Direito Civil Atual

É possível uma responsabilidade civil sem dano? (IV)

Autor

  • Bruno Leonardo Câmara Carrá

    é juiz federal; doutor em direito civil (USP); professor nos cursos de graduação e pós-graduação em sentido estrito (mestrado acadêmico) da UNI-7; foi pesquisador visitante nas Universidade de Bolonha Paris V e Oxford.

9 de maio de 2016, 8h00

Em nossas colunas precedentes, procurei explicar as origens e as principais vertentes dessa tendência chamada responsabilidade civil sem danos. Uma primeira conclusão que podemos tirar é que essa onda surge em decorrência de um suposto momento de crise da responsabilidade civil. As crises, as incontáveis crises pelas quais de maneira cíclica costuma passar, foram fundamentais para a contínua evolução dessa nossa disciplina, permitindo sua adaptação aos novéis costumes e valores sociais. Como disse certa vez Antunes Varela, “poucas matérias competirão com a responsabilidade civil, no tocante ao interesse teórico que as suas soluções revestem para a ciência jurídica e no concernente à importância prática que a aplicação das respectivas normas assume nos quadros da vida económica e social da coletividade”.

Mas há algo que não se pode mudar: a responsabilidade civil vocacionou-se ao longo de séculos para a repreensão do dano e não para sua prevenção direta. Nisso nada há de menor ou impróprio. Voltada para o patrimônio do ofensor e não para sua pessoa, ou seu atuar em sentido próprio, ela permite um equilíbrio flexível, diferentemente da esfera penal, entre o exercício pleno das liberdades individuais e a proteção dos interesses tutelados.

A História do Direito fornece os elementos iniciais para a refutação da responsabilidade civil sem dano. É que o que se defende como novo, na realidade, constitui passado longínquo. Nas primeiras formas de responsabilidade historicamente referidas, de fato, o dano não era propriamente um pressuposto. Era o ilícito, ou seja, o ato humano que definia a responsabilidade. Com o tempo, entretanto, eles foram perdendo sua função penal e deram lugar à idéia de reparação que, obviamente, exigia a existência de um dano. Daí se dizer que a história dos delitos em Roma foi a história de uma degradação progressiva da pena. O processo se repetiu, aliás, não apenas no âmbito do Direito Romano, mas também nos ordenamentos dos povos bárbaros na Idade Média, tais como os primitivos direitos inglês e francês.

G. Marton, um autor reconhecido pela leveza no pensamento e razoabilidade de ideias, destacou justamente por isso que a indenização civil, sem prescindir de uma lógica preventiva geral, permitiria sancionar de forma adequada as lesões praticadas contra o patrimônio ou integridade de um indivíduo, sem, contudo, jogar o ofensor na vala comum do Direito Penal que mancha sua honra e lhe desconstrói a índole. De fato, essa constitui provavelmente a mais importante razão de ordem ideológica contra a ideia de uma responsabilidade sem dano. É que o dano funciona como uma espécie de válvula de segurança contra eventuais arbítrios.

Existe, ao que parece, uma clara correlação entre a evolução das sociedades e a necessidade de estratificação de suas regras de responsabilização. Isso significa que a ilicitude deve ser vista como fenômeno amplo e diversificado. Ou seja, existe não apenas uma, mas inúmeras formas de ilicitude, cada qual com suas peculiaridades. A gestão do dano na sociedade de risco não precisa ser realizada apenas por meio da responsabilidade civil, que é como uma espécie de mantra para seus defensores. Outros ramos do Direito também possuem vocação para isso e só uma atuação coordenada e conjugada entre eles se revelaria capaz de dar algum efetivo alento às potenciais vítimas do progresso tecnológico. Ao invés de uma cisão da responsabilidade civil, uma gestão “global” dos riscos por meio de um diálogo interdisciplinar entre os vários ramos do Direito destinados a enfrenta-los, cada qual com suas peculiaridades e mantendo suas respectivos constitutivos ontológicos, vem a ser uma opção bem mais ponderada.

Até agora, fiz uma abordagem quase que totalmente teórica da questão. O leitor já deve estar cogitando, portanto, que se trata de tema meramente acadêmico, sem qualquer interesse prático. Engana-se. Ao se propor, por questões preventivas, que o simples agir possa já ensejar uma pena, abre-se uma infinidade de possibilidades de responsabilização civil ainda que não se verifiquem efeitos lesivos concretos. Sobretudo no âmbito do Direito do Trabalho e do Ambiental, onde são notórias as ações que buscam reparações em virtude do chamado risco de exposição, ou por meio da exasperação do conceito de dano moral. Esse, por sinal, é um ponto importante para se ter em mente: os danos decorrentes de exposições danosas não são efetivamente ameaças de dano potencial senão que danos efetivos. Para ensejar qualquer forma de indenização precisam afetar diretamente um interesse jurídico material ou moral.

