Protagonista da história

"Sem dinheiro, instalação dos TRFs teve
de ser feita meio aos trancos e barrancos"

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22 de maio de 2016, 6h42

Spacca
O ministro Evandro Gueiros Leite gosta especialmente de uma frase do escritor britânico Bernard Cornwell, para quem a história é uma “musa caprichosa” e a fama, “sua filha injusta”. Pudera. Ele presidiu o Superior Tribunal de Justiça entre 1987 e 1989, foi fundamental para a instalação da Justiça Federal da forma como configurada pela Constituição Federal de 1988. A primeira homenagem pública a sua atuação só aconteceu este ano, por iniciativa do atual presidente da corte, o ministro Francisco Falcão.

A passagem citada por Gueiros está no livro O Forte, de 1994. Bernard Cornwell escreve romances históricos sobre a formação da Inglaterra e do povo inglês, mas o que chama a atenção do ministro é como ele traduziu a mensagem que parecer resumir passagens importantes de sua vida.

Foi Gueiros quem recebeu do presidente da Assembleia Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP) — ou “doutor Ulysses”, como seus contemporâneos o chamam —, a missão de instalar os tribunais regionais federais e o STJ. Antes da Constituição, havia o Tribunal Federal de Recursos e a Justiça Federal de primeiro grau. “Dr. Ulysses me deu seis meses para instalar os tribunais, mas não me deu dinheiro”, lembra o ministro.

Nesta entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico, o ministro Evandro Gueiros conta das “agruras” e desventuras por que passou para instalar seis tribunais sem dinheiro e sem boa vontade dos ocupantes de cargos poderosos da época. “Veja que nem todos são homens públicos”, ele diz.

Aos 95 anos, a vitalidade, a memória e a lucidez do ministro para analisar fatos que aconteceram há 25 anos impressiona. Tanto que quando ele diz tentar lembrar do que aconteceu, parece brincar. Fala isso para depois dar detalhes de episódios que sucederam sua posse na Justiça Federal, em 1967.

É quase desconhecido o capítulo sobre como a União, via Gueiros, recuperou o antigo prédio do Supremo Tribunal Federal, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. O edifício, inaugurado em 1909, estava em poder do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, dado como “presente” pelo ministro Lafayette de Andrada, então presidente do Supremo, ao desembargador Oscar Tenório em 1960, quando o STF se transferiu para Brasília.

Mas engana-se quem espera encontrar no ministro alguma ponta de rancor. O que há é clareza entre o que é a história e o que é a versão que ficou famosa. E nem se confunda isso com algum tipo de arrogância que chegou com a idade. “Já estou ‘abandonando os silêncios obsequiosos’, como disse no meu discurso no STJ”.

No mesmo discurso, definiu-se: “Sou arredio por natureza às homenagens recebidas em fórum púbico, por isso mesmo que, sem falsa modéstia, delas nem sempre me considero merecedor. Atribuo isso, talvez, às origens nordestinas que nos infundem uma simplicidade de vida quase patológica”.

Leia a entrevista:

ConJur — A ideia aqui é contar o início do STJ e da Justiça Federal. Ela veio do Tribunal Federal de Recursos?
Evandro Gueiros — 
Isso. Doutor Ulysses colocou lá e foi aprovado que o tribunal federal, que veio a ser o STJ, teria 33 ministros. Isso já veio do Tribunal Federal de Recursos. Ele tinha 19 julgadores, muita gente boa, muito trabalhadora, mas que não davam conta de tantos processos. Aí o Geisel, no chamado Pacote de Abril, aumentou pra 33. Na Constituição de 1988 o TFR foi extinto e foi criado o STJ, para dividir a competência com o Supremo. O STJ ficaria com a lei federal e o Supremo, com a Constituição. Depois o Supremo começou a requisitar mais poderes, acho que vaidoso pela perda da regulamentação da lei federal no Brasil todo, e deu essa confusão toda aí.

ConJur — Que confusão?
Evandro Gueiros — 
O Supremo está julgando tudo o que é matéria, até criminal. Terrível! O Supremo deveria dar a última palavra em constitucional. Mas pegar um julgamento criminal?! É uma coisa terrível. Não é possível que o Supremo se submeta a isso. Enfim. Ficou decidido que, além do STJ, para dar a última palavra em lei federal, seriam criados mais cinco tribunais regionais.

