Academia de Polícia

Interpretação sobre foro privilegiado atrapalha investigações policiais

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

17 de maio de 2016, 10h16

Spacca
Caricatura Henrique Hoffmann [Spacca]A aplicação da lei penal ao autor de infração penal não deve prescindir de uma investigação preliminar, levada adiante pela Polícia Judiciária (artigo 144 da CF) e moldada por uma série de garantias que exsurgem da própria Constituição. Afinal, como já expusemos noutra oportunidade[1], o inquérito policial não é instrumento unidirecional, porquanto projeta dupla função: preservadora e preparatória[2]. A ausência de compromisso com a acusação ou a defesa permite ao delegado de polícia conduzir a apuração criminal (artigo 2º, §1º da Lei 12.830/13) de modo a evitar futuras acusações infundadas, conciliando garantismo e efetividade.

De outro norte, é cediço que a Constituição Federal garante a diversos agentes públicos a prerrogativa de ser processado e julgado perante um tribunal, excepcionando a regra geral de início do processo perante o juízo singular.

Parte dos estudiosos não enxerga inconstitucionalidade no foro por prerrogativa de função[3], pois a fixação de competência originária se justificaria pelo fato de o órgão colegiado possuir maior isenção e experiência do que as instâncias ordinárias, conferindo ao detentor de foro especial mais autonomia no desempenho de sua missão[4].

Todavia, pesam sobre o instituto fortes críticas, na medida em que consistiria em outorga de maior valor à noção de autoridade do que ao princípio da isonomia, herança de uma legislação elitista, típica de regimes baseados no prestígio do poder e na proteção das pessoas mais abastadas[5]. Protegeria mais a pessoa do que o desempenho da função pública, ao se constatar que a competência penal não guarda necessária vinculação com o exercício das atribuições do cargo[6]. As estatísticas [7] das cortes superiores revelariam que o foro por prerrogativa de função incrementa a morosidade dessas investigações e processos, culminando na extinção da punibilidade e descrédito do sistema[8].

Essa prerrogativa vem de longa data, tendo sido estabelecida em sede constitucional (embora com menor amplitude) desde a Carta Política de 1824. A realidade brasileira apresenta enorme quantidade de agentes albergados pelo foro por prerrogativa de função, beneficiados por uma Constituição extremamente generosa que traz aproximadamente 20 hipóteses em seu texto[9], situação praticamente sem paralelo no direito comparado[10]. Exatamente por isso não são poucas as propostas de emenda à Constituição tramitando no Congresso com o desiderato de extinguir ou restringir o foro especial[11].

O constituinte originário consagrou o foro privilegiado na Constituição de 1988 por meio da expressão processar e julgar (não abrangendo o termo investigar). Nessa esteira, a prerrogativa de foro é critério exclusivo de determinação da competência originária do tribunal, quando do oferecimento da denúncia ou, eventualmente antes dela, se se fizer necessária diligência sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. Inexiste na Constituição Federal dispositivo demandando autorização judicial para a instauração de inquérito policial ou para o indiciamento do agente público com foro especial. Daí a percepção doutrinária:

Com a remessa da investigação ao tribunal competente, não se exige a prévia concordância do órgão colegiado (Tribunal Pleno ou Corte Especial) como condição especial de procedibilidade[12].

É dizer, a a competência ratione personae não desloca para o tribunal as funções de Polícia Judiciária. A remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não o torna autoridade investigadora, mas apenas lhe comete as funções ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações[13].

Outrossim, a instauração e inquérito policial para a apuração de fato em que se vislumbre a possibilidade de envolvimento de titular de prerrogativa de foro não depende de iniciativa do chefe do Ministério Público. Tanto a abertura das investigações quanto o eventual indiciamento são atos da autoridade que preside o inquérito, a saber, o delegado de polícia[14].

O sistema constitucional de divisão de atribuições e competências não pode ser subjugado pela legislação ordinária ou muito menos por normas regimentais. A competência legislativa para edição do próprio regimento interno não constitui carta em branco aos tribunais (artigo 96, I, a da CF).

É uma garantia do cidadão que as diferentes funções no bojo da persecução penal sejam desempenhadas por autoridades distintas, evitando a concentração de poderes e o enfraquecimento do caráter democrático do sistema processual penal[15]. Não por outra razão já afirmou a suprema corte que a realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia, e que permitir que o juiz se envolva pessoalmente na realização de diligências e formação de provas que possam posteriormente servir de base para o seu próprio julgamento compromete sua imparcialidade e consequentemente o princípio do devido processo legal[16].

