Academia de Polícia

A interceptação das comunicações e os encontros fortuitos

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

3 de maio de 2016, 8h10

Spacca
A interceptação das comunicações consiste, a partir das classificações doutrinárias acerca da prova, em um meio de investigação, destinado à obtenção de eventuais provas de práticas criminosas, ou seja, “meios para adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória”[1].

A medida surge nesse cenário como um dos meios de investigação mais invasivos, mitigando o sigilo das comunicações, que decorre da proteção à intimidade e à vida privada, objeto de ampla tutela por nossa Constituição Federal de 1988, que protege os direitos fundamentais do indivíduo.

Nesse âmbito de tutela do espaço reservado do indivíduo se insere o segredo das comunicações, conforme artigo 5º, XII, da Constituição Federal, que assegura que:

“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

A interceptação das comunicações não é tema novo, sendo prevista há longo tempo nas legislações para utilização na investigação criminal. No Brasil, a matéria era disciplinada anteriormente pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962), que trazia dispositivos genéricos sobre a possibilidade de interceptação das comunicações telefônicas.

Tendo em vista a não previsão de procedimento, o referido normativo foi alvo de críticas, sobretudo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, passou a considerar ilícita a interceptação telefônica sem existência de lei que regulamentasse a limitação constitucional explícita contida no artigo 5º XII, como, por exemplo, no HC 69.912. Tal postura foi fundamental, dessa forma, para que, em 1996, fosse promulgada a Lei 9.296, visando a disciplina legal do tema, para regulamentar a limitação constitucional acima mencionada[2].

Ademais, o tema da interceptação das comunicações foi reforçado com a entrada em vigor da lei de crime organizado (Lei 12.850/2013), ao trazer, entre os meios de obtenção de prova, os dispostos no artigo 3°:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I – colaboração premiada;

II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III – ação controlada;

IV – acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V – interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI – afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal (grifos nossos).

Assim, observa-se que o novo diploma legislativo brasileiro que trata da investigação da criminalidade organizada reforçou a interceptação das comunicações telefônicas e telemáticas como meio de obtenção de prova, remetendo à legislação específica, no caso a Lei 9.296/96, a sua disciplina.

Com relação ao Direito Comparado, Alemanha[3], Itália[4], Portugal[5], Espanha[6] e Chile[7], por exemplo, possuem a matéria regulada em seus códigos de Processo Penal. Nos Estados Unidos, por sua vez, a matéria é disciplinada pelo Omnibus Crime control and Safe Streets Act, de 1998, que, em seu capítulo 119, trata do tema das interceptações. Igualmente, no Reino Unido a questão é tratada no Regulation of Investigatory Powers Act – RIPA, de 2000, que consiste num extenso regramento da questão.

Uma das questões mais delicadas em matéria de interceptação telefônica é a identificação de outros fatos praticados por terceiros que se comunicam com o sujeito passivo da interceptação telefônica, cuja autorização judicial, em princípio, não faz menção a ele, o que a doutrina chama de encontros fortuitos.

Esse fenômeno, chamado de serendipidade, consiste em sair em busca de algo e encontrar outra coisa, que não se estava procurando, mas que pode ser ainda mais valioso. A expressão vem da lenda oriental Os três príncipes de Serendip, viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas sem ligação com seu objetivo original.

Em que pese a necessidade de a autorização judicial de escuta trazer a descrição clara da situação objeto da investigação e a indicação e qualificação dos investigados, conforme bem coloca Luiz Flávio Gomes[8], pode ocorrer, no curso de alguma interceptação, a identificação de informações sobre outros fatos penalmente relevantes, nem sempre relacionados com a situação que estava sendo investigada e que, como consequência, envolvem outras pessoas.

Partindo-se do pressuposto de que a interceptação telefônica demanda uma comunicação entre dois interlocutores, sendo que um deles pode não ter qualquer relação com o fato que gerou a autorização judicial, inevitável será considerar que a autorização judicial também abrangerá a participação de qualquer interlocutor no fato que está sendo apurado, e não apenas aquele que justificou a providência. Mesmo porque, se assim não pensarmos, a interceptação será inútil.

Contudo, importa ressalvar que esses interlocutores não envolvidos restarão protegidos pelo sigilo das conversas e, consequentemente, por todo respaldo legal, cuja violação, inclusive, é tipificada criminalmente.

