Opinião

Michel Temer é inelegível? Nem toda doação por excesso gera inelegibilidade

Autor

  • Leticia Lacerda

    é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais pós-graduada em Direito Público pela PUC-Minas e sócia do Marina Pimenta Advogados Associados.

22 de maio de 2016, 10h47

A recente notícia de que a Justiça Eleitoral de São Paulo reconhecera a doação eleitoral, fora dos parâmetros legais, pelo presidente interino, Michel Temer (PMDB), torna em evidência um tema que há muito vem nos trazendo uma inquietude: a doação em dissonância da lei eleitoral, por si só, de forma automática e objetiva, conduz à hipótese de inelegibilidade?

A Lei Complementar 64/90, estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, causas de inelegibilidade, e dispõe em seu artigo 1º, inciso I, alínea “p”, que são inelegíveis “a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22”.

As recentes decisões da Justiça Eleitoral têm considerado inelegíveis as pessoas físicas e os dirigentes das pessoas jurídicas condenados por doações em excesso, a despeito da inexistência de qualquer enfrentamento das seguintes questões: (i) toda doação, pelo simples fato de ser em excesso, seria necessariamente “tida por ilegal”, para fins de inelegibilidade; (ii) seria automática a aplicação da inelegibilidade, prescindindo-se da análise de qualquer elemento subjetivo; (iii) deveria haver discussão na representação eleitoral acerca da natureza da doação, ou de eventual violação à moralidade e à probidade administrativa e; (iv) necessidade de implementação do efetivo contraditório e da ampla defesa no processo eleitoral que se discuta a natureza da doação, para fins de subsunção na inelegibilidade da alínea “p”, inciso I, artigo 1º, da LC nº 64/90, em eventual pedido de registro de candidatura.

Conforme se passa a expor, por uma interpretação constitucionalmente adequada da questão, entendemos que não necessariamente toda doação por excesso deva ser considerada “tida por ilegal” para fins de aplicação da inelegibilidade.

Inicialmente, necessário proceder a uma interpretação jurídica da norma, na perspectiva dos critérios literal, sistemático e teleológico.

Pela interpretação literal, buscam-se os conceitos contidos na norma, as suas “possibilidades semânticas” (BARROSO, 2013, p. 314). No presente caso, não nos parece que a norma objeto de nosso trabalho hermenêutico tenha seu conceito solucionado na dicotomia legalidade versus ilegalidade.

Até porque, conforme já dissemos, a Lei das Inelegibilidades é expressa em tipificar que a doação deva ser “tida por ilegal”, olvidando-se em declarar que basta ser uma doação excessiva, em contra ponto à regra do artigo 23 da Lei 9504/97 e ao artigo 81 da Lei 9.504/97, este já revogado pela Lei 13.165/2015.

Pela interpretação sistemática, busca-se a unidade e a harmonia da legislação em que está compreendida a norma, cuja interpretação enfrentamos. Eros Roberto Grau leciona:

Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado algum”. (GRAU, 2002, p. 34)

O critério material das hipóteses normativas que estabelece a incidência da inelegibilidade cominada, entendida como efeito de um fato jurídico ilícito, compreendido nos incisos do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, não prescinde da ocorrência de uma conduta subjetiva, a rigor, dolosa, anterior à sua aferição no momento do registro de candidatura (excetuando-se da alínea “a”, que cuida dos inalistáveis e os analfabetos).

Por uma interpretação sistemática da Lei das Inelegibilidades, constata-se que em nenhuma das hipóteses legais a inelegibilidade é cominada de forma objetiva, sem qualquer juízo de valor ou de reprovação prévia da conduta (citamos como exemplo as hipóteses de incidência de inelegibilidade daqueles condenados pelos crimes indicados taxativamente na Lei das Inelegibilidades, ou que são condenados por improbidade administrativa).

Assim, entendemos que ao dispor acerca da inelegibilidade das “doações tidas por ilegais”, o legislador não quis aplicá-la de forma automática, objetiva. Aliás, o propósito, a vontade, da Lei Complementar 135/2010, que alterou a Lei das Inelegibilidades, vem demonstrado já em sua ementa:

Altera a Lei Complementar no  64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

E não poderia ser diferente, posto que a Lei Complementar 64/90 deve ser compatível com o art. 14, §9º, da CF, fundamento de constitucionalidade da Lei das Inelegibilidades, e que dispõe:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Ora, não se mostra razoável a interpretação de que todo doador que implementa doação meramente fora dos parâmetros legais teria potencial lesivo à probidade e à moralidade administrativa. Há que se analisar cada conduta de forma individualizada, no bojo de processo judicial.