Nesse panorama, posicionar um juiz inquisidor para comandar um inquérito judicial consubstancia-se em inegável retrocesso, que rememora a malfadada figura do inquérito judicial de crimes falimentares[17]. De mais a mais, a investigação judicializada revela-se lenta e burocratizada, por diversos motivos: sobrecarga de competências dos tribunais, falta de vocação pela dinâmica investigativa, tendência a substituir a exigência de probabilidade pela certeza, certo grau de corporativismo, ausência de suficientes conhecimentos teóricos e práticos dessa atividade e falta de apoio de órgãos técnicos[18].

Nesse sentido a precisa lição da doutrina:

Conquanto ostentando a prerrogativa de foro para processamento e julgamento dos crimes de que se vejam acusadas, nem por isto tais autoridades atraem para as Cortes a investigação criminal correlata, sendo de aplicar-lhes a regra geral da investigação em nosso sistema, que é a policial civil. (…) Logo, a ausência de norma atribuindo ao Poder Judiciário tal mister investigativo (qual sejam instaurar e instruir inquéritos) não significa senão uma omissão proposital do constituinte, que não poderia, por escapar às funções típicas dos tribunais, cometer-lhes tarefas de investigação criminal, cabendo-lhes apenas o “processo e julgamento” de determinados delitos[19].

Em acréscimo, mesmo nas investigações contra membros do Judiciário ou Ministério Público, a legislação infraconstitucional ordena a remessa das investigações ao órgão respectivo a partir do surgimento de indícios contra o juiz ou promotor, não impedindo a apuração criminal pelo órgão constitucionalmente vocacionado[20].

Aliás, vedar contra certas categorias de pessoas o indiciamento não faz sentido, tendo em vista que se trata de ato privativo do delegado de polícia (artigo 2º, §6º da Lei 12.830/13), e que não vincula a acusação ou o juízo[21]. Proibir o indiciamento é tão temerário quanto sua draconiana requisição, rechaçada pela doutrina e jurisprudência[22], pois denota uma odiosa coação, forçando o presidente do inquérito a concluir de um ou outro modo.

O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de destacar o problema que representa a investigação interna corporis, ao rejeitar o pedido de arquivamento num caso envolvendo membro do Ministério Público:

Em um Estado Democrático de Direito, ninguém goza do privilégio de não ser investigado, quando lhe é apontado, com início de prova, o cometimento de ilícito. (…) A se seguir o entendimento do Ministério Público, cria-se um estamento social de privilegiados, haja vista que, embora acusados de prática de ilícitos criminais, deixa de ser investigado por entendimento isolado e sua base em fatos do Ministério Público[23].

Ademais, as prerrogativas de foro não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos[24], que repele privilégios e não tolera discriminações[25]. Inflar artificialmente uma prerrogativa constitucional para blindar certas categorias de pessoas fere o republicanismo, que pressupõe a efetiva possibilidade de responsabilização de todos os agentes públicos por seus atos[26].

Nessa linha os ensinamentos doutrinários:

A inclusão de magistrados (…) como dirigentes ou mesmo coordenadores/supervisores da fase investigatória afigura-se, a nosso sentido, uma incongruência, fomentando o desafio de ajustar-se esse tipo de investigação preliminar às linhas-mestras do Texto Constitucional[27].

A Constituição Federal, ao regular a atividade de investigação de infrações penais, não estabeleceu qualquer restrição quando tiver por objeto fato em tese imputável a autoridade com foro por prerrogativa de função. (…) No tocante ao ato de indiciamento, (…) constitui um ato privativo do delegado de polícia, fruto do seu convencimento pessoal, e não de outro órgão. Logo, incabível a sua submissão à autorização do Poder Judiciário ou mesmo do Ministério Público, não somente pela falta de previsão legal nesse sentido, mas principalmente pela absoluta incompatibilidade desta manifestação com o papel que cada instituição desempenha dentro do sistema de justiça criminal.

(…) O “inquérito originário” (…) não tem qualquer previsão legal, seja na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional, e se traduz numa indesejada ampliação do foro por prerrogativa de função na Constituição Federal, para além do processo e julgamento da ação penal[28].

Justamente por isso sempre prevaleceu a possibilidade de o delegado de polícia, independentemente de autorização judicial, instaurar inquérito policial contra detentor de foro especial, bem como indiciar o investigado[29]. O Supremo Tribunal Federal historicamente não vinha fechando os olhos a essas considerações[30], Desafortunadamente, todavia, mudou seu posicionamento recentemente[31], valendo-se de verdadeiro salto triplo carpado hermenêutico[32].


