Controle maior

Crise forçará gestor a observar responsabilidade fiscal, diz desembargador

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19 de maio de 2016, 11h43

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A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei 101/2000) está em seu auge. Com a crise econômica e política que vive o Brasil, a norma — que no último dia 5 de maio completou 16 anos — ganhou notoriedade e os seus conceitos passaram a ser mais debatidos na sociedade. Para o desembargador Marcus Abraham, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES), esse é o principal legado que o atual momento deixará.

“É um ponto positivo. Jogaram-se luzes para a questão fiscal, que até anos atrás ninguém falava. Eu diria que, a abertura do processo de impeachment, independentemente do mérito e do resultado, deixará como legado para nós e os governantes que não se pode mais descuidar e desobedecer a LRF”, avalia o desembargador.

Em entrevista à ConJur, Abraham afirma que a LRF possibilitou a organização do país na primeira década de vigência, mas o afrouxamento no controle levou ao quadro de desorganização fiscal, que atinge não só a União, mas também estados e municípios.

Na avaliação do desembargador, não haverá saída para a crise enquanto os governantes não observarem os dispositivos da lei quanto à despesa com pessoal, concessão de benefícios fiscais e endividamento público, que é extremamente oneroso no Brasil.

“Nos últimos 12 meses, tivemos só de juros R$ 500 bilhões [com a dívida pública]— cinco vezes o orçamento da saúde e da educação. Imagine o que poderíamos fazer se não tivéssemos esse gasto. Mas também não há mágica. Não dá simplesmente para parar de pagar. Há que se administrar melhor. Aí entram as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre as metas fiscais”, destaca.  

Especialista em Direito Tributário, Abraham lança nesta quinta-feira (19/5), a partir das 17h30, no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, a obra Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada, em que analisa os dispositivos da norma segundo a jurisprudência dos tribunais superiores e de contas. A obra é prefaciada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Luís Felipe Salomão.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor avalia esses 16 anos da lei?
Marcus Abraham —
Foram muito significativos e por dois motivos. Primeiro, porque vivenciamos, nos 10 ou 12 primeiros anos de vigência da lei, um ciclo de ajustes fiscais nos três níveis da federação: na União, nos estados e nos municípios. E ficou muito claro que havia luz no fim do túnel. Após a edição da LRF, o caos fiscal que assolava o país ao longo da década de 1990, de alguma maneira, acabou sendo superado. Tanto que vivemos a primeira década dos anos 2000 com estabilidade econômica e inflacionária, assim com uma dívida pública relativamente bem administrada. Todas as práticas anteriores, como as heranças fiscais que um governo deixava para o seguinte, acabou sendo melhor administrado. E vivemos, então, um ciclo positivo. De fato, temos que reconhecer que, nos últimos anos, não apenas no caso da União, mas também dos estados e dos municípios, talvez tenha se afrouxado um pouco os controles. Temos, por exemplo, a situação do Rio de Janeiro, que mal consegue pagar os salários dos servidores públicos, as aposentadorias, o serviço de saúde e de segurança pública. O que percebemos é que demos alguns passos adiante com a LRF, mas agora estamos dando um passo para trás. Minha esperança como cidadão e professor da área, é que estejamos dando um passo para trás para dar depois dois, três, quatro para frente. O aspecto positivo da bagunça fiscal que vemos hoje é que o cidadão se deu conta da importância da LRF e de participar desse processo, cobrando dos seus governantes. Acho que é um ponto positivo. Jogaram-se luzes para a questão fiscal, que até anos atrás ninguém falava. Eu diria que, a abertura do processo de impeachment, independentemente do mérito e do resultado, deixará como legado para nós e os governantes que não se pode mais descuidar e desobedecer a LRF.

ConJur — O momento atual vai influenciar a forma como os governantes encaram a LRF?
Marcus Abraham —
Acredito que sim. Com esse processo de impeachment, independentemente do mérito e do resultado, todos receberam uma lição: a e que as leis de Direito Financeiro, as leis orçamentárias e a LRF precisam ser respeitadas. Esse é grande legado desse ano conturbado. Essas leis são imperativas e precisam ser respeitadas para o bem da república.