Quanto à interpretação teleológica, Barroso adverte:

É bem de ver, no entanto, que a interpretação teleológica não pode servir para chancelar o utilitarismo, o pragmatismo e o consequencialismo quando isso importe em afronta aos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente. (BARROSO, 2013, p. 320)

Com efeito, são as matrizes constitucionais superiores em relação à legislação infraconstitucional, lógica erigida pelo princípio da supremacia da Constituição. Sendo a regra constitucional a elegibilidade e a restrição às causas de inelegibilidade, impõe-se que a interpretação da norma que define as hipóteses de inelegibilidade se dê com o rigor de excepcionalidade.

Nesse sentido, parece-nos que, ao aplicar a inelegibilidade, o juiz deva se atentar às condutas que, mesmo em juízo de potencialidade, possam ter lesionado a moralidade e a probidade administrativa, a par do propósito da Lei de Inelegibilidade.

Portanto, por todos os ângulos que se enfrenta o sentido da norma da Lei da Inelegibilidade, em especial do seu artigo 1º, inciso I, alínea “p”, a conclusão é uníssona: a aplicação da inelegibilidade cominada, derivada pela doação “tida por ilegal”, passa pelo crivo constitucional quando distingue uma mera irregularidade de uma conduta dolosa do doador, atentatória à probidade e à moralidade administrativa. Do contrário, estar-se-á erigindo uma inelegibilidade por conduta objetiva, independente do desvalor da conduta e que nada tenha repercutido na principiologia administrativa.

Outra questão que clama por um maior enfrentamento é a necessidade de se efetivar um processo efetivamente democrático para fins de incidência legítima da inelegibilidade por doação eleitoral “tida por ilegal”.

A jurisprudência atual do Tribunal Superior Eleitoral nos julgados afetos à aplicação da inelegibilidade do art. 1º, I, “p” da LC 64/90, tem considerado irrelevante (i) ausência de manifestação da parte “doadora”, em respeito ao contraditório e ampla defesa[1]; (ii) a ausência de dolo[2]; e (iii) ausência do debate processual prévio sobre a natureza da doação (por entender ser um efeito “secundário[3]” da doação tida por ilegal).

Entendemos que a jurisprudência dominante do Tribunal Superior Eleitoral não guarda consonância, salvo melhor juízo, com o tema apreciado. Afora todas as razões já elencadas, parece-nos que aplicar de forma automática a inelegibilidade, como se fosse mero efeito “secundário” do provimento que reconhece “irregular” a doação repele inclusive a efetivação concreta do processo eleitoral democrático, que se deve ser um processo balizado pelos princípios constitucionais.

Nessa linha de raciocínio, com a promulgação da Constituição Federal, qualquer processo somente se legitima por uma estrutura constitucionalizada, a qual se garante a efetiva fruição dos direitos e garantias fundamentais.

Na contemporaneidade, é necessário se apreender o verdadeiro sentido do contraditório, que deve ser compreendido como participação e influência na construção do provimento.

Eis o liame entre o processo constitucional, especialmente o contraditório próprio de uma estrutura constitucionalizada, com a concepção pós-moderna de democracia processual, que se funda na participação dos sujeitos, mediante a instauração de um discurso legítimo entre os sujeitos processuais.

No problema que enfrentamos, a inelegibilidade aplicada àquele que procede à doação “tida por ilegal” sequer é construída em um processo jurisdicional, na medida em que se tem dispensado a discussão acerca da natureza da doação, na representação eleitoral que apura a legalidade da doação. Aliás, em muitas das representações sequer consta como causa de pedido e pedido ministerial que o reconhecimento da ilegalidade da doação subsuma à hipótese de inelegibilidade, tolhendo, por completo, o direito da parte em discutir a questão, contraditoriamente.  

Sem a existência de processo que discuta a natureza da doação, em especial se esta afrontou a moralidade e probidade administrativa, não se cogita o direito ao contraditório e à ampla defesa do sujeito de direito que, não raros os casos, doa por convicções pessoais, ideológicas, no exercício pleno de sua cidadania, por querer eleger seu candidato.

Na prática forense é corriqueira a defesa em representação eleitoral de doador que no ano anterior às eleições teve uma disponibilidade econômica mais que suficiente para proceder à doação. Todavia, tal dinheiro, licitamente obtido em seu patrimônio, não configura “rendimento bruto”, conceito do Direito Tributário e utilizado pela lei para estabilizar o quantum máximo a ser doado.

