Opinião

Estabilidade institucional advém do reforço da ética no devido processo legal

Autor

  • Rafael da Silva Menezes

    é advogado e professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/AM.

15 de maio de 2016, 7h30

Uma das diretrizes inspiradoras do sistema de precedentes previsto no Novo Código de Processo Civil, ao lado da necessidade de um sistema eficiente de gerenciamento de processos, foi a adoção expressa da boa fé processual, especialmente na perspectiva de proteção da confiança (ou das legítimas expectativas) dos cidadãos em relação aos posicionamentos do Poder Judiciário, que servem de baliza para a adoção de comportamentos pessoais, políticos, negociais e processuais que, posteriormente, mantidas as mesmas circunstâncias fáticas e jurídicas, não serão objeto de reprimenda jurisdicional.

A proteção à confiança, por exemplo, é revelada no dever que os Tribunais possuem em uniformizar e manter íntegra a sua jurisprudência (artigo 926, Novo CPC) ou no dever de real e concreta motivação das decisões, quando se observa, por exemplo, a imposição de regras claras para aplicação, alteração, superação ou mesmo a não incidência de entendimentos jurisprudenciais consolidados (artigo 489, parágrafo 1º, I, V e VI c/c artigo 927, parágrafos 3º e 4º, Novo CPC).

Tudo isso, para que os cidadãos e os sujeitos processuais possam prever, com razoável grau de probabilidade, qual será a consequência jurídica de uma ação ou omissão, na perspectiva de uma “dimensão subjetiva do conteúdo do princípio da segurança jurídica”[1].

O cidadão tem o direito de exigir do Poder Judiciário provimentos e manifestações não contraditórios, observados os requisitos e condições do sistema brasileiro de precedentes judiciais, capaz de assegurar um tratamento igualitário no plano das decisões judiciais.

Recordando, então, que o devido processo legal – constituído pela boa fé – é um direito fundamental, não restam dúvidas quanto à aplicação e exigência da boa fé processual, no plano de eficácia vertical dos direitos fundamentais (exigência do cidadão para o Poder Judiciário).

A diretriz normativa que inspirou o sistema de precedentes é a mesma, em outro olhar, que impõe, nos termos do artigo 5º, do Novo CPC, a todos os sujeitos processuais, o dever de comportamento consentâneo com a boa fé.

Nesse sentido, por exemplo, veda-se que os litigantes tenham comportamentos desleais, punindo-se com multa de até 20 % sobre o valor da causa, aquele que criar embaraços à efetivação de provimentos jurisdicionais (artigo 77, parágrafo 2º, do Novo CPC). Da mesma forma, a parte que requerer, dolosamente, a realização de citação por edital, fica sujeita à multa equivalente a cinco vezes o salário mínimo (artigo 258 do Novo CPC).

Proíbe-se, ainda, que os sujeitos processuais, inclusive os julgadores, adotem comportamentos contraditórios.

Aliás, como bem registra abalizada doutrina[2], a vedação ao comportamento contraditório, identificado no nemo potest venire contra factum proprium não se dirige tão somente a combater a incongruência de um sujeito processual, mas também a garantir a proteção à confiança – gerada por ações e omissões – nos demais sujeitos processuais.

Assim, o direito fundamental ao devido processo legal, abrangida a boa fé, irradia efeitos tanto no plano vertical quanto no plano horizontal dos direitos fundamentais.

A diretriz vincula e torna exigível a adoção de comportamentos coerentes, tanto na perspectiva – vertical – do jurisdicionado, em relação às decisões e manifestações do Poder Judiciário (coerência das decisões), quanto na perspectiva – horizontal – de uma parte em relação às outras.

A exigência do respeito ao direito à boa fé processual é, em verdade, a manifestação da eticidade do direito, não na perspectiva de um mínimo ético, mas sim na compreensão de um maximum ético[3].

Considerando esses parâmetros normativos e valorativos, parece-me possível, em tese, um olhar diferenciado sobre a eficácia vertical do direito fundamental aqui destacado. Tradicionalmente, compreende-se a eficácia vertical dos direitos fundamentais como um exigir comissivo dirigido ao Estado.

Em sendo possível e legítimo, nesta relação vertical, que os jurisdicionados exijam uma postura jurisprudencial pautada na proteção às legítimas expectativas, consubstanciada, no mais das vezes, na vedação a prática de manifestações contraditórias, com efeitos endo e extraprocessuais, seria igualmente possível e legítimo que o Estado-juiz exigisse uma postura não contraditória das partes, em relação a suas manifestações, vinculando-as, inclusive, extraprocessualmente, no que pertine às afirmações quanto às matérias de direito e de fato, em alguma medida.

A interpretação, em concreto, de uma norma jurídica, considerado o sistema de precedentes, deve vincular sua aplicação a casos semelhantes em que não haja especificidade suficiente a justificar a não aplicação do entendimento consolidado.

Da mesma forma, se não houver especificidade suficiente, uma concessionária de serviço público, por exemplo, não poderia sustentar, em uma dada ação judicial, a interpretação e aplicação de uma norma regente de sua relação com os consumidores em um determinado sentido e, em outra demanda, com similitude circunstancial, requerer que seja dada outra interpretação e, por consequência, distinta aplicação, sem explicitar as razões para a alteração de seu entendimento, em analogia com o que dispõe o artigo 489, parágrafo 1o, VI, do Novo CPC.

