Opinião

Juiz deve limitar-se à análise formal de plano de recuperação judicial

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3 de maio de 2016, 15h12

Através da Lei da Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), o legislador inovou ao conferir grande autonomia aos credores e poder à Assembleia Geral de Credores, fazendo com que o Judiciário adotasse uma postura menos intervencionista e respeitasse as deliberações dos credores, diversamente do que ocorria na vigência Decreto-Lei 7.661/45, quando a concordata era concedida como um “favor legal”[1] e as decisões eram muito mais concentradas nas mãos do Judiciário.

Uma vez aprovado o plano pelos credores, cabe ao juiz, por força do disposto no artigo 58 da Lei da Recuperação Judicial, homologar o plano de recuperação judicial. Todavia, passados dez anos da entrada em vigor da Lei da Recuperação Judicial, ainda é polêmica a questão sobre os limites da intervenção do Poder Judiciário quando da homologação do plano, dividindo opiniões dos mais respeitados estudiosos sobre o tema.

À primeira vista, por uma interpretação literal do artigo 58 da Lei da Recuperação Judicial, pode-se entender que a atuação do juiz se restringe à mera concessão da recuperação judicial quando “cumpridas as exigências desta lei”, sem qualquer interferência sobre os termos do plano. Essa é a visão daqueles que defendem que o papel do juiz é meramente homologatório.

Assim, uma vez aprovado o plano de recuperação judicial pelos credores, seria obrigatória a chancela judiciária da decisão assemblear, inexistindo margem para análise do plano. Seria, portanto, soberana a deliberação dos credores, consistindo o plano de recuperação judicial em uma verdadeira transação entre devedor e credores, com novação da dívida original e concessão de novos prazos para pagamento, na qual não deveria se imiscuir o Judiciário.

Sob essa ótica, não caberia ao magistrado interferir na nova relação negocial que se estabelece entre o devedor e os credores, pois, primeiro, estes são os maiores interessados e detentores do direito patrimonial disponível ali discutido e, segundo, as projeções de sucesso do plano e os graus de renúncia e tolerância estabelecidos não são questões jurídicas.

Essa é a posição defendida por doutrinadores como Eduardo S. Munhoz e Erasmo França, que entendem que a Lei da Recuperação Judicial não conferiu qualquer margem de discricionariedade ao Judiciário, mas ao contrário, sua atuação teria sido limitada pelo próprio legislador quando da previsão expressa do cramdown no artigo 58, parágrafo 1º, da Lei da Recuperação Judicial, única hipótese de intervenção judicial.

Da análise das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, principalmente entre os anos de 2006 a 2012, verifica-se um entendimento predominante no sentido de que a Assembleia Geral de redores é soberana e não podem, nem o juiz, nem o Ministério Público, se imiscuírem no mérito do plano de recuperação judicial[2].

Por outro lado, há aqueles que defendem que o Judiciário não pode se comportar como mero espectador do arbítrio exclusivo dos credores, devendo analisar os termos do plano de recuperação judicial para homologá-lo ou não, em uma visão ampla de intervenção do magistrado, tanto sob o aspecto formal quanto material. A posição é defendida por Amador Paes de Almeida, Fábio Ulhoa Coelho e Manoel Justino Bezerra Filho, dentro outros doutrinadores.

Dessa forma, com base no princípio da preservação da empresa e da função social, o juiz poderia aprovar plano de recuperação rejeitado pela Assembleia Geral de Credores, se entender que a empresa se mostra economicamente viável, como também poderia rejeitar a recuperação por considerar que os objetivos da Lei da Recuperação Judicial não serão alcançados.

Foi essa segunda hipótese que aconteceu em 28 de fevereiro de 2012, no julgamento do Agravo de Instrumento 0136362-29.2011.8.26.0000 do TJ-SP, de relatoria do desembargador Pereira Calças, referente ao processo de recuperação judicial da Cerâmica Gyotoku. A decisão inaugurou nova posição, segundo a qual o juiz pode apreciar o mérito do plano de recuperação, tornando-se o leading case sobre o assunto.