Na própria representação eleitoral que houve a condenação do presidente interino, Michel Temer, não vislumbramos no acórdão do RE 186-54 qualquer menção à natureza da doação eleitoral em excesso, ou a conduta dolosa ou atentatória aos princípios da moralidade, probidade, ou a potencialidade de a doação ter influído no equilíbrio das eleições.

Não nos parece, salvo a especificidade de cada caso, que tais condutas se amoldam à noção de ilegalidade da doação para fins de aplicação de inelegibilidade, a ser aferida no momento do pedido de registro de candidatura.

Somente com a prévia existência de um processo jurisdicional em que se debata, mediante a implementação de um discurso democrático entre as partes, garantido o contraditório e a ampla defesa, a natureza da doação, a presença do dolo na conduta do doador, a potencialidade lesiva à moralidade e à probidade administrativa, enfim, se a doação se amolda ou não ao artigo 1º, inciso I, alínea “p”, da Lei Complementar nº 64/90 e sua principiologia, é que se estará diante de um espaço processual estável, para eventualmente ser reconhecida, em sede de pedido de registro de candidatura, a inelegibilidade do sujeito que tenha praticado a doação “tida por ilegal”.

Portanto, refutamos a ausência de prévio pronunciamento judicial acerca da natureza da doação, em processo desenvolvido sob o crivo das garantias do contraditório e da ampla defesa do sujeito doador, para fins de incidência ou não da inelegibilidade no momento do pedido de registro de candidatura. Admitir que a simples condenação em representação por doação em excesso repercuta em matéria de inelegibilidades a nosso ver contraria o princípio geral da elegibilidade e da democracia, privilegiando, uma responsabilidade objetiva definitivamente dissonante da Lei das Inelegibilidades.

Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

 


[1] Eleições 2012. Registro de Candidatura. Indeferimento. (…). 2. Para a incidência das causas de inelegibilidade previstas no art. 1º da LC nº 64/90, não se faz necessário que haja declaração expressa nesse sentido na representação cuja condenação ensejou o indeferimento do registro. Precedente: Respe nº 261-20, rel. Min. Dias Toffoli, PSESS em 27.9.2012. 3. A alínea p do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90 não exige, para a incidência da inelegibilidade, que os dirigentes das pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais irregulares integrem a relação processual da representação respectiva, mas tão somente que a doação irregular tenha sido reconhecida por meio de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado. A inelegibilidade não atinge a pessoa jurídica condenada na referida representação, mas, sim, seus dirigentes”. (TSE – AgR-REspe: 40669 SP , Relator: Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Data de Julgamento: 07/05/2013, Data de Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 103, Data 4/6/2013, Página 37)

[2] “AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. REGISTRO DE CANDIDATURA. VEREADOR. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, P, DA LEI COMPLEMENTAR 64/90. DIRIGENTE. PESSOA JURÍDICA. RESPONSÁVEL. DOAÇÃO ILEGAL. REEXAME. DESPROVIMENTO. 1. O comando normativo previsto no art. 1º, I, p, da LC 64/90 exige apenas que haja "decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral", não se cogitando, em registro de candidatura, de juízo quanto ao eventual dolo do dirigente da empresa, notório responsável por doação irregular à própria candidatura. 2. Na espécie, a Corte Regional consignou a responsabilidade do agravante, porquanto "além de sócio da empresa era também o destinatário das doações, conforme declarado no recurso" (fl. 218). Incidência da Súmula 7/STJ. 3. Agravo regimental não provido”. (TSE – AgR-REspe: 26124 SP , Relator: Min. FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13/11/2012, Data de Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 13/11/2012)

[3]A inelegibilidade referida no art. 1º, inciso I, alínea p, da LC nº 64/1990 não é sanção imposta na decisão judicial que condena o doador a pagar multa por doação acima do limite legal, mas possível efeito secundário da condenação, verificável se e quando o cidadão requerer o registro de sua candidatura, desde que presentes os requisitos exigidos” (Recurso Especial Eleitoral nº 38875, Acórdão de 11/11/2014, Relator(a) Min. GILMAR FERREIRA MENDES, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 229, Data 04/12/2014, Página 10/11 )

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    é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduada em Direito Público pela PUC-Minas e sócia do Marina Pimenta Advogados Associados.

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