Opinião

Tribunais precisam rever publicidade dos precedentes e julgados

Autor

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

25 de maio de 2016, 8h45

Na tradição do common law, já se percebeu há muito[1] a necessidade de se ofertar a devida publicidade às suas decisões mediante a consolidação de relatórios (reports) hábeis a dar conhecimento de seu teor à comunidade jurídica, e prioritariamente dos fundamentos das mesmas para a consolidação de uma teoria dos precedentes obrigatórios.

Dentro desta temática, recente notícia divulgada pelo STJ mostra que o mesmo reformulou e disponibilizou uma nova página de recursos repetitivos, na qual teve a pretensão de aprimorar a divulgação de seus “precedentes”.[2]

Tal postura, ainda que elogiável, mostra-se ainda insuficiente, e decorre do advento do novo Código de Processo Civil (CPC-2015) e consolidação de um modelo deliberativo de formação e de aplicação de precedentes, no qual a publicidade vem encampada em seus aspectos mínimos por seu artigo 979,[3] e em que tal divulgação torna-se capítulo extremamente delicado e essencial.

Isto porque, quando não se divulgam bem os precedentes, de modo a facilitar o acesso de seu teor a todos os profissionais, corre-se o risco, como alude Duxbury no sistema anglo-americano, ao uso dos denominados “precedentes-surpresa” — provenientes de situações em que o julgador “saca” do banco de dados um julgado para dar fundamento à sua decisão que não foi devidamente publicizado a comunidade jurídica.

Sem olvidar que o uso de precedentes desta forma no novo sistema normativo induziria, caso não precedido de alerta na fase preparatória (artigos 10, 357, 933 1037), gerará em regra nulidade do pronunciamento.

Tal fenômeno é mais recorrente em países nos quais os meios de catalogação decisória impedem o conhecimento adequado do direito jurisprudencial pelos profissionais.

Esta questão ganha maior relevância no atual sistema (pós-CPC/2015), uma vez que sem o acesso adequado ao teor dos precedentes o advogado, por exemplo, poderia deixar de levar a sério tais pronunciamentos (notadamente os prescritos pelo artigo 927[4]) desde sua petição inicial, para promover a diferenciação (distinção de casos), e se submeter ao enorme perigo de ser surpreendido por uma sentença liminar de improcedência do pedido (artigo 332). Tal questão oferta risco análogo para as decisões liminares do sistema recursal (artigo 932, IV e V), entre inúmeros outras hipóteses.

Em assim sendo, percebe-se que a adoção de um sistema normativo de precedentes induz uma mudança brutal tanto da racionalidade de se decidir e de se postular, quanto no modo de se promover a publicidade dos julgados dos tribunais, mostrando a completa insuficiência de se divulgar prioritariamente (com destaque) as ementas, que possuem função eminentemente catalográfica e com recorrência não espelham os principais fundamentos decisórios dos arestos.[5]

Venho denunciando há bons anos os problemas provenientes do desconhecimento do modo como os tribunais decidem.[6] Não é incomum, numa mesma câmara ou turma de um tribunal, se encontrarem decisões díspares sobre o mesmo tema. Chega-se ao absurdo do mesmo julgador, na condição de relator (ou vogal), proferir decisões diferentes em casos idênticos — inclusive na mesma sessão de julgamento.

Todo este quadro seria sensivelmente reduzido se houvesse uma mudança real do uso da publicidade destas decisões na qual se ofertasse, de modo temático, a cadeia de decisões do tribunal sobre determinado assunto, desde o seu primeiro julgado (leading case), de modo que se indicassem, além da ementa, os argumentos suscitados pelas partes, os fundamentos determinantes, os dispositivos normativos a ela relacionados e as questões e teses enfrentadas no pronunciamento. Tal trabalho precisaria ser feitos por profissionais que consigam criar métodos de extração dos julgados das reais razões utilizadas.

