Opinião

Limites à terceirização por concessionárias têm características próprias

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15 de maio de 2016, 11h22

Surge em boa hora o artigo da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro sobre os limites da terceirização por concessionárias de serviços públicos, veiculado neste portal no dia 31 de março. Em seu texto, a controvérsia é saber se, e em que medida, concessionárias podem terceirizar atividades inerentes ao serviço concedido (autorizado pelo art. 25, § 1º da Lei 8.987/95), dado o texto da Súmula 331 do TST, que veda a terceirização de mão de obra para o exercício de atividades fim.

Essa específica discussão não é nova, nem mesmo para a Justiça do Trabalho. Ainda assim, é oportuna a sua retomada em um momento de contingenciamento fiscal e reconfigurações no setor de infraestrutura, uma vez que terá impacto significativo sobre o novo ciclo de concessões.

O texto publicado desenvolve o argumento de que atividades inerentes seriam aquelas elencadas no contrato de concessão firmado com o poder público, enquanto que atividades fim seriam aquelas elencadas no estatuto social firmado pelos acionistas da concessionária. E, conciliando a autorização da Lei 8987/95 com a vedação da Súmula do TST, concluí serem possíveis de terceirização quaisquer atividades (inerentes) elencadas no contrato de concessão, mas não no estatuto social (fim) da concessionária. Tal conclusão, conquanto plausível, parece-nos equivocada.

Dada a necessidade de segregação de um fluxo de caixa particular ao projeto concedido, exige-se que o vencedor da licitação constitua uma sociedade de propósito específico (SPE) com quem será firmado o contrato de concessão, e que será, por isso, incumbida de implantar e gerir o empreendimento (usina, rodovia, aeroporto, mina, enfim).

O objeto estatutário dessa SPE não é outro que não o de explorar as atividades elencadas no contrato de concessão, razão pela qual inexiste atividade inerente que não seja também atividade fim. Ainda que existisse, a seguir pelo raciocínio sustentado pela autora, estar-se-ia admitindo que, para tornar lícita uma terceirização, bastaria que os acionistas retirassem do estatuto social a atividade correspondente. A aferição de licitude não poderia depender de tão pequena formalidade.

Essa diferenciação proposta entre atividade inerente e atividade fim, portanto, não encontra amparo na realidade. Por conseguinte, é necessário dar um passo atrás na análise, assumir que os conceitos se referem ao mesmíssimo conjunto de atividades, para tentar resolver, nesses termos, o conflito entre o art. 25, § 1º da Lei 8.987/95 e a Súmula 331 do TST. Caso se opte por essa via de análise, chega-se à conclusão de que o comando legal supera o entendimento sumulado da jurisprudência.

Tal se diz porque (i.) comando legal prevalece sobre entendimento sumulado (hierarquia), (ii.) a previsão legal específica para as concessionárias excepciona a regra geral de não-terceirização (especialidade), (iii.) a lei é posterior à Súmula (anterioridade). Por tais razões, o dispositivo legal afasta a aplicação da Súmula e autoriza as concessionárias a terceirizarem irrestritamente as suas atividades.

Aliás, o entendimento que prepondera na Justiça do Trabalho segue nesse exato sentido, acrescentando apenas uma condição: “desde que não reste caracterizada a subordinação jurídica do empregado com a concessionária, tomadora do serviço”.

Essa conclusão é válida para concessões de serviços públicos (Lei 8.987/95) e para parcerias público-privadas (Art. 3º da Lei 11.079/04). Caso o particular seja contratado para construir e entregar a obra, sem operá-la (regime de empreitada), a terceirização também poderá se dar de forma irrestrita.  Os tribunais de Contas, na interpretação que fazem da Lei 8.666/93 (em especial os art. 13, § 3º e art. 72), qualificam essa conclusão com três condições.

