Opinião

Mudança no sistema de governo brasileiro é possível

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11 de maio de 2016, 17h14

O plenário do Supremo Tribunal Federal está para julgar o MS 22.972, que diz respeito sobre a possibilidade de mudança do sistema de governo presidencialista para o parlamentarista por meio de Emenda Constitucional. Ajuizada em 1997 pelo então deputado Jacques Wagner, atual chefe de gabinete da Presidência.

A possibilidade de reabertura de discussão sobre mudança no sistema de governo permaneceu restrita aos debates acadêmicos de Direito Constitucional até a propositura de três Propostas de Emenda Constitucional que tramitam no Congresso Brasileiro atualmente e objetivam a implementação do parlamentarismo (PEC 32/2015, PEC 105/2015 e PEC 9/2016), ainda que não em termos idênticos, sendo a última a mais próxima de um parlamentarismo puro, mas todas submetendo a mudança à consulta popular por plebiscito.

Há, ainda, uma terceira via, aventada pela própria Ordem dos Advogados do Brasil [1] e defendida pelo PMDB desde 1987[2]: o semipresidencialismo, ou parlamentarismo misto. Este sistema seria uma alternativa para solucionar a crise do presidencialismo de coalização, que obriga os chefes de governo a formarem coalizões partidárias que garantam a maioria quantitativa necessária em um pacto de governabilidade que afiance os projetos governistas, além de resguardar a posição de presidente por viabilizar a destituição de eventual primeiro-ministro em casos de crise.

Um dos eixos fundamentais da argumentação jurídica do MS 22.972 é a flagrante inconstitucionalidade por violação do artigo 60, §4º, III da CRFB/88, ou seja, seria viável a intervenção do Poder Judiciário para sustar tramitação de Proposta de Emenda Constitucional ofensiva à clausula pétrea da Constituição. No caso, a interpretação é de que a propositura de PEC visando à implementação do parlamentarismo seria atentatória à separação dos poderes.

O artigo 2º da Constituição Brasileira dispõe que “são poderes da união, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” e a disposição do artigo 60, §4º, III da Carta reveste o conteúdo do artigo 2º do manto de imutabilidade provida pelas cláusulas pétreas. Isto significa que há clara vedação material ao legislador constituinte derivado no que tange a propor Projeto de Emenda Constitucional que intencione abolir a separação dos poderes.

Há, ainda, um argumento importante sobre a inconstitucionalidade das PECs que visam à mudança do sistema de governo atual para o parlamentarismo: o legislador constituinte originário impôs a ocorrência de plebiscito cinco anos após a promulgação da Constituição para que a população definisse a forma (república ou monarquia constitucional) e sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) no artigo 2º do ADCT. Ocorrido o plebiscito em 1993 e vencido o presidencialismo, a referida norma constitucional teve sua eficácia exaurida, e, portanto, não possuindo mais aplicabilidade fática.

Porém, a dúvida pertinente que surge neste momento é: dividir as atribuições do Poder Executivo com o Legislativo é esvaziar o primeiro de modo tal que ele se torne extinto? O parlamentarismo aplicado nas nações europeias que tanto influenciaram nosso ordenamento jurídico (seja ele aplicado na forma pura, como o alemão e italiano, ou mista, como o francês e o lusitano) não os tornam Estados verdadeiramente democráticos? E, finalmente, seriam os constituintes originários contraditórios ao viabilizar a opção popular pelo parlamentarismo em plebiscito se o considerassem atentatório à divisão dos poderes?

Primeiramente deve-se refletir sobre a aplicação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu à realidade atual. A teoria era aplicável em sua forma clássica quando nos tempos das monarquias absolutas, em que o objetivo primário era evitar o despotismo real, o que seria possível através de poderes interdependentes. Ou seja, por um sistema de freios e contrapesos estabelecidos, Executivo, Legislativo e Judiciário desempenhariam suas funções primárias, bem como funções secundárias de controle, para evitar abusos institucionais. Como bem pontua Tércio Sampaio Ferraz Junior[3] “O eixo da discussão [sobre separação dos poderes] torna-se agora a dicotomia tipicamente tecnológica macropoder/micropoder”.

Certamente o Brasil vêm de forte tradição unipessoal quanto aos seus chefes de Estado e governo, reunidos sob o mesmo indivíduo ainda quando do suposto parlamentarismo monárquico, quando o imperador ocupava a função de chefe do poderes Executivo e Moderador. Não se nega, aqui, a impressão de que transferir funções tipicamente exercidas pelos chefes de governo a um indivíduo aprovado pelo Congresso representaria uma quebra histórica, porém, com o devido processo legal e aquiescência popular, ela não poderia ser considerada um rompimento institucional, mas apenas uma mutação.

Finalmente, é necessário atentar que o esgotamento de eficácia de uma norma constitucional não implica, automaticamente, em vedação material ao poder constituinte derivado. Tal assunção representaria não apenas uma limitação ao legislador, mas uma negação ao dinamismo social e um verdadeiro óbice à possibilidade de mutações constitucionais legítimas. Não se trata, aqui, de resgatar a eficácia de uma norma que cumpriu os efeitos para os quais foi criada, mas de resguardar às gerações posteriores o direito fundamental de cidadania.

É necessário atentar que mudanças institucionais em tempos de crise devem ser analisadas com a devida cautela. Nossa primeira experiência parlamentarista real, no período de 1961 a 1963, surgiu sob o pretexto de encerrar uma crise política, viabilizando o golpe militar instaurador da ditadura que perdurou 21 anos no Brasil. Porém, a propositura do MS 22.972 em face da tramitação da PEC 20-A/95 há 19 anos demonstra que a discussão sobre a mudança do sistema de governo não eclodiu recentemente, apenas ganhou mais força em virtude cenário político em ebulição atual.

É temerário falarmos em certezas em tempos de instabilidade econômica e política acachapantes, porém o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Brasileira é de clareza solar: “Todo o poder emana do povo” e este baseia-se em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a saber, a cidadania (artigo 1º, II, CRFB/88). E se o povo pode exercer seu poder e a cidadania diretamente, através de plebiscito, da mesma maneira que a população o fez em 1993, não cabe ao Judiciário limitá-lo, pois fazer isso seria negar a própria soberania popular.

2 TEMER, Michel. Presidencialismo x Parlamentarismo. Folha de SP, ano 67, No. 21.257, Seção A-2. Disponível em < http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1987/06/15/2/ >

3 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros Editores, n.º 9: 1995, p. 40-48.

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