Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo neozelandês (Parte 44)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

11 de maio de 2016, 19h19

Spacca
As profissões jurídicas na Nova Zelândia
Nesta coluna, encerraremos a série sobre a educação jurídica na Nova Zelândia, com especial atenção para a advocacia, a magistratura e o Ministério Público. A última seção será dedicada às conclusões sobre o modelo neozelandês.

A advocacia neozelandesa
A profissão de advogado na Nova Zelândia é regida pelo Lawyers and Conveyancers Act, de 2006, cuja versão atualizada foi objeto de republicação em 2015.[1] Trata-se de uma das mais completas legislações sobre o exercício profissional da advocacia de entre os países estudados nesta série de colunas.

A lei destina-se a regular a prestação de serviços jurídicos e a transmissão de propriedade, mas também à proteção dos “consumidores” desses serviços. Por lei, os advogados obrigam-se a respeitar o estado de direito, a auxiliar na administração da justiça, a manter sua independência e a agir com diligência e lealdade aos clientes.

É possível exercer a advocacia como âmbito público ou privado. Não há restrições, como no Reino Unido ou em França, à atuação dos advogados nos graus iniciais ou finais de jurisdição, desde que o profissional tenha o título de advogado. Não existem também limitações a que o advogado patrocine causas de diferentes áreas do Direito. Há privatividade no exercício da advocacia, o que impede a associação dos advogados com outros profissionais a fim de prestarem serviços de natureza múltipla.

No país ainda persiste a nomenclatura inglesa de barrister e solicitor, embora as fronteiras entre ambas sejam bem pouco relevantes na prática. Os barristers podem ser admitidos na classe de membro do Queen’s Counsel, uma honraria muito respeitada no país.

Para exercer a profissão, o interessado deverá preencher um formulário específico, com seus dados pessoais, sua experiência na área e a indicação de onde atuará, dirigido à Law Society da Nova Zelândia. Não há uma prova de admissão, como se dá no Brasil, o que se justifica pelo pequeno número de faculdades e pelo controle da formação dos bacharéis em Direito, submetido ao Conselho de Educação Jurídica da Nova Zelândia. A inscrição na Law Society, diferentemente do que ocorre no Brasil, não é obrigatória. Pode-se atuar como advogado sem ser membro da Law Society.

Uma vez recebido o formulário com o pedido de inscrição profissional, a Law Society poderá indeferir o pedido, caso considere que haja razões relevantes para tal. Nessa hipótese, é ainda possível uma fase de complementação de informações e a reabertura do processo de exame do requerimento. O interessado terá direito ao contraditório e, se mantido o indeferimento, poderá recorrer da decisão ao Tribunal de Ética.

A advocacia pública neozelandesa compete ao Crown Law Office, que possui funções de consultoria jurídica aos órgãos estatais e de defesa judicial do Estado nos graus judiciários superiores. Acumulam-se essas funções que seriam típicas da Advocacia-Geral da União com o acompanhamento das ações criminais, o que equivaleria ao papel do Ministério Público no Brasil.[2]

A magistratura e o Ministério Público na Nova Zelândia
Ser um juiz na Nova Zelândia é uma função socialmente respeitável. Não há, porém, a figura do concurso público, como se dá no Brasil. Compete ao governador-geral fazer as nomeações judiciais, a partir de indicações feitas pelo procurador-geral. Na prática, os futuros magistrados são renomados professores ou advogados e a escolha inicial recai no Poder Executivo. Os níveis mais altos da magistratura neozelandesa (Suprema Corte, Tribunal de Recursos e Tribunal Superior) seguem idêntico modelo, com a participação na formação das listas dos chief justice e de magistrados decanos dessas cortes.[3]