1 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 14 jul. 2015.
2 Para minha satisfação, tais argumentos embasaram a mudança de posição do professor André Nicolitt (NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 202), evidenciando que a moderna doutrina está atenta para a reflexão, cujos fundamentos remontam a autores clássicos (MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11).
3 Alguns autores evitam essa terminologia em razão de sua conotação pejorativa, preferindo a expressão foro por prerrogativa de função.
4 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 470.
5 SEMER, Marcelo. A síndrome dos desiguais. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 6, n. 29, jul./set. 2002, p. 11-12.
6 HADDAD, Carlos Henrique Borildo. A dimensão do foro privilegiado. Revista dos Tribunais, ano 101, v. 942, out. 2012, p. 412. Exatamente por esse motivo o autor prefere o uso da expressão foro privilegiado, afirmando que foro por prerrogativa de função não passa de um jogo de palavras.
7 Vale a leitura da pesquisa divulgada pela Associação dos Magistrados do Brasil. Disponível em: <http://www.amb.com.br/portal/docs/noticias/estudo_corrupcao.pdf> Acesso em: 10 abr. 2016.
8 CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 7.
9 Arts. 27, §1º, 29, X, 96, III, 102, I, b e c, 105, I, a e 108, I, a da CF.
10 Só é possível encontrar amplitude semelhante nas Constituições da Espanha e Venezuela, conforme estudo apresentado pela Corte Suprema: STF, Inq 687, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25/08/1999.
11 PEC 130/2007, 168/2007, 470/2005, 78/2007, 119/2007, 174/2007, 484/2010, 142/2012, 182/2007, 18/2014 e 10/2013.
12 CAZERTA, Therezinha Astolphi. Ação penal originária: apontamentos: reflexões. Revista RTF 3ª Região, São Paulo, v. 80, nov./dez. 2006, p. 25.
13 STF, HC 82.507, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 10/12/2002; STF, RHC 84.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04/02/2005.
14 STF, Pet 3.825 QO, Rel. Min, Sepúlveda Pertence, DJ 11/04/2007.
15 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 322.
16 STF, ADI 1570, Rel. Min. Mauricio Corrêa, DJ 12/02/2004.
17 Decreto-Lei 7.661/45, revogado pela Lei 11.101/05.
18 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 83; FREITAS, Vladimir Passos de. Julgando os juízes. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 154, set. 2005, p. 19; MELLO, João de Deus Cardoso de. O inquérito policial em face do Anteprojeto. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, Rio de Janeiro, v. 3, n. 9, abr./jun. 1965, p. 50.
19 CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 122/123/136.
20 Art. 33 da Lei Complementar 35/79. art. 18 da Lei Complementar 75/93 e arts. 40 e 41 da Lei 8.625/93.
21 STJ, REsp 702.757, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 20/06/2005.
22 STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavaski, DP 27/08/2013; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 96.
23 STJ, NC 358, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 20/04/2005. Nesse caso específico o alerta do Tribunal da Cidadania não foi suficiente, pois na sequêncai o Parquet consumiu mais de 3 anos e 2 meses do prazo prescricional de 4 anos do crime investigado, culminando na punibilidade (STJ, NC 358, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 15/02/2007).
24 STF, Inq 687 QO, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25/05/1999.
25 STF, Inq 1.376 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/03/2007.
26 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65.
27 CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5/6/114.
28 BECHARA, Fábio Ramazzini. Juiz deve controlar legalidade de investigação criminal, não ser protagonista. Revista Consultor Jurídico, nov. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-21/fabio-bechara-juiz-nao-protagonista-investigacao>. Acesso em: 22 nov. 2015.
29 Para uma visão histórica da leitura jurisprudencial sobre o tema, vale a leitura de: GOMES, Rodrigo Carneiro. O inquérito policial na investigação parlamentar. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 14, jul./dez. 2009.
No direito comparado, vale conferir: A PATERNOSTRO, María José Magaldi Paternostro. Procedimientos especiales y actuación de oficio del juez: análisis del procedimento especial para el enjuiciamiento de diputados y senadores. In: Cuadernos y Estudios de Derecho Judicial, San Sebastián: Consejo General del Poder Judicial, 1995, p. 7.
30 STF, HC 80.592, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 22/06/2001; STF, RHC 84.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04/02/2005; STF, Pet 3.825 QO, Rel. Min, Sepúlveda Pertence, DJ 11/04/2007.
31 STF, Inq 2.411 QO, Rel Min. Gilmar Mendes, DJ 24/04/2008; STF, Rcl 23.457, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 31/03/2016.
32 Expressão empregada pelo Min. Ayres Britto, do STF, durante o julgamento do RE 630.147, em 22/09/10.

Autores

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    é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar. Redes sociais: Facebook, Twitter, Periscope e Instagram

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