Sigo. O leitor e tradicional comentarista da ConJur Marcos Alves Pintar remeteu duas decisões judiciais que demonstram, simbolicamente, a grave crise que atravessa a aplicação do Direito no Brasil. A primeira é de 6/5/2016, oriunda das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais de São Paulo, verbis:
"Ademais, o julgador não está obrigado a responder a todos os argumentos suscitados pelas partes, máxime quando tenha razões suficientes para fundamentar sua decisão".
Detalhe: tratava-se de embargos de declaração interpostos no regime do CPC 2015. O excerto acima é autoevidente. No mínimo, três dispositivos do CPC foram ignorados.
A outra decisão é de 08/04/2016, originária da Vice-Presidência do TRF-3:
"Ressalte-se, a esse respeito, que o julgador não está vinculado aos preceitos normativos ou fundamentos legais indicados pelas partes, reclamando-se apenas que decida a controvérsia de forma fundamentada, em consonância com o princípio da persuasão racional ou livre convencimento motivado".
Como assim, excelência? Está vinculado a quê? A sua consciência?
Há já centenas de julgados descumprindo o novo CPC. As decisões acima são a ponta do iceberg. Falei disso na coluna da semana passada (ler aqui). Qual é a razão de o Judiciário se comportar desse modo? Simples. E complexo. O Brasil forjou um imaginário pelo qual a decisão judicial depende da convicção pessoal do magistrado. Isso foi naturalizado, tornado senso comum. O lema “decido conforme minha consciência” foi introjetado e reproduzido nos livros e nas salas de aula. É absolutamente “normal” — e isso pode ser visto nas dezenas de livros sobre o novo CPC que circulam — que o livre convencimento e a livre apreciação sejam o norte do processo. Civil e penal. Por isso, nunca floresceu uma teoria da decisão no país. Claro: se os juízes decidem conforme sua consciência e por livre convencimento, por que haveria de existir uma teoria da decisão? Impossível teorizar a consciência. Se a consciência tivesse uma consciência, ela mesma fugiria de si.
Sem problema. Faz escuro, mas eu canto, digo com o poeta Thiago de Melo. Continuarei a cobrar responsabilidade política dos juízes e tribunais. Continuarei a cobrar o cumprimento da Constituição e das leis. Continuarei a teorizar sobre isso, para mostrar as origens dessa problemática. Há anos procuro mostrar à comunidade jurídica o tiro no pé que é para os advogados essa crença serôdia de que juízes possuem liberdade para julgar. Li um livro de um importante processualista penal em que, paradoxalmente, critica a verdade real, mas defende o livre convencimento motivado. Tem até tese de doutorado sobre isso. Pois é. Por isso é que a cada momento os causídicos são surpreendidos. Evidente. O que queriam? Se a decisão advém da subjetividade e do subjetivismo do decisor[1], como ter previsibilidade? No Brasil, com o domínio desse “positivismo jurisprudencialista”[2], poderiam hoje ser fechados os cursos de pós-graduação e as faculdades de Direito… E ninguém daria falta. Aliás, na própria pós-graduação continua-se a dizer coisas desse tipo. Assim, o que se produz não tem influência nos tribunais. Ali, decide-se como se quer. Mínimos limites semânticos são ultrapassados e rasgados todos os dias. Princípios inventados no varejo servem para derrotar as leis no atacado. Princípios são equiparados a valores por professores que fizeram doutorado. E pelos que não fizeram. Bem, tanto faz. A questão que fica é: o que é isto o Direito?
As razões
Sobre o que é o Direito já muito escrevi aqui na ConJur. Hoje quero insistir nas razões científicas pelas quais os juízes decidem desse modo. Uma professora mexicana, Mariflor Rivero, em livro sobre Gadamer, cujo título é Diálogo y Alteridad, faz uma crítica mais radical do que a minha ao solipsismo, raiz de todo esse “livre apreciar o Direito”. Ela tem uma pergunta genial: como se pode dar conta de um significado se este foi produzido subjetivamente e está mediado pela própria subjetividade do intérprete? Bingo. Ela mostra que o ponto crucial para a hermenêutica é o combate ao subjetivismo. Pensem nisso numa relação com o Direito e a questão do livre convencimento, o problema do protagonismo, do consequencialismo. É um prato cheio.
É por isso que, com Richard Palmer, podemos perguntar: quando o subjetivismo se coloca na base da situação interpretativa, o que é interpretado senão uma objetificação? Palmer, aqui, trata da raiz do solipsismo. Ou seja, uma objetificação do mundo a partir de uma subjetividade transcendental ou de um voluntarismo relativista que sustenta o solipsismo do sujeito.
E vamos a um francês, Antoine Garapon, crítico ferrenho do ativismo. Ele associa a decisão judicial a um critério de desejo, de vontade daquele que julga, afirmando: “o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”. Ainda, menciona que, neste contexto, o ativismo “revela-se sob duas formas: a) sob a de um novo clericalismo dos juristas, se a corporação dos juízes for poderosa, ou, b) pelo contrário, sob a forma de algumas individualidades sustentadas pelos media, se a magistratura não tiver grande tradição de independência”.
Poderia parar por aqui. Estas são citações de textos e livros que venho escrevendo há 20 anos. Fiz uma opção por um Direito calcado em paradigmas filosóficos. Somente assim é possível fazer desleituras (Bloom e Stein) das capas endurecidas de sentidos que cobre aquilo que se pode denominar de “um Direito no Estado Constitucional e Democrático de Direito”, com seu grau de autonomia, desrespeitado dia a dia exatamente por esses critérios de vontade. Por favor, não é implicância minha. Não inventei isso. Apenas tento socializar esse conhecimento teorético para fazer ver que a aplicação do Direito não pode depender de subjetivismos. Claro que o Direito não está contido na lei, como se as hipóteses de aplicação já estivessem ali contidas. Mas também o Direito não é o que o juiz ou ministro dizem que é. Minimamente, onde está escrito “presunção da inocência” deve-se ser…“Presunção da inocência”. Esse sentido não pode cambiar sob pretexto de vontades, politicas, moralidades… Ou até mesmo de estatísticas, como quis fazer ver o ministro Roberto Barroso para justificar a decisão no HC 126.292 (ver aqui).