A primeira é que a Administração justificadamente assim o admita no instrumento convocatório. A segunda, que a terceirizada atenda aos requisitos de qualificação técnica presentes no edital de licitação. A terceira, finalmente, é que não tenha ocorrido uma contratação direta (sem licitação) em virtude da “inquestionável reputação ético-profissional” ou “notória especialização” dos profissionais que integram o quadro da empresa contratada (art. 24, XIII e art. 25, II da Lei 8.666/93). Nessa última hipótese, por evidente, seria a empresa obrigada a executar os serviços técnicos especializados por seus próprios empregados, sob pena de se configurar burla à licitação.

Tendo presente que as normas gerais de licitações se aplicam supletivamente às concessões de serviços públicos (devem ser observadas “no que couber”, diz a Lei 8.987/95), cumpre analisar a aplicação dessas três outras condições às empresas concessionárias.

A primeira condição aparentemente se lhes aplica. Muito embora o art. 25, § 1º da Lei 8.987/95 ampare uma ampla terceirização, parece-nos possível, em uma primeira análise, que o edital de licitação imponha à concessionária a execução direta de uma ou várias atividades, ainda que acessórias ou complementares. A regra, portanto, seria pela irrestrita terceirização, desde que o poder público não venha a, justificadamente, limitar em edital essa possibilidade. Por ora, guarde-se essa conclusão, que será retomada e melhor discutida mais adiante.

A segunda condição deriva do art. 13, §3º da Lei 8.666/93. Diz esse dispositivo o seguinte: “a empresa que apresentar relação de integrantes de seu corpo técnico em procedimento licitatório ficará obrigada a garantir que os referidos integrantes realizem pessoal e diretamente os serviços objeto do contrato”. Essa condição não se aplica, tal como redigida, às concessionárias.

A diretiva da União Europeia que faz, por lá, as vezes da nossa Lei 8.987/95 (Directive 2014/23/EU), por exemplo, disciplina a terceirização em função precípua da performance que o empreendimento precisa alcançar. Assim, ao invés de buscar saber se os funcionários atuantes são aqueles mesmos elencados na licitação (o que nada assegura), os países-membros são orientados a buscar saber se a concessionária atende ou não os níveis de serviço projetados.

Entre nós, solução semelhante pode e deve ser implementada, especialmente quando também aqui “a execução das atividades contratadas com terceiros pressupõe o cumprimento das normas regulamentares da modalidade do serviço concedido”. Tal dispositivo, expresso na Lei 8.987/95, derroga nesse ponto o formalismo da Lei 8.666/93 e orienta uma aferição igualmente centrada na performance das concessões.

A terceira condição, por fim, incidiria sobre uma concessionária que eventualmente tenha sido contratada diretamente em virtude dos seus “serviços técnicos especializados”. Seria ela obrigada a explorar o empreendimento sem subcontratar aquela parcela que, mesmo inerente ao serviço concedido, justificou a sua dispensa ou inexigibilidade da licitação.

Essa hipótese, no entanto, é de improvável ocorrência no campo de complexos empreendimentos contratados sob o regime de concessões ou de parcerias público-privadas. Bem modelado, o empreendimento tem enorme potencial de atrair uma plêiade de agentes qualificados, que podem ainda consorciar-se para cumprir os requisitos de investimento e de qualificação exigidos.

Como se disse, não é nova a discussão sobre limites à terceirização por concessionárias. Tem pelo menos uma década. Menos nova ainda é a ideia de uma concessionária que se valha da ampla terceirização ora anunciada. Em sua concepção mais pura, a concessionária (SPE) constituída pelos acionistas é, antes de tudo, uma estruturadora de negócios jurídicos.

Sua missão é celebrar e coordenar contratos com diversos agentes, em especial com os financiadores (lenders) responsáveis por complementar o equity aportado pelos acionistas; os fornecedores de equipamentos e matérias primas (suppliers); as empresas construtoras (construction contractors); por vezes os consumidores finais (offtake purchasers); e até mesmo os operadores (operators) que acabarão por “prestar o serviço concedido”.

Cada seta representa um ou (geralmente muitos) mais negócios jurídicos. “Project Company” é a concessionária.