ConJur — Como foi a discussão sobre a inclusão do STJ na Constituição?
Evandro Gueiros — 
Criei uma comissão para tratar dos assuntos das emendas à lei que criou o STJ, a que foi para o Congresso e depois eles começaram a mexer. Organizei uma comissão de ministros que iriam ajudar a distribuir nossas emendas para aperfeiçoar a organização do tribunal. E conseguimos um deputado do Rio de Janeiro que nos entregavam as emendas já assinadas para preenchermos.

ConJur — Entregava emendas em branco?
Evandro Gueiros — 
Sim! Se fosse hoje ia todo mundo pra cadeia! Mas ninguém levou isso para a imprensa e tudo se resolveu ali.

ConJur — Mas como isso foi conseguido?
Evandro Gueiros — 
Consegui fazer com que o Bernardo Cabral, o relator da Constituinte, um homem ocupadíssimo, viesse aqui às 8h da manhã tomar café da manhã. Tinha tapioca, bolo, café, tinha de tudo. E ele vinha aqui, lia as emendas e ia daqui para lá. E aquele mesmo pessoal da comissão, o Pádua Ribeiro e outros que eram especialistas no assunto, ia lá no Congresso e apresentava as emendas que ele já tinha lido e já sabia quais eram. E assim aprovei 90% das emendas.

ConJur — Como foi a distribuição dos tribunais regionais?
Evandro Gueiros —
 Nós do tribunal é que deveríamos escolher, porque conhecíamos as zonas mais densas, com mais processos, mais gente e tudo mais. Tinha lá os critérios. Portanto, extinguiu um tribunal, criou outro e depois mais cinco e deu seis meses pra instalar tudo.

ConJur — Pouco, não?
Evandro Gueiros — 
Tinha um prazo pequeno porque na Constituição de 46 também tinha. Ninguém cuidou disso lá. Eu não estava lá. Se estivesse, dava um jeito, porque não sou administrador, sou um cumpridor de ordens. Eu executo. Mas não tinha dinheiro, e pra executar sem dinheiro é muito difícil. E, como se diz, juiz não administra. Mas eu sou persistente.

ConJur — Como resolveu?
Evandro Gueiros — 
Comecei a trabalhar pra arranjar imóveis. Quando eu cheguei à presidência do TFR, eu tinha pouco tempo, dois anos. A primeira coisa que eu fiz foi não demitir ninguém. Não dava tempo de ficar demitindo e procurando gente pro lugar. Tirei a camisa e fui trabalhar. Senão eu não fazia nada! Fui atrás de prédios para os tribunais regionais, nos lugares com maior densidade processual e nos centros mais habitados, que eram os critérios da Constituição. Mas não fiz isso sozinho, ditatorialmente, fiz em acordo com meus colegas. Então ficou dividido como está hoje: Brasília é a 1ª Região; Rio, a 2ª; São Paulo, a 3ª; Rio Grande do Sul, a 4ª; Pernambuco, a 5ª. Isso foi aprovado, mas com uma guerra aberta de Minas e Bahia contra mim. "E por que Pernambuco?", me perguntavam.

ConJur — Por que Pernambuco?
Evandro Gueiros — 
Por quê? É o Pequeno Heroico? Porque a Bahia é a Bahia, só tem território, mas julgava um processo por ano. Mas Pernambuco sempre foi o núcleo do Direito e em língua germânica. Até nisso somos diferentes, porque lá não tínhamos o sistema latino da família romano-germânica. Temos a Escola de Recife, que compete com São Paulo. Uma cidade de grandes jornalistas, só de Caruaru saíram três membros da Academia Brasileira de Letras. Um núcleo de pessoas que não são colonizadas, são colonizadoras. E foi aprovado. Só houve oito votos de divergência. Do Rio Grande do Sul, inclusive que veio o nosso querido ministro Teori Zavascki. Na época ele foi praticamente meu juiz no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

ConJur — E os prédios?
Evandro Gueiros — 
Não tinha dinheiro nem para comprar e nem para alugar os prédios, porque quando o doutor Ulysses, meu amigo, criou os tribunais, não deu o custeio. E aí comecei a procurar lugares para instalar os tribunais. Comecei por Brasília, e não foi possível porque o governo não tinha prédios para me ceder e instalar um tribunal com aquela quantidade de julgadores. Tinha que ser um prédio-palácio, era muita gente, muito movimento. Mas resolvi o problema.