Com todos esses elementos, fica fácil identificar as razões pelas quais juristas dos mais variados matizes (juízes e processualistas, principalmente) insistem na decisão conforme a consciência, no livre convencimento, mesmo que a lei processual civil tenha expurgado a palavra “livre”. Não me preocupo com as críticas. Preocupa-me, sim, a democracia e o sofrimento dos advogados nas suas lutas cotidianas contra o desconhecido, contra o excepcional, contra o arbítrio…
Não abdicarei dessa luta. Sobremodo me preocupo com o silêncio eloquente da classe dos advogados, que se vergam cotidianamente ao látego das decisões ad hoc. Como indagava Heleno Fragoso: por que os advogados, quando recorrem de uma decisão iníqua e mal fundamentada, qualificam-na de “venerável decisão de fls”? Aqui, a psicanálise poderia ajudar a explicar o discurso dos juristas. Para ir mais longe, diria que é o discurso da servidão voluntária (dos juristas), título da obra de Etienne de la Boetié. Nela, em 1548, falava das relações entre os súditos e o tirano. Examina, já então, as razões pelas quais os indivíduos estabelecem uma relação de súdito de forma voluntária. Sugiro a leitura. Urgente. Como canja, trago a primeira razão pela qual os homens servem voluntariamente, segundo Boetié: é que nascem servos e são criados na servidão. Traduzindo para o juridiquês: nascem nessas faculdades que temos (ver aqui), crescem nos cursinhos (ver aqui)[3], fazem (contratam?) coachings para concursos (ver aqui), leem esses livros que estão por aí aos borbotões[4] e, depois, já est(ar)ão prontos para servir. Só que uns escapam e serão os que mandarão. E farão o que quiserem. Dá para entender? Mais explicadinho é impossível.
Encerro com J.F Mattéi, com seu La barbarie intéurieure: é no interior do homem (no subjetivismo) que precisamos detectar as tendências a cair na barbárie. Ela está no subjetivismo. E Ernst Bloch diz que, deixados a nós mesmos [solipsismo], somos ainda vazios. E Hannah Arend, Horkheimer e Adorno são impiedosos para com o sujeito da modernidade, chamado pelos dois últimos de “despótico”. Essa sujeição de tudo que é natural ao sujeito leva ao obscurantismo e ao autoritarismo. Com toda a razão. E nem precisei apelar à Gadamer.
Em uma frase: subjetivismo é pensar que nada vindo de fora (de si) pode impor limites ao intérprete. Ora, a lei e a Constituição (mais a doutrina e a jurisprudência) são essas coisas “de fora”. Em face disso, pergunto: quando os juristas irão perceber que, quando vamos ao Judiciário, buscamos uma resposta daquilo que está do lado de fora do juiz e não do que está dentro?
Post scriptum: E o juiz afastou a mulher do governador depois de consultar os amigos do Facebook! Vem ai uma nova teoria das fontes!
Para ilustrar o que estou dizendo, passo para os leitores a notícia de que o juiz de Direito que afastou a mulher do governador de Minas consultou, antes de decidir, os colegas numa página fechada do Facebook para saber o que eles achavam (ver aqui). A notícia é autoexplicativa. Não é preciso dizer nada sobre ela. Só uma coisa me intriga: quem teria sido o caracídeo (hopias malabaricus) que fez a trairagem do grupo? Ou seja: quem vazou?
[1] Uma mostra do ponto a que chega o subjetivismo é a decisão que absolve o réu pela ausência de testemunho negado anteriormente… Pelo próprio juiz (ver aqui).
[2] Entendo por realismo tardio ou jurisprudencialismo positivista o Direito definido a partir de um (certo) enfoque empírico, sem referência a elementos dotados de objetividade (em termos de metaética podemos chamar a isso de não cognitivismo moral). Isso é o que, de forma mais sofisticada (por aqui vulgarizam isso), já se podia ver em Bentham, Ihering, Geny, Ehrlich, nos realismos jurídicos e nos voluntarismos em geral. Trata-se de um Estado jurisprudencial 2.0.
[3] Antes que se queixem aqueles que são professores de cursinhos que “não são assim”, respondo que de antemão faço a ressalva, afirmando: nem todos são assim. Como em tudo que é lugar, há trigo e há joio.
[4] Aqui poderia colocar um link sobre os livros tipo direitos facilitados, mastigados, em palavras cruzadas etc. Esses compõem uma espécie de lumpem epistêmico. Mas o furo é mais embaixo. O mais grave são os manuais e compêndios que, sob a aparência de traduzirem uma dogmática jurídica “mais sofisticada”, confundem conceitos, espalhando equívocos conceituais. Poderia elencar dezenas deles, como: a falsa dicotomia “juiz boca-da-lei-juiz dos princípios”, “princípios como valores”, “pamprincipialismos”, conceitualizações sobre a verdade que não resistem a cinco segundos de filosofia, aplicação da ponderação “direta”, com um “princípio” “em cada mão”, uso dos princípios gerais do Direito misturando-os com os princípios constitucionais, uso da metodologia de Savigny, a tese de que aplicação da lei é um ato de vontade etc. E mais dezenas de equívocos. Tempestade perfeita.