Assim, por exemplo, no julgamento do Recurso de Revista 278300-23.2009.5.12.0032, do qual foi relator o ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, o Tribunal Superior do Trabalho examinou a seguinte situação: uma atendente de farmácia teve o polegar ferido ao aplicar uma injeção. Ela apresentou, diante do acidente de trabalho noticiado, demanda postulando danos morais em razão da exposição ao risco de ser contaminada por agentes patológicos como o Vírus da Imunodeficiência Humana. A reclamação trabalhista foi denegada pelas instâncias ordinárias e, por fim, pela Corte Superior Trabalhista exatamente sob o fundamento de que o acidente de trabalho do qual não decorra efetivo dano não admite qualquer reparação ou condenação para fins de responsabilização civil.

Isso não quer dizer, como apontado, que a jurisprudência haja infirmado a possibilidade de reparação civil por meio de exposições lesivas, desde que possível afirmar a existência concreta de uma lesão. Esse foi o caso de uma decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa na qual se considerou que a existência de um lago artificial, represado por barragem e mantido em nível acima do tolerado, autorizaria uma indenização aos demais vizinhos diante do risco de inundação iminente. No caso, decidido pela 3a Câmara Cível daquele famoso tribunal, em 17 de dezembro de 2002,  observou-se serem devidos danos materiais em razão da diminuição do valor das terras dos demais proprietários. Ou seja, a exposição, na hipótese, efetivamente já configurava uma lesão.  

 Do mesmo modo, no Superior Tribunal de Justiça o vezo da mera ilicitude como configurador da responsabilidade civil sem a existência de dano efetivo vem sendo afastada em julgados paradigmáticos como o proferido no âmbito do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.269.246/RS. No caso, decidiu-se que o atraso não significativo em voo doméstico não poderia ensejar dano moral. Consoante anotou o ministro Luís Felipe Salomão, “A verificação do dano moral não reside exatamente na simples ocorrência do ilícito, de sorte que nem todo ato desconforme o ordenamento jurídico enseja indenização por dano moral. O importante é que o ato ilícito seja capaz de irradiar-se para a esfera da dignidade da pessoa, ofendendo-a de maneira relevante”.

Já em matéria ambiental, um conhecido campo onde é afirmada a possibilidade de responsabilização apenas por ofensa a uma regra estabelecida, as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça também reafirmam a concepção tradicional. Em decisão proferida em sede de Recurso Repetitivo (REsp n. 1354536/SE, sendo relator também o Ministro Luís Felipe Salomão), disse o STJ que:  “o dano material somente é indenizável mediante prova efetiva de sua ocorrência, não havendo falar em indenização por lucros cessantes dissociada do dano efetivamente demonstrado nos autos”.  A demanda tinha como pano de fundo uma indenização justamente por danos ambientais, razão pela qual é possível inferir que resultou afastada em nosso Direito a possibilidade de uma responsabilização civil sem danos também nessa seara, como muitos pretendiam.

A copernicana revisão da responsabilidade civil postulada pelas teses que advogam a possibilidade de ausência de um dano até pode ter tido o mérito de chamar a atenção para a necessidade de se estabelecer instrumentos jurídicos aptos a controlar sua expansão. Eles, contudo, devem ser pensados em seu lugar epistêmico próprio, como no âmbito penal, administrativo, processual, ou até mesmo no próprio Direito Civil, porém associados a outros aspectos. Por sua própria conformação lógica, a responsabilidade civil não pode deixar de se ocupar do dano existente, pena de deixar de ser responsabilidade civil. E aqui se chega ao paradoxo final: para criar ferramentas de melhor controle do dano, é desnecessário alterar esse modelo já sedimentado na cultura jurídica ocidental. Basta que se faça o que se tem feito desde Roma: flexibilizar o conceito de dano de modo que corresponda às exigências de nossa era. É adaptando-o,  apenas talvez até ampliando seu alcance, mas nunca suprimindo-o, que se chegará a uma responsabilidade civil capaz de enfrentar os desafios de um mundo onde os danos se fazem cada vez mais próximos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

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