ConJur — Como?
Evandro Gueiros — 
Havia o Edifício Áurea, que era alugado pelos proprietários ao Ministério do Planejamento. Mas a empresa pública que era dona do prédio foi extinta e o Planejamento continuou pagando. Então fui ao ministro — pessoalmente, porque não adianta mandar ninguém — e disse: “Ministro, o senhor está pagando o aluguel do prédio sem usar, e eu estou precisando dele. Então o senhor paga por mim, pro tribunal”. Era só tirar de uma cestinha e botar na outra, e foi feito. Mas aí precisava de um prédio também para o Conselho da Justiça Federal.

ConJur — Mas não tinha…
Evandro Gueiros — 
Fui à Caixa Econômica e consegui que eles me emprestassem seis andares de um prédio que eles tinham na Asa Norte. Aceitei um documento de empréstimo que também me dava a preferência de alugar quando eu pudesse. Uma beleza! Mas foi difícil. Agora 2ª Região, Rio de Janeiro…

ConJur — Achou prédio lá?
Evandro Gueiros — 
Tinha o prédio do BNH, uma beleza de prédio federal que estava desocupado. Fui ao presidente Sarney, mas levei comigo o procurador-geral da República Sepúlveda Pertence e o consultor-geral da República Saulo Ramos — não é brincadeira, não, levar dois graúdos desses, mas eles são meus amigos e queriam também ter representação no Rio. E propus ao presidente Sarney colocar lá o Tribunal Regional Federal, que eram 28 juízes federais, mais sete auditorias militares, um pedaço para a PGR e outro para a Consultoria-Geral. E a Caixa ficaria nos dois primeiros andares para fazer ali tudo o que precisasse: ela assumiria a limpeza e o condomínio e nós passaríamos para ela todo o dinheiro que arrecadássemos. O problema é que, tolo, sempre fiz economia pros outros.

ConJur — Como assim?
Evandro Gueiros — 
Propus e o presidente Sarney me disse: “Olha, presidente, eu não vou poder fazer isso, não, porque eu tenho de vender aquele prédio. Ele foi feito pelo FGTS”.

ConJur — Com dinheiro do FGTS?
Evandro Gueiros — 
Isso é prevaricação! Isso que a Dilma fez, essa coisa de pedaladas, é prevaricação. Ninguém sabe disso, mas é: ela tirava dinheiro da Caixa e de outros bancos e não pagava, aplicava em outra coisa. É prevaricação.

ConJur — E como resolveu com o presidente Sarney?
Evandro Gueiros — 
Ele me falou aquilo e eu questionei qual seria a solução. Ele me disse: “Escolha o prédio, que eu desaproprio”. E tinha lá um prédio na Rua Acre, era colossal, tinha 20 andares. Só que era do Instituto Nacional do Café, ligado ao Ministério da Indústria e Comércio. Fiz, então uma minuta de decreto, mandei pra Casa Civil, Sarney assinou e em três dias o prédio estava comigo. Agora, sabe por que essa dificuldade toda?

ConJur — Por quê?
Evandro Gueiros — 
Porque um desses que agora é auxiliar do Temer, que foi governador do Rio —e por isso não confio nele —, o Moreira Franco, quando pedi um lugar para instalar o tribunal, um levantamento dos prédios, ele me deu um lugar lá que era onde ficavam duas empresas de pesca. Eu não quis e fui ofensivo. Agradeci, mas disse que era uma grosseria. Eu lutando para conseguir um lugar para instalar um tribunal e vem um homem público e me manda um negócio desses? Consegui o levantamento pelo Tribunal de Contas, que o presidente era amigo meu, e ele disse que não tinha meio de fazer. O que tinha de coisa perdida ali, abandonada, sem vender, sem pagar aluguel, nada.

ConJur — Em São Paulo houve a mesma dificuldade?
Evandro Gueiros — 
Aquele Quércia me deu um prédio de 12 andares na Praça da República. Deu mesmo! E jogaram tanta pedra nele… Outro problema foi em Recife, minha cidade.

ConJur — Por quê? Falta de prédio?
Evandro Gueiros — 
O governador era o Miguel Arraes, e ele cruzou os braços e disse que não dava. Fui conseguir com o vice-governador o Palácio dos Despachos. Ele era amigo de meu irmão Eraldo, que foi governador de Pernambuco.

