não fazer investigações amplas, a exemplo da química, que realmente torna o custo mais elevado; a dois, acreditar que aquela análise é invariável, quando se sabe que somente é válida por um curto período de tempo, tal qual um exame de sangue.

Reforça-se: o consumo da água oriunda do abastecimento público é mais seguro para todos: indivíduo e poder público. As empresas de saneamento são obrigadas as fazer as análises previstas na Portaria 2.914/2011, do Ministério da Saúde, com a periodicidade ali estabelecida. Então, se a população consome água da rede pública, os riscos de um surto de doença de veiculação hídrica são sempre inferiores.

Para citar um caso, no julgamento da Apelação 70017326430, o TJ-RS constatou danos concretos à saúde humana pelo consumo de água de poço, verbis: “Responsabilidade solidária do explorador do poço artesiano e do município. Dever de indenizar. Comprovada nos autos a impropriedade da água fornecida pelos réus, a qual, segundo laudos técnicos da CORSAN e da UNISC, apresentava teor de flúor acima do permitido e bactérias, cujo consumo deu causa aos danos suportados pelos autores, acometidos de fluorose dental, resta evidente o dever de indenizar”.

Não se propõe a vedação do uso de água subterrânea. O que se preconiza é sua utilização na forma da lei, com a perfuração de poços somente mediante prévio licenciamento, com técnica construtiva adequada e a extração de água condicionada à obtenção de outorga. Nos locais onde há rede pública, deve ser impedida a perfuração dos poços e o consumo humano de água subterrânea.

Afinal, de acordo com o posicionamento institucional do Ministério Público gaúcho, “somente deveria ser autorizada a abertura de poço artesiano quando houvesse efetiva necessidade, dado que a água subterrânea é recurso natural de reserva e, se possível, deve ser mantida intocável, bastando, para o indeferimento do pedido de outorga/licenciamento, que a autoridade pública exerça seu poder ordenador, mediante ato administrativo fundamentado” (Enunciado 6.2/2005).

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    é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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