Embora as nomeações judiciais são feitas pelo Executivo, não há contaminação política ou quotas ligadas aos dois principais partidos majoritários da Nova Zelândia. O recrutamento dos magistrados tradicionalmente fazia-se de entre os advogados com atuação nos tribunais. Nos últimos dez anos, houve uma maior diversificação na origem dos juízes, no entanto, é condição essencial a prova do exercício da advocacia por um período mínimo de tempo. Para a High Court, por exemplo, esse lapso é de sete anos. Todo o processo de recrutamento é costumeiro e não se baseia em regras escritas.[4]

A Suprema Corte da Nova Zelândia, o tribunal supremo do país, é composta por, no máximo, seis magistrados, conforme o Supreme Court Act 2003, sendo cinco juízes e um presidente (chief justice). Há previsão de aposentadoria compulsória aos 75 anos. Seus integrantes serão indicados de entre os membros dos tribunais superiores.[5]

O Ministério Público da Nova Zelândia é chefiado pelo general attorney (procurador-geral), cargo político que, em muitas legislaturas, é acumulado pelo ministro da Justiça. O segundo na cadeia hierárquica é o general solicitor da Nova Zelândia, ocupado por um técnico sem vinculação política. À semelhança do que se dava no Brasil antes de 1988, as funções do Ministério Público e de advocacia pública encontram-se unidas e realizam-se no âmbito do já referido Crown Law Office. O recrutamento de seus integrantes dá-se por meio de inscrição dos interessados, que são selecionados pelo órgão e seguem uma carreira própria. Atualmente, há 70 membros do Crown Law Office no país, os quais dão conta de ambas as atribuições constitucionais já mencionadas.

A remuneração dos juízes neozelandeses é pública e define-se por meio de um órgão central do governo, a remuneration authority.[6] Para o ano de 2015, esses valores encontram-se fixados no Judicial Salaries and Allowances Determination.[7] O mais alto cargo da justiça neozelandesa (chief justice) tem uma remuneração anual de 514 mil dólares da Nova Zelândia e uma verba de representação anual de 7,9 mil dólares neozelandeses. O juiz distrital, o mais baixo nível hierárquico da jurisdição comum, percebe 329 mil dólares neozelandeses, a título de remuneração anual, e 4,1 mil dólares neozelandeses, como verba anual de representação. São valores muito elevados, que se explicam pela quantidade reduzida de magistrados e pela necessidade de atrair os melhores quadros da advocacia. Dito de outro modo, trocar uma carreira bem-sucedida na advocacia pela magistratura é algo que deve ser financeiramente compensador. Essa perspectiva é ainda mais real quando se comparam essas remunerações com a do governador-geral, que é de 342 mil dólares da Nova Zelândia.[8]

Conclusão
O modelo jurídico neozelandês é absolutamente sui generis, por conciliar elementos do Direito costumeiro inglês, do Direito norte-americano e do próprio país. A estrutura dos cursos jurídicos conjuga esses dois modelos, mas possui uma instituição nacional de controle da formação dos bacharéis em Direito, que é o Conselho Nacional de Educação Jurídica.

A advocacia não apresenta os problemas típicos do Brasil, o que se explica pelo número reduzidíssimo de faculdades de Direito e pela força da Law Society, além de uma cultura de baixa litigiosidade na sociedade neozelandesa.

A magistratura segue o modelo inglês, com enorme prestígio e uma seleção sem concurso público. O Ministério Público não possui a autonomia típica do modelo brasileiro, muito menos o prestígio social equivalente.

A docência universitária é relativamente prestigiosa. Mas, não se equivale ao nível de representação social encontrável na Alemanha ou em Portugal.

O distante país da Oceania é um interessante campo de aprendizagem para o ensino jurídico, ainda que muitas de suas soluções sejam afetadas pelas peculiaridades sua insular condição. 

 


[2] Disponível em: http://www.crownlaw.govt.nz/. Acesso em 10-5-2016.

[3] Disponível em: https://www.courtsofnz.govt.nz/about/judges/appointments. Acesso em 10-5-2016.

[4]Disponível em: https://www.courtsofnz.govt.nz/about/judges/appointments. Acesso em 10-5-2016.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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