Insegurança jurídica

MP de Temer sobre concessões e privatizações divide especialistas na área

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26 de maio de 2016, 7h48

Publicada sem alarde pelo vice-presidente Michel Temer, a Medida Provisória 727/2016 já divide administrativistas. Ela trata de parcerias entre a iniciativa privada e o Estado e de contratos de concessão relacionados a infraestrutura, e foi  editada para mudar o sistema que vigorou nos últimos 20 anos no setor. Especialistas na área, no entanto, divergem sobre se a nova medida vai dar a segurança jurídica necessária aos negócios entre mercado e Estado, ou se vai travar ainda mais os contratos de concessão, por concentrar demais o poder de decisão no Executivo.

A MP foi editada no dia 12 de maio, um dia depois de o Senado aprovar o afastamento da presidente Dilma Rousseff para julgar o pedido de impeachment contra ela. A intenção da medida foi apresentar uma “carta de intenções” ao mercado. Segundo Temer escreveu na exposição de motivos da MP, ela “visa à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada para viabilização da infraestrutura brasileira”.

É ela quem cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e uma secretaria para cuidar dele, que ficará a cargo do ministro Moreira Franco. Também fica criado um Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias, vinculado e gerido pelo BNDES, responsável por gerir as verbas que serão destinadas aos projetos de concessão e de parcerias entre mercado e Estado.

Segundo a justificativa da MP, o Brasil passa “por uma das maiores crises econômicas de sua história”, com 10,4 milhões de desempregados, segundo o IBGE. “O cenário é ainda mais preocupante quando se considera que além do aumento do desemprego e da perda de renda, a sociedade sofre com uma inflação em patamar elevado, reduzindo de forma considerável o poder de compra da população”.

“Em resposta aos desafios urgentes pelos quais o Brasil passa, a presente Medida Provisória objetiva a implantação de programa que viabilize a ampliação e fortalecimento da parceria entre o Estado e a iniciativa privada, trazendo melhorias significativas em termos de governança e estruturação dos investimentos”, diz o texto.

Túnel do tempo
“Essa MP, na verdade, é um grande programa de governo, e traz algumas mudanças radicais para o setor”, comenta o advogado Luis Eduardo Serra Netto, do Duarte Garcia Caselli Guimarães Terra Advogados. Ele já participou de diversos projetos de concessão e de privatização, especialmente no metrô de São Paulo. Atualmente, trabalha como consultor, na elaboração de projetos. “A medida provisória é uma grande volta no tempo”, critica.

A volta é o fundo criado pela MP, que, segundo o advogado, pretende centralizar no Executivo a elaboração de projetos e a convocação de empresas para participar de licitações e de concessões.

Serra Netto explica que, até 1995, vigia no Brasil um sistema parecido com o que a MP criou — ou “recriou”, no entendimento dele —, no qual o BNDES era quem contratava os projetos de concessão ou privatização. Naquele ano foi editada a Lei das Concessões permitindo que empresas levassem ao governo os projetos, para que o Executivo os implantasse.

Isso depois foi aprimorado pela Lei das PPPs, de 2004, para permitir que as empresas que apresentam projetos pudessem participar das licitações referentes àquele projeto. Caso perdessem, seriam reembolsadas dos gastos com a elaboração da proposta pela vencedora do certame.

“Essa MP está implodindo o conceito. Está esvaziando as consultorias privadas e pendurando a origem das ideias no Estado novamente”, afirma Serra Netto. “Esse fundo de apoio, que está dentro do BNDES, tem uma cara muito parecida com a área de consultoria que havia no banco até os anos 1990.”

Inversão do jogo
Serra Netto também aponta que a MP inverte a lógica das concessões. Isso porque o artigo 15 diz que “independe de lei a licitação e celebração de parcerias dos empreendimentos públicos do PPI”. Só não estão proibidos os acordos e contratos proibidos em “lei da entidade titular editada posteriormente à presente lei [a MP 727]”.