Não parece viável – nem justo – exigir, sob pena de nulidade de seu pronunciamento, que o Poder Judiciário justifique a aplicação, superação ou não incidência, em concreto, de suas interpretações normativas e a mesma exigência não seja, no mínimo, dirigida aos outros participantes da construção democrática do discurso argumentativo, sobretudo quando se tem em conta que todos devem, proporcionalmente e, em concreta igualdade de condições, contribuir para a solução eficiente das demandas.

Trata-se de reconhecer que a vedação a comportamentos contraditórios pode vincular as partes para além do mesmo processo. Em recente doutrina, Larissa Gaspar Tunala[4]manifestou-se acerca dos efeitos extraprocessuais[5] da proibição do venire, nos seguintes termos:

Uma pergunta anteriormente realizada consiste em averiguar se necessário que a contradição se dê entre condutas praticadas dentro de um mesmo processo para que se configure um fenômeno de interesse processual. E a resposta é negativa: para que seja caracterizado o que denominamos de venire processual, é relevante apenas que a contradição se dê no processo, ou seja, que haja ruptura de expectativas processuais.

Pode-se afirmar que tal perspectiva acabaria por reduzir o espectro da ampla defesa. Entretanto, se é verdade que a ampla defesa é um direito fundamental, não é menos verdadeiro que não existem direitos absolutos na ordem constitucional, todos encontrando limites em outros direitos fundamentais, a exemplo do direito à participação em um processo que seja pautado pela conduta proba de seus sujeitos e que, ao mesmo tempo, resguarde as legítimas expectativas.

Ademais, não se propõe a impossibilidade de alteração de entendimento pelas partes o que, de fato, reduziria as possibilidade de realização da ampla defesa.Apenas se defende que – no mínimo –o novo entendimento seja devidamente justificado, sob pena de a alegação ser desconsiderada e a parte ficar vinculada a sua manifestação anterior, proferida em outro processo.

Parece-nos que a igualdade de direitos e deveres processuais permite aplicar aos demandantes o ônus de justificar a aplicação, superação ou distinção de suas interpretações normativas em casos similares[6].

O processo, para recorrer às lições de Cândido Rangel Dinamarco[7], possui, além do jurídico, escopos sociais e políticos que repercutem na esfera extraprocessual. A aclamada “estabilidade das instituições políticas” invoca, aliás, vinculações para além dos processos individualizados e para além do “vale tudo” processual. Pretende-se, desta forma, reforçar os contornos de um devido processo legal ético, em todas as direções.

Referências
BROCHADO, Mariah. O direito como mínimo ético e como maximum ético. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 52, p. 237-260. jan/jun 2008.

DIDIER Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 18a edição. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 139.

DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 20-21.

THEODORO Jr, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre e; PEDRON, Flávio. Novo CPC. Fundamentos e Sistematizaçao. 2a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

TUNALA, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório. A proibição do venire contra factumproprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 280.

[1]DIDIER Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol.1. 18a edição. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 139.

[2]“Em outras palavras, não é a incoerência do agente, mas a tutela da confiança o fundamento contemporâneo do nemopotestvenire contra factumproprium, seja no campo das obrigações ou no campo processual” (THEODORO Jr, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre e; PEDRON, Flávio. Novo CPC. Fundamentos e Sistematizaçao. 2a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015).

[3]Mariah Brochado, Professora da Faculdade de Direito da UFMG, ao sistematizar e contrapor as ideias de Jellinek e de José Carlos Salgado acerca da relação entre direito e moral, aderiu à tese do jurista mineiro, assim sintetizando: Segundo sua tese, trata-se de um equívoco entender o direito quantitativamente como um mínimoético. Pelo contrário, ele é, sim, um maximumético, dada a sua natureza regulatóriaqualitativamente diferenciada de valores os mais essenciais e caros à experiênciajurídica Ocidental. Nesse sentido, as normas jurídicassão realizadores não apenas de um mínimo, mas de um máximoético na vida em sociedade, porque sãoo ponto de chegada da dialética do reconhecimento, manifestação apurada da RazãoPrática”. (BROCHADO, Mariah. O direito como mínimo ético e como maximum ético. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 52, p. 237-260. jan/jun 2008).

[4]TUNALA, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório. A proibição do venire contra factumproprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 280.

[5]A mesma autora faz referencia, dentre outros julgados, ao RESP 605687, no bojo do qual em uma ação de inexigibilidade de débito, a parte autora questionava a cobrança de tarifas de telefonia por ligações que, segundo a mesma, nunca teriam sido realizadas e, durante a instrução, concordou com a apresentação, pela concessionária, de seu histórico de ligações. Tempos depois, a mesma parte propôs ação indenizatória em razão de uma indevida exposição, naquele anterior processo, de seus registros telefônicos. O STJ entendeu que havia uma contradição entre a atitude que, em processo anterior, autorizava a apresentação do histórico de chamadas e a propositura de nova ação exigindo reparação cível decorrente daquela apresentação e, assim, confirmou a improcedência do pedido. Julgou o mérito, usando como parâmetro a proibição de condutas contraditórias.

[6] Sobretudo, para os litigantes contumazes.

[7]DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 20-21.

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