A simples compilação das decisões, com acesso ao inteiro teor (quase não consultado por parcela considerável dos aplicadores), a partir de critérios de palavras-chave (decisor, órgão julgador, temas etc.), sem se esmiuçar as questões que foram objeto de apreciação e sem se facilitar o acesso a toda a cadeia decisória proferida (salvo mediante uma pesquisa extenuante no site do tribunal) dificulta sobremaneira o cumprimento do comando prescrito no artigo 926,[7] CPC-2015 por ser necessário um esforço hercúleo para se conhecer a história institucional daquele tribunal ao julgar no passado questão análoga — sem desprezar que a tarefa do julgador não é menos espinhosa para cumprir o disposto no artigo 489, §1º, V e VI.[8]

É imperativo perceber que só conseguiremos suplantar a barreira institucional de efetivo respeito dos comandos do Novo CPC se percebermos, desde já, que o mesmo sozinho não terá o condão de criar um modelo deliberativo de formação e aplicação dos precedentes, corrigindo a jurisprudência lotérica que vige(ia) antes do sua entrada em vigor, sem que, antes, mudemos a própria deliberação decisória e o modo como os tribunais divulgam e compilam seus julgados.

A ausência de uma publicidade adequada torna cada vez mais plausível o emprego de precedentes-surpresa, pois a dificuldade de pesquisa para acesso aos precedentes do artigo 927, especialmente pelos números expressivos de processos que a justiça brasileira padece, continuará a ser uma constante.

Como contramedida ao uso de precedentes-surpresa, encobertos na ineficiência dos mecanismos de pesquisa e catalogação dos tribunais, o advogado deve defender a nulidade decisória pelo seu emprego ao perceber toda a dimensão normativa prevista no artigo 10[9] (que prescreve o contraditório como influência e não surpresa) e que determina ao magistrado o dever de provocar preventivamente o debate acerca de um fundamento decisório antes de usá-lo em seu pronunciamento. E independentemente desta dimensão normativa cabe aos profissionais tornar sua pesquisa jurisprudencial mais sofisticada e profunda.

Pontue-se, assim, por derradeiro que se desejamos levar a sério todas as potencialidades de nosso novel sistema de precedentes tornar-se-á imperativo se implementar pelo CNJ e pelos tribunais, entre outras medidas, uma mudança brutal da catalogação e da elaboração de relatórios jurisprudenciais, de modo a se criar, de fato, uma jurisprudência estável, coerente e íntegra.


1 Sobre a história dos Law Reporting dos séculos XIII a XX conferir HOLDSWORTH. W. A history of English Law. London: Sweet & Maxwell, 1927. No século XVIII tais relatórios deixaram de ser uma compilação privada e se tornou, paulatinamente, uma tarefa pública dos próprios tribunais com participação de experts (desde a fase dos Authorized reports). Pontue-se que durante muito tempo tais reports funcionavam como verdadeiros manuais da prática mediante a compilação por pessoas que assistiam aos julgamentos, mas sua mudança foi essencial para consolidação da força vinculante (binding force) do sistema inglês.

3 Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. §1º Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça para inclusão no cadastro. §2º Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados. §3º Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral em recurso extraordinário.

 

4 Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. […]

5 Sobre isso ver, e.g., NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Precedentes no CPC-2015: por uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 57, p. 17-52, jul./set. 2015. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/98634/precedentes_compreensao_constitucionalmente_nunes.pdf.

7 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. §1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. §2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

8 Por isso mesmo, é de extrema relevância e lucidez a metáfora criada por Ronald Dworkin (em DWORKIN. Uma Questão de Princípios. São Paulo: Martins Fontes, 2005), acerca da figura do Romance em Cadeira (ou Chain in Law), na qual um conjunto de decisões do judiciário deve ser lido como um corpo coerente e íntegro de provimentos encadeados. Dessa forma uma lógica decisória pode ser apreendida a partir de uma narrativa comum na qual cada magistrado se vincula ao esforço de promover uma sequência construtiva a partir de um diálogo com o passado.

9 cf. STRECK, Lenio; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo; FREIRE, Alexandre. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016; THEODORO JR., NUNES, BAHIA, PEDRON. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 3ª Edição. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2016.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!