Poderes e limites

"Lava jato" mostra que papel do juiz está em crise, dizem julgadores

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2 de maio de 2016, 19h29

Investigações como a “lava jato” evidenciam uma crise existente entre os juízes brasileiros quanto ao papel de garantidores de direitos, sobretudo os de origem constitucional. É o que avalia Marcelo Semer, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia e juiz de Direito em São Paulo.

Em palestra nesta segunda-feira (2/5), na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Semer afirmou que aos juízes cabem tutelar a defesa, não atuar em substituição à acusação. “A Constituição tem um projeto calcado na redução da desigualdade e centrado na dignidade humana. Por isso, as políticas públicas dentro desse projeto são incorporadas como princípios. Ao juiz não é dado discutir política pública, mas discuti-la diante desses princípios. Assim, quando o Supremo [Tribunal Federal] decide que a união homoafetiva ou a legalidade das cotas devem ser reconhecidas, ele não está fazendo política pública, mas interpretando o princípio da igualdade”, explicou.

A observância aos princípios, na avaliação de Semer, se faz ainda mais necessária no processo penal. Ele afirmou que o Judiciário brasileiro assiste, atualmente, a presença cada vez maior de juízes neoliberais, com mais presença que a própria lei, que não são omissos nem apolíticos e agem não para legitimar o Direito Penal, mas para promovê-lo.

“Ele [o juiz neoliberal] reconhece a Constituição, mas reconhece ainda mais o princípio da realidade. Ou seja: a histórica impunidade, o processo fadado ao insucesso, os múltiplos recursos, as brechas legais. Esse juiz é um homem de seu tempo. O que o garante não é mais a independência, mas a popularidade. O curioso é que esse juiz do futuro, pós-moderno, está mais próximo do juiz pré-moderno. Ele valoriza as várias formas de confissão, convive com a execração pública, agora sob o viés do processo penal do espetáculo, e acaba retornando à participação mais contundente da investigação”, criticou.

Sem se referir diretamente ao juiz Sergio Moro, que conduz a “lava jato”, Semer afirmou que a postura adotada na operação não pode sequer ser classificada como ativismo judicial: “O ativismo não permite substituir o sistema acusatório. Ao contrário: o ativismo é prestigiar os princípios constitucionais, não esvaziá-los. E isso tem sido o grande equívoco que a gente vê na condução do inquérito. Ele tem que ser um juiz de garantia, mas trabalha como juiz de instrução". E não adianta comparar o que acontece no Brasil com o que aconteceu na Itália durante a operação mãos limpas. "Na operação mãos limpas tinha um juiz instrução. Nós [no Brasil] não temos. Então, fez-se essa importação vesga”, acusa.

 

Para o juiz Rubens Casara, do TJ do Rio de Janeiro, que também participou do evento, os juízes vivem uma crise com relação às suas funções. “A crise do juiz é a crise do Estado Democrático de Direito. Cada vez mais vemos atores sociais exercendo poder sem limites. Isso leva à distorção do ativismo e a não concretização de direitos. Hoje os direitos fundamentais são vistos como obstáculo a eficiência protetiva do estado”, destacou.

Perfil dos juízes
Além do juiz pós-moderno, Semer destacou também outros dois tipos de magistrados. Um deles é positivista e apolítico, ignora a aplicação dos princípios constitucionais, ou porque não estão presentes na legislação ordinária, ou porque considera não serem autoaplicáveis. Esse juiz, classifica, tem como ideologia a neutralidade, tem pouco contato com a sociedade e geralmente nega que o Estado tem responsabilidade sobre a violação de direitos fundamentais.

Justamente em razão da força dos princípios constitucionais, esse juiz tem perdido espaço para o chamado juiz social, que a fim de garantir a aplicação dos direitos constitucionais, decide no lugar de governos e legisladores omissos ou mesmo contra a opinião pública. 

Para Semer, o Supremo Tribunal Federal se aproximou dessa ideia de juiz social, mas, a partir do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, começou a tomar novos contornos. Isso ficou mais claro, afirma, na recente decisão que permitiu a prisão de réus antes do trânsito em julgado, o que, para Semer, flexibiliza a presunção de inocência.

À ConJur, Semer destacou o risco dessas mudanças. “Acho que estamos prenunciando a desconstrução do modelo democrático e cidadão, que veio depois da ditadura. Grandes questões ligadas à cidadania, laicidade do Estado e redução das desigualdades estão em risco. E acho que o ambiente autoritário tem crescido. Em vez de discutir, estão querendo calar o outro. É, no mínimo, preocupante", afirmou.

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