No limite, a concessionária pode operar com um quadro mínimo de funcionários que não irá edificar ou operar qualquer porção do empreendimento. Ao menos não diretamente. Esse formato não traria qualquer prejuízo ao poder público ou aos usuários, dado que a ampla subcontratação não sub-roga nem diminui a responsabilidade direta da concessionária pela execução do serviço concedido.

Na ocorrência de qualquer atraso de obra, ou performance abaixo do nível de serviço projetado, dispõe o poder público de instrumentos suficientes para assegurar o adimplemento. Esses instrumentos vão desde a exigência de um capital mínimo para a SPE (por menor que, operacionalmente, ela se faça), e chegam até a aplicação de multas, execução de garantias contratuais, intervenção, encampação e rescisão. O que não se pode confundir é a responsabilidade direta pelo serviço concedido, com uma inexistente necessidade de prestação direta do serviço concedido.

Contra essa conclusão poderia ser invocado o art. 175 do texto constitucional, que assim dispõe: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Aqueles que se fiam à Escola do Serviço Público diriam que, diante desse dispositivo, deveria a Administração compelir a concessionária a prestar diretamente ao menos a operação (núcleo prestacional da competência pública).  Essa conclusão seria equivocada. O “na forma da lei”, aqui, se deu pelo art. 25 da Lei 8987/95, para quem “incumbe à concessionária a execução do serviço concedido” e para quem também podem ser subcontratadas atividades inerentes (como, pasmem, a operação). Portanto, também por essa via, a ideia que prevalece é a de responsabilidade direta, e não de necessária prestação direta.

Toda essa análise não é, por certo, desinteressada. O atual momento de contingenciamento fiscal prenuncia um ambiente propício para intensificadas contratações sob o regime de concessões e de PPPs. Ao mesmo tempo, a crise econômica e investigações de corrupção têm impulsionado uma reconfiguração do setor de infraestrutura.

As grandes empresas de construção civil, que mais se interessariam pelos novos ciclos de concessões, enfrentam dificuldades para assumir novos projetos e conduzir uma retomada dos investimentos. O desafio que se coloca, portanto, é o de modelar adequadamente as futuras concessões e parcerias público-privadas, definindo com o máximo de clareza as responsabilidades e as prerrogativas das novas concessionárias.

Essa modelagem adequada passa, inclusive, pela forma com que a Administração irá impor ou deixar de impor às concessionárias a prestação direta de algumas atividades. A diretiva da União Europeia, por exemplo, não traz semelhante prerrogativa pública. Os países-membros são apenas orientados a solicitar que os particulares informem, na licitação, que atividades da concessão pretendem subcontratar. Entre nós, a não-imposição abre, por exemplo, espaço para que grupos financeiros estrangeiros qualificados participem de licitações sem precisar se consorciar a uma empresa local responsável pela execução direta de determinada atividade. Isso é desejável não apenas por tornar as licitações mais competitivas, mas também por fomentar um mecanismo de governança.

Ao permitir que o grupo econômico dos acionistas não seja o mesmo das empresas subcontratadas, mitiga-se o conflito de interesse na execução das atividades, ampliando a autonomia para que a concessionária busque a máxima eficiência nas suas subcontratações. Por isso, a decisão de impor a execução direta é excepcional, e deve ser bem justificada.

A disputa sobre quais são os reais limites à subcontratação pelas concessionárias tem significativo impacto. Em síntese, e para retomar o início deste artigo: os limites à terceirização no âmbito de concessões não são estabelecidos pelo rol de atividades elencadas no estatuto social da concessionária.

No lugar desse entendimento, propõe-se o seguinte rol: (i) a inexistência de vínculo jurídico dos empregados subcontratados com a concessionária; (ii) eventual restrição justificadamente imposta pela Administração no edital; (iii) o não comprometimento da qualidade do serviço prestado; (iv) o não desvirtuamento de eventual contratação direta de concessionária amparada em “inquestionável reputação ético-profissional” ou “notória especialização” dos profissionais que integram o quadro da empresa contratada (art. 24, XIII e art. 25, II da Lei 8.666/93).

 

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