Diário de Classe

O mantra da verdade real nas provas da OAB e nos concursos públicos

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14 de maio de 2016, 8h00

Spacca
“O processo busca a verdade real” é o mantra, entendido como uma fórmula mística que, recitada muitas vezes, ganha o efeito de acreditação, ou como um estereótipo[1], entoado reiteradamente desde os bancos escolares e que esconde interesses ideológicos outros, além de ser mecanismo retórico[2] para superação do devido processo legal em nome dos fins e, também, decorrer da heurística do excesso de confiança.

As condições de possibilidade da produção dos regimes de verdade no processo penal devem ser problematizadas. É claro que os partidários da verdade fundante não entendem a crítica, até porque o mundo é o limite pelo qual foram adestrados. Logo, para eles, não faz sentido. E a grande, imensa maioria, é composta de togados e membros do Ministério Público. Não raro, se indagados, respondem: "A verdade é a Verdade". São tautológicos e de uma ingenuidade filosófica obscena[3].

A distinção entre verdade formal e material demanda reconhecer em Kant[4] sua origem. Essa distinção entre duas formas de verdade forjou o mal-entendido. A verdade formal vinculava proposições a leis do pensamento, falseando a realidade, enquanto a segunda fundia essas percepções.

A teoria da história mostra que fatos tidos como verdadeiros são controvertidos e que a versão oficial pode se distanciar do que de fato ocorreu, embora nunca se possa colocar uma última e definitiva versão[5]. É claro que o processo, ao ser aparentemente retrospectivo[6] (mas é prospectivo), implica na escolha dos elementos mais interessantes, os quais restam sublinhados, incidindo o viés retrospectivo. Sempre, contudo, são parciais e representam interesses não ditos. É nos jogos de linguagem[7] que o significante probatório ganhará sentido no contexto em que é invocado.

A ilusão medieval da verdade real[8], quem sabe, parta da alucinação de que se pode saber tudo[9]. Aliás, o lema para se decidir com qualidade é: “Devemos saber tudo e saberemos”, lançando-se no mundo de investigação sem limites, nem regras. Afinal, em nome da verdade (do sujeito) tudo vale. O lugar do processo no contexto inquisitório é da ordem do estorvo.

A questão é que o regime de informações, ou melhor, o subjogo probatório — desenvolvido no livro Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos[10] — também está regulado por lei e, com as sutilezas da linguagem, prenhe de enganos linguísticos. A aposta na imparcialidade do julgador seria o mecanismo garantidor da verificação, não fosse ilusório. Isso porque há uma impossibilidade em conhecer tudo, desde o lugar até o sujeito. O infinito que se pretende conhecer no processo judicial, em ato, somente pode acontecer em potência. Em outras palavras: o infinito de provas só é possível em potência, jamais em ato[11].

Aclarando a afirmação podemos dizer que, se quisermos conhecer todos os números naturais (1, 2, 3 e assim por diante), poderíamos começar nossa vida infantil e morreríamos sem chegar ao final. Aliás, qualquer pessoa ou mesmo computador jamais poderia chegar ao infinito. A objeção de que no processo penal não se opera com infinitos, mas sim com singulares, exigiria que antes se estabelecesse o conjunto dos significantes possíveis, mas isso é ilusório. Sempre pode aparecer uma nova prova, uma nova testemunha, um novo documento, uma mudança de declarações. Para propiciar essa abertura ao futuro é que a revisão criminal é prevista.

De outro lado, para que o processo penal tenha início, meio e fim, restringem-se as provas, sob pena de nunca se terminar. E se decide com o que é mostrado pelos jogadores, na fusão de horizontes de mapas mentais que o dispositivo do processo penal proporciona. Porém, o imaginário pode roubar a cena. O mantra da verdade real é o meio de enganar a coletividade e o próprio julgador de que pode estabelecer a verdade. E alguns deliram acreditando.

O mais bizarro é que, como professor de processo penal, digo aos acadêmicos que, se forem fazer provas da OAB ou de concursos e perguntarem se o princípio da verdade real informa o processo penal, devem enganar e responder sim. Afinal, eles gostam de ser enganados. Faz parte do jogo dos concursos públicos.


[1] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 13: “Nas atividades cotidianas — teóricas, práticas e acadêmicas —, os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, habitus de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação”.
[2] TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 26: “La idea de una verdad absoluta puede ser una hipótesis abstracta en um contexto filosófico amplio, pero no se puede sostener racionalmente que una verdad absoluta pueda y deba ser establecida en ningún dominio del conocimiento humano, y ni qué decir tiene del contexto judicial”.
[3] PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 346: “Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal. O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação). Dissemos autorizava, no passado, por entendermos que, desde 1988, tal não é mais possível a igualdade a par conditio (paridade de armas), o contraditório e a ampla defesa, bem como a imparcialidade, de convicção e de atuação, do juiz, impedem-no”.
[4] KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. Trad. J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
[5] GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009.
[6] CASARA, Rubens R.R. Interpretação Retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
[7] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53: “Mas então o emprego da palavra não está regulamentado; o ‘jogo’ que jogamos com ela não está regulamentado. Ele não está inteiramente limitado por regras; mas também não há nenhuma regra no tênis que prescreva até que altura é permitido lançar a bola nem com quanta força; mas o tênis é um jogo e também tem regras”.
[8] ROQUE, Tatiana. História da Matemática. Zahar: Rio de Janeiro, 2014, p. 24: “Cada época acaba elaborando, sobre o passado, as histórias que se adaptam, de alguma forma, à visão que possui sobre si mesma”.
[9] ÁVILA, Gustavo Noronha de; GUALAND, Dieter Mayrhofer; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. A obsessão pela verdade e algumas de suas consequências para o processo penal. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A crise no processo penal e as novas formas de administração da Justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006, p.43-44: “Acima de tudo, a verdade real é um mito, que deve ser desconstruído, e apenas serviu (e ainda serve) para justificar os atos abusivos praticados pelo Estado. Falar em verdade real é falar em algo absolutamente impossível de ser alcançado, a começar pela inexistência de verdades absolutas. A própria ciência encarregou-se de demonstrar isto. Ademais, não há que se esquecer que o crime é um fato histórico (para isso servem a prova e o próprio processo) é sempre minimalista e imperfeita”.
[10] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[11] Uma possível objeção religiosa e talvez que explique muito da pretensão divina dos julgadores é a apresentada pela Escolástica, segundo a qual o “infinito em ato” é um atributo exclusivo da Divindade (Legendre).

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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