De acordo com o advogado, o que a MP fez foi dar ao chefe do Executivo, tanto federal quanto estadual ou municipal, o poder de, por decreto, definir o que será licitado, e de que forma. Para ele, é uma centralização excessiva que já havia sido ultrapassada.

“O dispositivo diz que está tudo permitido, exceto o que é proibido. Inverteu a lógica para dizer que não precisa de lei”, comenta o advogado. Para ele, esse artigo está em conflito com a Constituição. É que o artigo 175 da Constituição Federal diz que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Portanto, há reserva de legalidade, diz Serra Netto.

Origens
A Medida Provisória nasceu a partir de um estudo feito pelos professores Carlos Ari Sundfeld, da FGV Direito SP, e Floriano Azevedo Marques Neto, da USP. A proposta deles é para que as parcerias público-privadas seguissem dois princípios básicos: segurança jurídica e eficiência do serviço prestado.

Por isso, eles previram que toda decisão administrativa deve levar em conta suas consequências práticas e considerar as dificuldades reais e concretas de sua implantação. Portanto, a decisão administrativa não pode ser uma manifestação de vontade, mas resultado de planejamento e da elaboração de projetos reais.

Sundfeld acredita que isso está na Medida Provisória 727, embora reconheça que ela seja “bem menos detalhada que o trabalho”. “Mas é no mínimo uma tentativa de mudar as coisas nessa área”, afirma.

Para o professor, ao trazer para dentro do Executivo a elaboração dos projetos, a MP pretende estimular a participação de empresas e consultores que normalmente ficam de fora dessa fatia do mercado.

Um dos principais problemas das concessões, diz, é que as licitações deixaram de ser concorridas o suficiente para ser consideradas competitivas. E uma boa solução para isso foi a inclusão do Cade, órgão antitruste do governo federal, entre os participantes da construção de editais. “O Cade tem descoberto diversos carteis em licitações, e agora está sendo convidado a elaborar os editais. Isso nunca aconteceu, e vai ter impacto direto nos certames.”

O professor também elogia a previsão da “análise de impacto regulatório” a ser feita pelas agências reguladoras antes de qualquer alteração de regulamento ou de “plano regulatório setorial”, conforme diz o inciso II do artigo 6º. “São medidas importantes que a MP trouxe para enfrentar os gargalos da área, principalmente a falta de competição e a regulação ruim”, resume Sundfeld.

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Sundfeld discorda da crítica de que MP dá poderes demais a chefe do Executivo.
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Decretos
Carlos Ari Sundfeld também discorda da crítica de que a MP dá poderes demais ao chefe do Executivo ou ao fundo do BNDES responsável pelos projetos. “O que a medida prevê é que o presidente vai ouvir o conselho das PPI para estabelecer a política federal de parcerias, para dar as diretrizes. Isso não é dar matéria de lei para decreto”, diz.

Ele explica que as autorizações para concessão ou privatizações nunca foram feitas por meio lei. A legislação, diz, trata do assunto genericamente, e o Executivo é quem decide como será a concessão e as diretrizes do contrato.

Sundfeld conta que a Lei 9.074/1995, que tratou das concessões e privatizações do setor elétrico, delegava a tarefa, no caso de estados e municípios, a lei específica. “Os municípios e estados foram ao Legislativo aprovar leis específicas sobre isso? Nunca! Aprovaram leis gerais de concessão de gás, de estrada, e não caso a caso.”

Mas o fato é que isso chamou a atenção dos parlamentares. Há pelo menos duas emendas, entre 239, tratando do assunto na comissão que discute a conversão da MP em lei no Congresso.

Uma delas, do deputado Pepe Vargas (PT-RS), acrescenta o parágrafo 7º ao artigo 7º para obrigar o envio de projeto de lei ao Congresso para que o Legislativo autorize as propostas de desestatização. “Não se trata de questionar a legitimidade do governo derivado da soberania popular e da maioria conformada no processo eleitoral. O cuidado aqui é o de dividir com o Poder Legislativo a avaliação da oportunidade e conveniência da alienação de ativos pertencentes ao povo brasileiro”, argumenta.

A senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) fez a mesma proposta. E também sugeriu que a conversão da MP em lei proíba a alienação do controle societário da Petrobras e da Caixa Econômica Federal.

Interpretação conforme
Especialista em Direito Administrativo, o advogado Marçal Justen Filho concorda que o artigo 15 da MP, que fala nos decretos, possa gerar discussões constitucionais. Para ele, será necessário que se dê “interpretação conforme” ao dispositivo.

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"Não adianta botar um edital na rua e ninguém querer participar", diz Marçal Justen Filho.
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Isso significa que os decretos só vão poder fazer o que a lei permitir, e não o contrário, explica. “Se houver necessidade de lei, não pode ser por decreto. Não vai poder usar o decreto para regulamentar matéria que a lei já trata.”

Justen também afirma que não pode haver lei para dizer que está dispensada a necessidade de lei mesmo nos casos em que a Constituição exige. “Ou seja, esse artigo não vai poder ser interpretado literalmente, porque há o princípio da legalidade”, afirma.

Pela metade
Justen Filho comemora o fato de o estudo dos professores Sundfeld e Floriano Marques ter virado uma medida provisória. Acredita ser interessante a criação do gênero dos contratos de parceria. “Havia vontade política, mas isso nunca se traduziu em contratação. E a MP conseguiu isso.”

Portanto, se há críticas em centralização, argumenta, foi a saída encontrada pelo governo para que o discurso se transforme em realidade.

Mas ele lamenta que a MP não tenha tratado da outra metade do estudo de Sundfeld, que fala em qualidade regulatória. Para ele, é esse o principal motivo pelo qual as empresas não se interessam muito pelas licitações.

“Não adianta botar um edital na rua e ninguém querer participar, porque não tem segurança jurídica, a agência reguladora não tem autonomia, fica subordinada à vontade política do governo etc. O grande desafio não é fazer a licitação, é atrair o investidor. E para isso tem que dizer que a regulação vai ser saudável, o que a MP não faz.”

Convívio
Sócio de Justen, o advogado Cesar Guimarães Pereira elogia um aspecto que ele diz escondido da MP: o artigo 21, o penúltimo, diz que as regras aplicadas aos empreendimentos das concessões são aplicadas aos que concorram ou convivam com elas.

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Cesar Pereira diz que MP pode permitir soluções casuísticas.
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Ele acaba de publicar um artigo em que discute o “convívio” a que a MP se refere. E segundo o especialista, a medida “pretendeu abarcar a realidade dos empreendimentos complementares, sinérgicos, simbióticos, os que possam atuar de modo conjugado a fim de realizar seus objetivos comuns”.

Por exemplo, uma parceria relacionada a portos e as empesas do setor minérios que serão escoados pelos navios que atracarão no porto são empreendimentos que convivem.

E, segundo Cesar Pereira, a MP aplica a esses negócios o mesmo regime favorecido e de celeridade na assinatura de contratos, mesmo que sejam empreendimentos privados sem relação direta com o Estado.

A crítica que ele fez é ao “modo assistemático” com que isso foi feito na MP 727. O advogado explica que o melhor seria já falar nos empreendimentos privados no artigo 1º da MP, que define o objeto da norma. E não apenas estender o regime da medida aos negócios privados, em um artigo no pé da MP.

Pereira reclama do fato de o artigo 21 da norma não estabelecer os limites da extensão do regime, e apenas tratar disso numa “cláusula aberta”: o dispositivo aplica o regime da MP aos empreendimentos privados que concorram ou convivam com as concessões, “no que couber”.

“Isso pode permitir soluções casuísticas, em que empreendimentos similares podem ou não vir a se submeter ao PPI ou a parte desse regime conforme uma avaliação das próprias autoridades envolvidas na deliberação sobre a inclusão de empreendimentos no PPI”, resume.

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