Percebe-se que, de fato, o tema dos conhecimentos fortuitos obtidos durante uma interceptação de comunicações é dos mais espinhosos na doutrina, admitindo, em regra, diversos posicionamentos. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, merecem destaque os precedentes:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA LICITAMENTE CONDUZIDA. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA DA PRÁTICA DE CRIME PUNIDO COM DETENÇÃO. LEGITIMIDADE DO USO COMO JUSTA CAUSA PARA OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição da República, considerou compatível com o art. 5º, XII e LVI, o uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto da interceptação, seja punido com detenção. 2. Agravo Regimental desprovido. (AI 626214 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/09/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010).

No que tange ao Superior Tribunal de Justiça, por sua vez:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART. 288 DO CÓDIGO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA OFERECIDA EM DESFAVOR DOS PACIENTES BASEADA EM MATERIAL COLHIDO DURANTE A REALIZAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA PARA APURAR A PRÁTICA DE CRIME DIVERSO. ENCONTRO FORTUITO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONEXÃO ENTRE O CRIME INICIALMENTE INVESTIGADO E AQUELE FORTUITAMENTE DESCOBERTO. I – Em princípio, havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demonstração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, a uma, porque a própria Lei nº 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se quedar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitucional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. II – A discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa. Habeas corpus denegado. (HC 69.552/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2007, DJ 14/05/2007, p. 347)

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. PERDA DO OBJETO. PROVA. ESCUTA TELEFÔNICA. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. 1. Constatada a revogação da prisão preventiva do ora Paciente, resta esvaído parte do objeto do presente writ, que visava ao reconhecimento de constrangimento ilegal pela manutenção da prisão cautelar. 2. É lícita a prova de crime diverso, obtida por meio de interceptação de ligações telefônicas de terceiro não mencionado na autorização judicial de escuta, desde que relacionada com o fato criminoso objeto da investigação. 3. A legitimidade do Ministério Público para conduzir diligências investigatórias decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/93. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial — titular exclusivo da ação penal pública —, proceder a coleta de elementos de convicção, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria. Writ prejudicado em parte e, na parte conhecida, denegado.(STJ, 5ª Turma, HC 33.553/CE, rel. Min. Laurita Vaz, j. 17/03/2005).

Ainda sobre a interpretação jurisprudencial do tema, cabe mencionar que, em alguns julgados mais recentes, tem sido admitida a colheita acidental de provas mesmo quando não há conexão entre os crimes. Veja-se a APn 690/STJ, cuja investigação inicialmente proposta para apurar uso de moeda falsa, mas a Justiça Federal no Tocantins percebeu que as escutas telefônicas revelavam possível negociação de decisões judiciais praticada por desembargadores. A investigação foi, então, remetida ao STJ, por causa do foro privilegiado das autoridades.

Conforme levantamento publicado pelo próprio sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça[9], aquela corte adotou diversos posicionamentos acerca da serendipidade, cujos principais trechos indicamos abaixo:

No julgamento do HC 189.735, o ministro Jorge Mussi enfatizou que, se a autoridade policial, em decorrência de interceptações telefônicas legalmente autorizadas, tem notícia do cometimento de novos ilícitos por parte daqueles cujas conversas foram monitoradas, é sua obrigação apurá-los, ainda que não possuam liame algum com os delitos cuja suspeita originariamente ensejou a quebra do sigilo telefônico.

Já no HC 197.044, por sua vez, o ministro Sebastião Reis Júnior entendeu que, sendo lícita a interceptação telefônica, como tal captará licitamente toda a conversa. “Havendo indícios de crime nesses diálogos, o estado não deve se quedar inerte; cumpre-lhe tomar as cabíveis providências.”

Ao julgar o RHC 28.794, em 2012, a 5ª Turma entendeu que a jurisprudência aceita a possibilidade de se investigar um fato delituoso de terceiro descoberto fortuitamente, desde que haja relação com o objeto da investigação original. O caso envolvia a interceptação de um corréu e resultou em denúncia por corrupção passiva contra esse terceiro, que não era o objetivo da investigação. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz, relatora, destacou que “a descoberta de fatos novos advindos do monitoramento judicialmente autorizado pode resultar na identificação de pessoas inicialmente não relacionadas no pedido da medida probatória, mas que possuem estreita ligação com o objeto da investigação”.