ConJur — Nesse quadro de desorganização das contas públicas, como o senhor avalia as penas previstas pela lei?
Marcus Abraham —
A LRF tem todo um mecanismo de controle, fiscalização e punição. A partir dela, o Código de Penal foi alterado — no artigo 359, letras a, b, c, d, e, f, g e h — para instituir os tipos penais para a violação das regras fiscais. O grande ponto, diria, é que as penas, de fato, são brandas para o gestor; mas, principalmente, o que precisamos mudar são os sistemas de acompanhamento e controle. Os tribunais de contas precisam ser mais rigorosos. Nesse aspecto, o Tribunal de Contas da União mostrou uma mudança em sua postura, principalmente a partir do julgamento das contas [da presidente afastada, Dilma Rousseff], no ano passado. Acho que isso sinaliza uma mudança comportamental.

ConJur — Em um artigo recente o senhor classificou a LRF como uma lei dinâmica e inacabada. O que o senhor quis dizer com isso?
Marcus Abraham —
É dinâmica e inacabada principalmente no sentido da sua interpretação. O dinamismo se dá quando o aplicador precisa aplicá-la diante das circunstâncias, do momento que se está vivendo. A LRF tem um espírito por detrás dela. E a sua aplicação precisa ser exercida dentro desse enfoque, que se baseia em três pilares. O primeiro é o equilíbrio fiscal, não gastar mais do que se arrecada. Esse talvez seja hoje o nosso grande problema. Ao se gastar mais do que se arrecada com os tributos ou receitas originárias, o estado precisa pegar empréstimos e, com isso, aumenta a dívida pública. A dívida pública brasileira tem um custo elevadíssimo de manutenção, com os juros e encargos. E isso desvia os gastos com os direitos fundamentais, como saúde, educação, previdência e segurança pública, porque parte dos recursos acabam sendo drenados para pagar juros da dívida pública. Nos últimos 12 meses, tivemos só de juros R$ 500 bilhões — cinco vezes o orçamento da saúde e da educação. Imagine o que poderíamos fazer se não tivéssemos esse gasto. Mas também não há mágica. Não dá simplesmente para parar de pagar. Há que se administrar melhor. Aí entram as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre as metas fiscais. Atingir metas fiscais é, de alguma maneira, administrar esses recursos para aos poucos reduzir essa dívida pública.

ConJur — Quais são os outros dois pilares?
Marcus Abraham —
O segundo é a transparência fiscal, que vai além de meras publicações ou de disponibilizar o orçamento e os gastos na internet. Tem que haver uma educação fiscal, para que o cidadão possa entender e acompanhar. A transparência fiscal também tem a ver com o princípio da sinceridade orçamentária. Quando o governante elabora um projeto de lei orçamentária e o Congresso aprova, aquilo se torna um esboço do que vai ser feito no ano seguinte, pois sinaliza para o cidadão e para as instituições um projeto de administração. Agora se você cria um orçamento fictício, de alguma maneira você viola a boa-fé do cidadão, que espera aquelas ações e programas. Transparência fiscal é dar a informação, educar o cidadão e, sobretudo, fornecer informações sinceras e não ilusões. O terceiro pilar é o planejamento, composto pela tríade orçamentária — ou seja: o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual —, que todos os governos têm e funcionam de maneira interligada e harmônica. A LRF traz mecanismos que permitem um planejamento em longo prazo, com controles para verificação das metas, dos programas e das ações que estão sendo feitos para que não sejam interrompidos nos governos seguintes.

ConJur — O senhor acha que a LRF ainda é atual ou precisa ser alterada?
Marcus Abraham —
Acho que é uma lei atual. O que se precisa é dar mais efetividade as suas previsões. Precisamos ter mais respeito às previsões da LRF.