ConJur — Faltou só a 4ª Região.
Evandro Gueiros — 
Cheguei lá e fui falar com o Pedro Simon, governador do Rio Grande do Sul. Eu tinha muitos amigos no Sul, e aí Pedro me deu dois andares no Prédio do Trigo, lá na beira do rio. Acertei tudo. Não foi brincadeira! Eu não dormia. Mas chegava aqui, e minha mulher sempre vinha com um uisquezinho e dizia: “Não desista, continue”.

ConJur — Continuou?
Evandro Gueiros — 
Veja o que eu fiz: aluguei três caminhões da Polícia Federal, desses que apanhavam contrabando, paguei motorista e mandei lá para o Paraná para comprar mobília e instalar o gabinete. Mandei comprar tudo pela metade do preço, sem concorrência nem nada, e organizei tudo. Não foi brincadeira. As reclamações, e tudo mais, eram de matar um. Mas instalei tudo e resolvi fazer no mesmo dia no Brasil todo. Era pra depois não dizerem que eu estou favorecendo um e não o outro. Depois precisei daqueles caminhões cumbuca pra levar os processos, que mandei desde Brasília até o Rio Grande do Sul, com guarda. Mandei com receio, mas mandei. Isso tudo foi feito meio aos trancos e barrancos porque não havia dinheiro, mas eu tentei.

ConJur — Tentou e conseguiu, pelo jeito.
Evandro Gueiros — 
Não consegui, não! Vou contar como as coisas aconteceram: tem lá o artigo 93 da Constituição, que diz que as custas forenses serão empregadas no custeio da Justiça. Aí fui ao ministro da Fazenda [Maílson da Nóbrega] e falei que precisava desse dinheiro, que precisava de um aumento. Ele disse: “Eu vou é reduzir o que vocês têm”. Citando Aliomar Baleeiro, respondi: “Não estou na Praça dos Três Poderes de pires na mão. Eu vou entrar com uma ação de prestação de contas contra o senhor. Onde o senhor está colocando as minhas custas?” Saí de lá e fui à Câmara procurar os relatores do Orçamento Fiscal.

ConJur — Quem eram?
Evandro Gueiros — 
O José Serra e o Nelson Jobim. Fui lá e pedi dinheiro, e eles disseram que não tinha, que o Orçamento estava cada vez menor. “Sim, eu tenho dinheiro, sim. Só que vocês estão usando. Que buraco vocês estão tapando?”, eu respondi. Estavam pedalando, né? Pedi pra eles criarem um fundo, então, com esse dinheiro, que eu usaria por meios legais. “Hoje não se usam mais fundos”, eles disseram. Saí de lá com o rabo entre as pernas, infeliz e sem conseguir o dinheiro. Eu fiz foi por milagre!

ConJur — Pelo que contam por aí, milagre não foi.
Evandro Gueiros — 
Não foi um milagre total porque eu fui ao doutor Ulysses e pedi a ele alguém que me conseguisse o dinheiro. Disse que ele tinha me dado seis meses, mas não tinha dado o dinheiro. E eu precisava de alguém para pedir no Ministério da Fazenda. Pedi o rapaz que estava no Ministério da Ciência e Tecnologia, porque eu já tinha solicitado e não me deram.

ConJur — Isso já era para instalar o STJ?
Evandro Gueiros — 
É. Eu instalei o STJ, comecei as obras, sem extinguir o TFR. Fui subindo. Subi para o segundo andar do prédio do TFR e comecei a trabalhar lá. Peguei tudo aquilo que eu trouxe do Sul, aproveitei o que eu tinha, enfim, renovei o que dava para instalar o novo tribunal. E agora você me pergunta: mas onde você ia colocar tudo isso se não havia dinheiro para nada?

ConJur — Pois onde o senhor ia instalar o tribunal, se não havia dinheiro?
Evandro Gueiros — 
Pois é. Sabe o que aconteceu? Eu estava no meu gabinete no TFR quando entrou o presidente da Novacap e disse: “Presidente, o senhor quer um presente?” “Quero!”, respondi. Ele contou, então, que tinha uma área de 40 mil metros quadrados numa zona lá, non edificandi, que é onde o STJ está hoje. Era proibido, mas ele me deu. Mas era pouco. Eu sabia que a presidente do conselho da Novacap, uma senhora chamada Cauma, mas que não era nada calma, não permitiria. Ela era filha de um daqueles fundadores de Brasília, jamais permitiria. Sabe o que eu fiz?