Também a utilização da interceptação telefônica como ponto de partida para nova investigação, situação bastante corriqueira na prática das interceptações, foi reconhecida como válida no julgamento do HC 189.735, onde, na investigação de irregularidades na importação de medicamentos, revelaram-se relações “promíscuas” de servidores públicos com a iniciativa privada, responsabilizados pela prática de outros crimes que não guardavam relação com os que originaram a investigação.

No Direito Comparado encontramos diversas soluções à questão. No Direito alemão, há previsão jurisprudencial de admissão, desde que se tratem de crimes previstos no catálogo de crimes listados no StPO.

Portugal admite a utilização dos conhecimentos fortuitos igualmente para crimes do catálogo, mas com a condição de envolverem o investigado, um intermediário ou a vítima.

Na Itália, por sua vez, permite-se a utilização em casos que admitam a prisão em flagrante, conforme se depreende do artigo 270 da legislação processual penal[10].

Outro ponto que merece destaque é o surgimento de delitos diversos daquele que motivou a interceptação, como, por exemplo, quando a suspeita, a investigação e a autorização eram para tráfico de drogas e, com a interceptação, se apura a ocorrência de formação de quadrilha, homicídio, lavagem de dinheiro, corrupção etc. Poderia, então, a gravação ser utilizada como prova (admissível e lícita) também desses fatos?

Nessa esteira, entendemos que é possível, sim, desde que esses novos fatos não figurem entre as proibições do artigo 2º e desde que guardem alguma relação de concurso de crimes, conexão e continência, para se evitar uma limitação excessiva do objeto da interceptação com o respectivo esvaziamento do seu conteúdo. Todavia, tais descobertas fortuitas devem estar, no mínimo, relacionadas com o fato que ensejou a autorização judicial, visto que não podemos perder de vista que a interceptação telefônica incide sobre pessoas e, portanto, deve ser entendida como procedimento excepcional em relação à intimidade, enquanto direito fundamental.

A questão da interceptação de comunicações tem sido objeto de intensa reflexão da doutrina, sobretudo em razão das diversas lacunas que contem à mesma, face às inovações tecnológicas, sentidas no campo das comunicações, em que diuturnamente surgem novas ferramentas e processos como suporte à comunicação. O destaque dado à interceptação de comunicações é traço marcante na mídia brasileira.

O Direito, por óbvio, não pode ficar alheio a essas inovações e, por outro lado, deve primar sempre pelo respeito aos direitos e garantias, que possuem, sobretudo, status constitucional.

Espera-se que, com a reforma processual que se aproxima, as lacunas e inconsistências ora existentes possam ser tratadas pelo novo diploma legal, e, sobretudo, delineada a utilização do instituto de maneira a conciliar sua utilização com as garantias individuais que devem permear o processo penal, primando sempre pela efetivação de um Estado Democrático de Direito, com o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo e sem deixar de lado a necessidade da eficaz persecução penal.


[1] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flavio Luiz  e MORAES, Maurício Zanoide. Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 309.
[2] GRINOVER, Ada Pellegrini. O regime brasileiro das interceptações telefônicas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIM, v. 17, jan./mar. 1997, p. 112.
[3] Parágrafos 100a e 100b do StPO, o Código de Processo Penal alemão, de 13.8.68.
[4] Artigos 266 a 271 do Codice di Procedura Penale italiano, embora a matéria já fosse regulada no antigo Código Rocco em seus artigos 226 e 339.
[5] Artigos 187 a 190 do Código de Processo Penal português, revisado pelo Decreto-lei n° 317/95.
[6] Artigo 579 da Ley de Enjuiciamento Criminal, o código de processo penal espanhol, alterado pela Lei Orgânica 4/1988.
[7] Artigos 222 a 226 do Código Procesal Penal chileno.
[8] GOMES, Luiz Flávio. Natureza jurídica da serendipidade nas interceptações telefônicas. Disponível em < http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090316100443595> Acesso em 26 abr. 2016.
[9] STJ. O encontro fortuito de provas na jurisprudência do STJ. Disponível em < http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/O-encontro-fortuito-de-provas-na-jurisprud%C3%AAncia-do-STJ> Acesso em 26 abr. 2016.
[10] Art. 270. (Utilizzazione in altri procedimenti). – 1. I risultati delle intercettazioni non possono essere utilizzati in procedimenti diversi da quelli nei quali sono stati disposti, salvo che risultino indispensabili per l’accertamento di delitti per i quali è obbligatorio l’arresto in flagranza.

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