Opinião

Bloqueio do WhatsApp mostra que Judiciário não é tão democrático quanto pensam

Autor

  • Bárbara Lupetti

    é advogada professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC/UFF)

8 de maio de 2016, 7h30

A provocação que eu pretendo propor neste pequeno texto tem relação com a recente decisão judicial que determinou a suspensão do WhatsApp por 72 horas, por causa do descumprimento de uma determinação judicial em uma investigação sobre tráfico de drogas.

Em se tratando de uma provocação, este texto tem, portanto, uma proposta reflexiva e de estranhamento, afastando-se totalmente do campo dos juízos morais.

Digo isso para deixar claro, desde logo, que eu não tenho a menor intenção de defender ou de acusar os magistrados prolatores das decisões: nem o juiz da causa, que determinou o bloqueio; nem o desembargador de plantão, que o manteve; nem tampouco o desembargador que a revogou, via pedido de reconsideração; e muito menos a ministra corregedora do CNJ, que está apurando eventual excesso da medida adotada por sua excelência, o juiz que determinou o bloqueio, a fim de verificar se houve “ato exacerbado que tenha ultrapassado o limite da razoabilidade".

E aqui, faço um pequeno parêntese para evocar e homenagear o saudoso diretor de teatro Antônio Abujamra, um “doce provocador”, que sempre começava o programa dele na TV Cultura dizendo, de modo teatral: “Ai de mim! Ai de mim! Provocações! Tantos anos no ar, caminhando no incerto e idolatrando a dúvida.”.

É um pouco nessa linha, a provocação aqui proposta.

Pois bem. Toda a inquietação que eu compartilho neste texto – e que me faz pensar sobre o nosso sistema de justiça – foi desencadeada pela intensa reação que o bloqueio do WhatsApp causou na sociedade brasileira.

Mais especificamente, o estopim que me motivou a escrever foi o contundente estranhamento de Mark Zuckerberg, o estadunidense criador do Facebook, que comentou publicamente ter considerado o bloqueio “muito assustador”.

Segundo seu post na rede social, o americano teria dito que “a ideia de que todos os brasileiros possam ter seu direito à liberdade de comunicação negado desta forma é muito assustadora em uma democracia”.

Ele estranhar, eu compreendo.

Nós estranharmos, nem tanto.

E digo isso, não por concordar com o bloqueio do aplicativo, mas porque penso que deveríamos estar acostumados [e não tão perplexos] com posturas discricionárias como esta, que, no lugar de serem estranhas, na verdade constituem e conformam o nosso sistema processual desde sempre!

Aprendemos na Faculdade de Direito diversos princípios e institutos que não só autorizam como legitimam e justificam decisões como esta, que determinou o bloqueio do aplicativo, ou não?

Lamentavelmente, o processo judicial que ensejou a polêmica ora comentada não é público e, por isso mesmo, o seu trâmite se realiza sob “segredo de justiça”, de forma que nós não podemos acessar os termos e os fundamentos explícitos das decisões judiciais nele proferidas. No entanto, não tenho a mais mínima dúvida de que as decisões que entenderam pelo bloqueio, assim como a última, que o revogou, estão subsidiadas em princípios jurídicos legítimos, que permitem e justificam tanto o bloqueio quanto o desbloqueio.

E sabem por quê? Porque o Direito é assim.

Para o “bem” ou para o “mal”, o sistema de justiça sempre oferece caminhos.

É possível fazer quase tudo com os princípios e teorias abertas que o nosso sistema acoberta. Segundo o professor Daniel Sarmento, os princípios constitucionais converteram-se em verdadeiras “varinhas de condão”, pois, “com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser”. (SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200). 

Para além disso, a doutrina não consensualiza sobre os aspectos mais comezinhos do Direito Brasileiro, de forma que é sempre possível encontrar argumentos favoráveis ou contrários a qualquer discussão ou tese.

Sendo assim, no caso concreto, entre a busca da efetividade da persecução penal associada à verdade do processo penal e o nosso direito de trocar mensagens em WhatsApp, o juiz da causa priorizou a persecução penal e a verdade do processo! Simples assim.

E, sinceramente, gostemos ou não do conteúdo autoritário da decisão, temos de reconhecer que muitas vezes isso acontece e o nosso sistema funciona assim mesmo.