ConJur — O quê?
Evandro Gueiros — 
Eu a convidei para tomar um café comigo, e quando ela chegou eu disse que precisava sair, mas que ela poderia conversar com Armando Rollemberg, ministro também, mas que foi do Partidão. Era meu amigo, um grande homem: teve 14 filhos, 60 netos, trabalhava muito. Ele só tinha o problema ideológico, do que ele achava que devia ser e eu não achava. Ele se dava muito bem com essa mulher, e saiu de lá com os 40 mil metros quadrados para instalar o STJ, e Cauma ainda cedeu mais 40 mil. Fiquei com 80 mil metros quadrados! Mas aquilo não era obra de um homem só. Eu botei a pedra fundamental, e deixei para o meu substituto, o vice-presidente, ministro Bolívar de Brito, continuar. E foi sob a direção dele e de outros que foi contratado aquele arquiteto, comuna e tudo mais, mas que não tinha o traço vermelho e fez aquela beleza.

ConJur — Muita gente reclama.
Evandro Gueiros — 
Eu não faria. É muito grande para Brasília, para um tribunal só. Aquilo é lugar para uma universidade, porque é um universo, ninguém se conhece, ninguém se encontra. Mas é uma beleza, e ele fez barato, o arquiteto. Portanto, as coisas foram feitas assim. Mas você vê que nem todos são homens públicos.

ConJur — Mas também houve grandes discussões sobre a estrutura legal, não houve?
Evandro Gueiros — 
Quando eu fiz a estrutura do STJ, eu tive de usar funcionários requisitados de outros tribunais. Aí veio um senador Bisol, do Rio Grande do Sul, mancomunado com outro lá, e disse que isso era um trem da alegria. Eu então procurei um amigo meu do Sul, que depois se tornou importante na Abecip, um desses caras que te ajudam de graça, e ele disse para o Bisol me ligar. Ligou e disse: “Estou moralizando o Senado”. Respondi: “Mas o meu tribunal já está moralizado. O que você quer que eu faça?” “Que você avalize a lei”. Avalizar a lei. Você já viu isso em algum lugar? Mas eu fui lá e disse “avalizo!” Nunca tinha visto isso, mas fiz.

ConJur — Como?
Evandro Gueiros — 
Eu estava numa sessão quando chegaram meus auxiliares dizendo que “o homem está pedindo o aval”. Suspendi e chamei William Patterson — se algum dia vocês ouvir esse nome, se ajoelhe. É um homem maravilhoso, foi consultor-geral da República e era uma pessoa em quem eu confiava. Eu disse: “Sobe correndo e faz um ofício avalizando a lei” E ele: “Mas como eu vou fazer isso?!” “Invente!”, eu disse. Patterson foi lá e fez um negócio bacana, eu assinei e a lei foi aprovada por unanimidade.

ConJur — Unanimidade? Deve ser o único caso da história.
Evandro Gueiros — 
No tribunal e no Congresso, por Deus do céu! Mas teve coisa pior. Uma coisa incrível. Eu estava no setor de serviços, no TFR ainda, com o Francisco de Trindade — Limpa Trilho era o apelido, porque ele trabalhava tudo, não tinha processo pendente. A gente ficava ali trancado, porque nosso cronograma era de horas, não era de dias. Aí fui interrompido por um assessor dizendo que estava ali um advogado importante, presidente da Ordem, veio lá do Rio de Janeiro para falar comigo. Era aquele que foi ministro da Justiça, não lembro o nome [era o então presidente do Conselho Federal, Marcio Thomaz Bastos].

ConJur — O que ele queria?
Evandro Gueiros — 
Tinha ido me dizer que sabia que eu estava escolhendo os nomes para compor os tribunais regionais federais e ele ia entrar com um mandado de segurança. Tinha ido lá me avisar, porque discordava das escolhas. Eu disse: “Doutor, que maravilha que o senhor vai fazer isso! Aí se eu estiver errado, o senhor corrige!” Eu vou dizer pro cara “não faça isso” pra depois ele sair por aí dizendo que eu prometi isso e acertei aquilo? Eu, não. Ele que me corrija se eu estiver errado.