ConJur — Tramita no Congresso uma proposta para ampliar o percentual da Desvinculação das Receitas da União, dos Estados e dos Municípios. Como o senhor vê isso?
Marcus Abraham —
Me preocupa muito. A DRU terminou no final do ano passado. Pretendia-se prorrogá-la e [para isso] há um projeto tramitando no Congresso. O que me preocupa, em primeiro lugar, é o aumento do percentual de desvinculação [proposto], então de 20% para 30%. Isso preocupa porque ao desvincular receitas que têm destinação específica, como para a saúde, a educação e os direitos sociais, elas acabam sendo destinadas para outros fins que, no meu modo de ver, não são tão prioritários como esses. Sou contra esse tipo de proposta.

ConJur — Uma crítica é que a lei é muito estreita com relação à execução do orçamento e não dá margem para o gestor atuar.
Marcus Abraham —
Esse é o grande argumento: que o governo precisa de flexibilidade para poder administrar. O governante é eleito a partir de um fundamento, que está na Constituição Federal. Então, ele tem um objetivo a ser seguido, que independe de ideologia e política partidária. Ele tem um compromisso prévio, que é atender aos preceitos constitucionais. E a Constituição estabelece direitos fundamentais e sociais. A Carta tem objetivos para com a nação. Então essa margem de administração, a meu ver, é meramente operacional, para atender aos fins que a Constituição determina. Ao modificar esse desenho constitucional, de alguma maneira você está mitigando os objetivos que a Constituição estabelece. Daí porque me preocupa a desvinculação das receitas da União, principalmente nesse nível que querem, de 20% para 30%.

ConJur — O senhor acha que há saída para a crise atual?
Marcus Abraham —
Sim. Vivemos uma série de problemas fiscais, como o excesso de despesa com pessoal. Esperava-se uma arrecadação maior e com a redução da economia, a indústria e o comércio acabam vendendo menos, gerando menos tributos e então temos uma arrecadação menor. O cidadão também perde seu emprego, deixa de pagar tributos e de consumir, e a arrecadação cai. Mas a despesa com pessoal mantém-se. Então, há esse déficit, que diversos estados vivem hoje. Outra coisa que me preocupa são as renuncias fiscais, que foram concedidas sem se respeitar a LRF. O artigo 14 estabelece mecanismos para concessão de benefícios fiscais, dentre eles a compensação para a renúncia de receitas. Diversos estados e até pela União concederam inúmeras renúncias sem estabelecer o impacto orçamentário e sem implementar as medidas de compensação. O grande problema no Brasil é não conseguir mensurar os resultados de uma renuncia fiscal. Outro aspecto que também me preocupa nesse momento é o tamanho da dívida pública que, em especial no Brasil, tem um custo elevado. Quanto mais dívidas, mais juros têm que ser pagos e, se a taxa de juros é uma das maiores do mundo, isso acaba sendo pago em detrimento de outras coisas que deveriam ser feitas, como escolas e hospitais segurança. Esses são os grandes problemas que vivemos hoje. Tem solução. A primeira é passar a respeitar a lei orçamentária. E não tem mágica. Estabelecer prioridades de gastos, reduzir os gastos supérfluos, tornar o estado mais eficiente. Mas aí já entramos em uma seara que não é a minha, que é a econômica…

ConJur — A questão fiscal deságua no Judiciário, como a dívida dos estados, que parou no Supremo Tribunal Federal. Como o senhor avalia esse caso?
Marcus Abraham —
O STF deu um prazo de 60 dias para que os estados negociem com a União. Não será uma negociação simples. Pelo lado da União, ao abrir mão de parte desses juros, o déficit dela vai aumentar, porque ela contava com essas receitas. Se hoje se mensura o déficit em torno de R$ 140 bilhões, ao abrir mão dessa receita, a União vai aumentar seu próprio problema fiscal. Por outro lado, ela precisa de uma solução porque, em um dado momento, vai acabar tendo que intervir em algum estado, como prevê a Constituição Federal. Por outro lado, os estados também abusaram, gastaram demais. Enfim, eles têm que encontrar uma solução.

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