Só que, desta vez, nós estranhamos. Estranhamos, talvez, porque tenha nos afetado diretamente e atrapalhado a nossa rotina, afinal, estamos todos viciados no WhatsApp! Mas, o fato é que costuma ser sempre assim. É este o nosso sistema processual.

Aliás, a operação "lava jato" [e o uso de suas tutelas cautelares atípicas] que o digam! E, de novo, sustento a frase sem vinculação político-partidária, mas porque considero que o processo que vem sendo conduzido pelo juiz Sergio Moro vem permitindo pensar sobre questões como esta.

A tal ponto, que li em alguns jornais e vi nas redes sociais diversas associações do juiz Moro com o juiz de Sergipe, inclusive em tom jocoso, intitulando-o de “Moro de Sergipe” ou “Sergio Moro de Lagarto”.

Voltando ao argumento, quero registrar que o juiz que bloqueou o WhatsApp nada mais fez do que usar o sistema que está disponível para ele, tendo sido, no caso concreto, um “ativista judicial”, como, aliás, manda o figurino da última moda do direito processual!

Grosso modo, o ativismo judicial à brasileira está aí para isso mesmo. E não que eu o defenda [aliás, desde a minha tese de doutorado reflito criticamente acerca do tema], mas, concretamente, o ativismo está aí para isso: para garantir a efetividade do processo e para permitir deslanchar o papel criativo dos tribunais, que ficam autorizados a realizar contribuições novas para o direito, decidindo casuisticamente e, muitas vezes, alterando até mesmo a própria formulação da Lei.

Durante a pesquisa que realizei para a minha tese de doutorado, realizei diversas entrevistas e, em uma delas, considerei a frase de um magistrado emblemática e autoexplicativa. Ele disse que, no Brasil, “o juiz julga a lei”. (LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial: entre “quereres” e “poderes”. Porto Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris, 2013).

Objetivamente, tratando do caso do bloqueio do WhatsApp, independentemente da minha opinião pessoal, preciso dizer que o sistema processual permite que o magistrado faça o que ele fez. E o nome erudito do que ele fez chama-se “poder geral de cautela”.

É bem verdade que há muita discussão entre os doutrinadores sobre a possibilidade, ou não, de se estender ao processo penal, o poder geral de cautela que o juiz tem na condução do processo civil.

No entanto, tem muita gente consagrada na doutrina [além dos próprios tribunais superiores] defendendo que o juiz do processo penal também tem poder geral de cautela. E, possivelmente, o juiz que bloqueou o nosso WhatsApp está filiado a esta corrente.

Mas, afinal, o que seria isso: o poder geral de cautela do juiz?

É justamente a possibilidade que o magistrado tem de utilizar os meios que entender mais “oportunos e apropriados” para garantir a efetividade do processo.

O poder geral de cautela, em síntese, é um “poder implícito dado ao juízo”. É como se fosse uma autorização em abstrato para o magistrado conceder tutelas cautelares “atípicas” [ou seja, medidas não descritas na norma jurídica], sempre que, diante de uma situação concreta, as tutelas típicas não se apresentarem adequadas à garantia da efetividade do processo principal. 

Segundo os processualistas penais que concordam com o uso do poder geral de cautela pelo juízo criminal, seria a conjugação do antigo artigo 798 do Código de Processo Civil de 1973, hoje artigo 297, com o artigo 3º do Código de Processo Penal, que autorizaria o uso de tutelas cautelares atípicas no processo penal.

Obviamente, os doutrinadores contrários ao seu uso entendem que medidas atípicas no processo penal ferem a Convenção Americana de Direitos Humanos, que não admite o uso de medidas restritivas da liberdade não previstas em lei (artigo 7.2).

Fato é que, muito provavelmente, na ponderação de interesses, o juiz que bloqueou o WhatsApp deve estar filiado a uma corrente processual mais preocupada com a garantia do processo do que com outras garantias fundamentais.

E, nessa linha, conjugando-se a teoria do ativismo judicial ao poder geral de cautela do juiz, fica evidente que o sistema confere uma autorização explícita para que, na garantia da efetividade do processo, o magistrado possa se valer de sua criatividade e aplicar as medidas que considerar adequadas à efetividade do pronunciamento judicial.

Nesse ponto, a postura disciplinar da corregedoria do CNJ, que iniciou procedimento para apurar os excessos do magistrado, também merece reflexão, porque é certo que, aparentemente, existem limites ao poder geral de cautela do magistrado, mas também é certo que os limites que existem não limitam, porque, no final das contas, os critérios dos limites são tão abstratos quanto o próprio poder de cautela em si.