ConJur — E ele entrou com o mandado de segurança?
Evandro Gueiros — 
Não! Ele foi lá me fazer pressão, e isso é uma forma de corrupção.

ConJur — Houve algum problema na escolha dos juízes para os tribunais regionais?
Evandro Gueiros — 
Esse é um detalhe interessantíssimo. Escolhi 68 juízes federais e mandei a lista para o ministro da Justiça, que era o Oscar Correia, um dos grandes homens deste país. Era um gaúcho que trabalhava feito louco, malcriado, mas que comigo era manso. Ele foi ministro do Supremo. Você olhava pro prédio do Supremo, e tudo apagado, só aquela luzinha acesa lá em cima. Era o gabinete do Oscar Correia. “Agravo de instrumento”, ele dizia. Um dia fui surpreendido, porque ele me chamou e pediu que eu levasse a lista dos juízes ao Sarney. Levei, e Sarney concordou, mas queria que uma comissão examinasse. Quando saímos de lá, já na saída de automóveis, ele vira e me diz “tá aqui a lista, você escolhe”. Eu disse que aceitava e fui para o tribunal.

ConJur — Escolheu sozinho?
Evandro Gueiros — 
Como diz o ditado, “macaco velho não bota a mão em cumbuca”. Eu, escolher sozinho? Aí vaza esse negócio e começam a dizer que eu fiz o que eu queria, preteri os inimigos etc. Eu, não. Convoquei o Trindade e o Patterson e escolhemos ali. E teve gente que eu não gostava, mas que era bom juiz e acabamos escolhendo. Assim como tive amigos que acabaram não sendo escolhidos. Um grande amigo não foi escolhido porque se descobriu que ele contratou um secretário que vendia sentenças dele.

ConJur — O senhor foi recentemente homenageado no STJ, mas soube que houve um pedaço do discurso que o senhor não leu. Por quê?
Evandro Gueiros — 
Meu sobrinho, o desembargador federal Frederico Gueiros, me pediu, para que eu não cometesse uma grosseria com a ministra Ellen Gracie, que não conhece a história do que eu contaria.

ConJur — Que história?
Evandro Gueiros — 
Tomei posse como juiz federal em 1967, aqui no Tribunal Federal de Recursos. Éramos cinco juízes e cinco suplentes. Quando chegamos ao Rio não tinha lugar. O TFR nunca teve primeiro grau, então nenhum daqueles homens sabia administrar nada. Decidiu-se que ficaríamos na antiga sede do Supremo Tribunal Federal, na Avenida Rio Branco. Mas ao chegarmos lá descobrimos que ela pertencia ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ali estavam instalados os juízes de Fazenda Nacional e do Tribunal de Alçada.

ConJur — Mas por que o prédio estava com o TJ?
Evandro Gueiros — 
Em 1960, quando o Supremo foi transferido para Brasília, o presidente do STF, ministro Lafayette de Andrada, transferiu o prédio para o presidente do TJ, Oscar Tenório, por meio de um ofício. Por ofício! O cara fez um ofício! Nunca se viu isso. É por escritura! E se o prédio é público tem que registrar no patrimônio da União. Aí ficamos sem imóvel.

ConJur — Como resolveu?
Evandro Gueiros — 
Eu era diretor do foro, e oficiei o procurador da República Carlos Waldemar Rollemberg Acioli para que provocasse o procurador-geral da República para este que fosse ao Supremo pedir a regularização da situação. O ministro Moreira Alves, então, deu uma liminar nos devolvendo o prédio.

ConJur — Mas por que a ministra Ellen se ofenderia com essa história?
Evandro Gueiros — 
Em 2006, meu sobrinho era presidente do TRF da 2ª Região ela, presidente do Supremo. Eles assinaram um comodato para transferir os móveis da antiga sala de sessões do Supremo para o Conselho da Justiça Federal. Eles estavam lá no prédio ainda, sem utilidade. A antiga disposição da sala de sessões, que era usada pelo Supremo desde a inauguração do prédio, em 1909, ficaria em exposição. Fomos à inauguração, e o ministro Moreira Alves quando viu, se encantou. Eu, então, contei que ele era parte fundamental daquela história e ele respondeu: “Simila similibus curantur [o semelhante pelo semelhante se cura]”.

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