Em sua fundamentação, o desembargador Pereira Calças considerou ser um “grave equívoco” a ideia de soberania da Assembleia Geral de Credores como valor absoluto, que esta deve ser complementada e aperfeiçoada e somente pode ser considerada soberana quando obedece a Constituição da República e as leis constitucionais, sendo dever do Poder Judiciário recusar a homologação do plano viciado. Assim, o juiz não deve se comportar como mero chancelador das deliberações assembleares.

Ao se imiscuir no conteúdo econômico-financeiro do plano, o magistrado justificou que o plano de recuperação judicial não pode propor condições de pagamento “que tenham o potencial de acarretar aos credores sacrifícios superiores aos que eles suportariam no caso de falência da devedora”, sob pena de evidenciar que “a empresa não pode ser considerada recuperável por suas próprias forças, mas sim, pelo sacrifício excessivo imposto de forma injusta àqueles que lhe deram crédito, por acreditar que ela cumpriria a palavra empenhada”.

Há, ainda, uma visão intermediária, daqueles que defendem o papel dos credores como maiores interessados na crise do devedor e nos rumos do pedido de recuperação judicial, não cabendo ao Judiciário se pronunciar sobre questões de cunho econômico-financeiro do plano de recuperação judicial, mas apenas analisar a sua legalidade.É expressiva e crescente a aderência da doutrina a esse posicionamento, defendida por nomes como Jorge Lobo, Paulo F. Campos Salles de Toledo e Ricardo Negrão.

Segundo esse entendimento, o controle judicial encontra freio no controle de legalidade das deliberações da Assembleia Geral de Credores e do plano de recuperação judicial, de maneira que, quando o magistrado adentra na análise econômico-financeira do plano, está ultrapassando sua competência e adentrando território reservado às partes.

Durante a I Jornada de Direito Comercial, em outubro de 2012, foram aprovados os Enunciados 44 e 46[3] que corroboram o entendimento desta terceira corrente.

No campo da jurisprudência, o STJ tem adotado a corrente da intervenção judicial restrita ao controle de legalidade, com vedação do magistrado ao exame da viabilidade econômica do plano.

O ministro Luís Felipe Salomão, no julgamento do Recurso Especial 1.359.311-SP, em 30 de setembro de 2014, enfrentou profundamente o tema. Em sua decisão, consignou que o Poder Judiciário pode analisar o plano de recuperação após a aprovação pelos credores, porém lhe é vedado realizar qualquer ingerência na sua viabilidade econômica, cabendo-lhe apenas exercer o controle de legalidade deste, no qual estão inseridos a verificação de fraude e abuso de direito.

O ministro também consignou que o juiz deve abster-se de realizar o controle da viabilidade econômica do plano, para não correr o risco de adentrar em controvérsias que não lhe são afeitas, que extrapolam a seara jurídica e adentram o âmbito negocial.


[1] Para Gerson Luiz Carlos Branco; “(…) a transformação da concordata em “favor legal” pela Lei 2.202, de 17.12.1908, fato histórico que deixou resultados nefastos seja pelo exacerbado poder dos juízes, seja pelo inexistente poder dos credores, tudo agravado pela ineficiência do processo e da própria máquina pública, o que, acrescido pela falta de familiaridade do Poder Judiciário com as angústias e com a lógica da empresa, transformou a concordata em um grande fracasso histórico” in  BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O Poder dos Credores e o Poder do Juiz na Falência e Recuperação Judicial. Revista dos Tribunais. Ano 12, vol. 936, outubro de 2013, p. 45.
[2] Neste sentido: Agravo de Instrumento- Recuperação Judicial- Homologação do Plano de Recuperação-Impugnação. Aprovado o plano pela Assembleia Geral de Credores ao juiz cabe apenas homologá-lo. (TJ-SP- Agravo de Instrumento 649.374-4/3-00 – Rel. Des. José Roberto Lino Machado- Data do Julgamento: 18 de agosto de 2009).
[3] Enunciado 44. A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade. Enunciado 46. Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores.

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