Traduzindo: a mais importante limitação ao poder geral de cautela do juiz é a cláusula constitucional do devido processo legal, que, convenhamos, significa quase tudo e também pode significar quase nada.  

Se não há consensos sobre extensão e significado das leis, dos princípios e das normas gerais de Direito, devo dizer que – embora contrariada e crítica do funcionamento deste sistema – o juiz que bloqueou o nosso WhatsApp, a rigor, simplesmente jogou o jogo do processo.

E, então, minha proposta reflexiva está mais voltada para entender a lógica do sistema do que acusar o jogador do jogo do processo.

No caso do WhatsApp, minha proposta é, então, nos afastarmos dos juízos morais para mergulharmos na compreensão do sistema e, com isso, pensarmos sobre possíveis caminhos de superação desse jogo do processo, que, certamente, é [e sempre foi] autoritário e impermeável a controles efetivos de discricionariedade.

Ademais disso, em um sistema contraditório e inquisitorial como o nosso, onde a busca da verdade processual é a garantia das garantias, a permissão do uso da criatividade na busca da efetividade do processo é um universo ilimitado! E, de novo, temos de reconhecer que o juiz de Lagarto simplesmente usou o sistema.

Quando essas práticas nos atingem, ficamos reflexivos (e até perplexos). Mas o fato é que o uso do poder geral de cautela acontece no processo penal há muito tempo e em situações muito mais graves e restritivas do que a impossibilidade de trocar mensagens de WhatsApp.

Aliás, o mesmo juiz que agora bloqueou o WhatsApp já havia determinado a prisão do vice-presidente do Facebook na América Latina, o argentino Diego Dzoran, que foi efetivamente preso em um dia e solto no dia seguinte, em função de uma decisão do Tribunal de Justiça de Sergipe que teria considerado o ato como coação ilegal.

Ou seja, agora foi o bloqueio do aplicativo, mas em outro momento foi a pena privativa de liberdade, e, vale dizer, em se tratando de uma empresa como Facebook, a restrição levou apenas algumas horas. No entanto, é certo que, com base nessas mesmas amplas possibilidades interpretativas do direito processual penal, existem diversas outras pessoas comuns, cidadãos brasileiros, encarcerados sem a mesma sorte do vice-presidente do Facebook, embora pelos mesmos motivos e princípios que fundamentaram a postura do Juiz do caso do WhatsApp.

E aqui fica a minha prometida provocação, instigando-os a pensar e, ao mesmo tempo, permitindo-me repensar sobre isso.

Acredito que o recente caso do WhatsApp, assim como a operação "lava jato" e os últimos acontecimentos políticos do País, incluindo o processo do mensalão, têm sido palco de inspiração para pensarmos sobre o Direito e sobre o Processo de uma forma muito peculiar e especial, como sói acontecer em momentos de crise, onde as transformações são as mais contundentes e profícuas.

Penso que a publicidade e os holofotes direcionados a esses casos jurídicos têm permitido à sociedade brasileira se dar conta de que as práticas processuais do Direito Brasileiro não são tão democráticas ou igualitárias quanto pensávamos.

A crença de que vivíamos em um sistema de justiça ideal está padecendo.

E, agora, que o “canhão” começou a apontar pro nosso lado, começamos a ficar mais reflexivos, críticos e até questionadores da lógica inquisitorial que sempre moveu o processo penal brasileiro, processo este que nunca se constitucionalizou!

No papel de “estraga-prazer”, devo dizer que a verdade nua e crua é que este “canhão”  sempre existiu, só que ele costumava estar apontado para um único lado, com o qual não costumávamos estar preocupados.

Agora, é diferente. Agora, essas práticas discricionárias e esse sistema de poder estão ficando explícitos para todos nós, até porque o “canhão” está resvalando para todos os lados, atingindo, além de nossas rotinas virtuais, a liberdade, a “honra e a dignidade” de pessoas que sempre receberam tratamento distinto, tais como, presidentes de grandes empresas, colarinhos brancos e as parcelas mais altas do poder da nossa República. Agora, então, estes acontecimentos estão nos deixando reflexivos [e preocupados].

Enfim, ainda que seja do pior jeito, é fato que estes são os melhores momentos para superações de modelos e de ideologias.

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