Opinião

Cooperação processual no novo CPC pode incrementar ativismo judicial

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

2 de maio de 2016, 9h23

É de conhecimento geral que a cooperação processual, apesar da polêmica que sempre encerrou entre estudiosos brasileiros, acabou positivada no novo Código de Processo Civil (CPC-2015) por inegável influência do direito estrangeiro. E não são poucos os que a têm encarado como proveniente do direito fundamental ao contraditório, sendo aquela corolário deste, razão suficiente para que o raciocínio seja também trilhado em atenção ao princípio contramajoritário.

Conforme anotado anteriormente,[1] o nascimento do Estado de Direito ocorreu a partir de disputas políticas entre súditos e monarcas europeus durante as revoluções liberais. Afora suas especificidades, as Revoluções Inglesa e Francesa tiveram em comum a luta contra o despotismo monárquico, tanto que, a partir delas, forjaram-se instituições com o desígnio de impor limites ao exercício do poder. Foi em meio a este contexto que o constitucionalismo moderno ganhou força. A necessidade de combate ao despotismo fez com que o sistema jurídico conquistasse relevância em relação à política, perdendo pouco a pouco seu caráter apendicular ou instrumental, e passasse a oferecer mecanismos para diminuir o grau de personalismo presente na esfera pública.

Não que as democracias modernas mais estáveis (EUA, Inglaterra, França, Alemanha) tenham anulado por completo as possibilidades de colonização da esfera pública por interesses privados. No entanto, é impossível negar que os avanços foram exponenciais. De toda sorte, é ingênua a crença de que povos situados nesses países possuiriam uma personalidade ascética, superior à “cordialidade” que caracterizaria nossa própria gente.[2] Não é lá muito apropriado centralizar a causa dos problemas (sociais, políticos, econômicos e institucionais) que se enfrentam por aqui à uma (suposta) “condição latina”, base cultural de contornos negativos que se apresentaria inata a todo brasileiro. É preciso avançar para além desta postura intelectual acomodada e buscar explicações que estejam enraizadas na própria experiência institucional do país.[3]

É por essa ótica que se deve avaliar as idiossincrasias do fenômeno do ativismo judicial que se alastra sem peias pelo Brasil.[4] Os juízes daqui apostam na discricionariedade porque o Estado de Direito brasileiro foi tecido num ambiente onde escravismo e predominância de regimes autoritários perduraram excessivamente. A institucionalização de uma divisão social separada entre casa-grande e senzala e os constantes golpes de Estado prejudicaram a construção de uma república democrática no Brasil e permitiram a sacralização de alguns cargos da burocracia, cujos ocupantes, ou vários deles, ainda se sentem, até hoje, verdadeiros donos do poder. É por estarmos submersos nesse mar de desconfiança institucional que muitos dos nossos julgadores menosprezam a noção de responsabilidade política e o papel da legalidade constitucional para atuarem segundo uma atmosfera decisória consequencialista (=quanto maior o benefício social ou o bem-estar, maior também é a utilidade e a correção da decisão judicial), cujos resultados estão aí, como fratura exposta, para todos verem e sentirem: uma verdadeira esquizofrenia jurisprudencial, que só conduz à ausência de previsibilidade e à falta de segurança jurídica.[5]

O artigo 6º do CPC-2015, que positiva a cooperação processual, apresenta redação que promete incrementar práticas judiciais ativistas. E, em nosso sentir, parcela considerável dos processualistas segue entendimento que só faz agravar o problema, pois comprometida com um discurso que desdenha limites contidos no texto constitucional, como se possível fosse transpor o núcleo duro do contraditório, direito fundamental que engrossa o caldo de cláusulas pétreas que alicerçam nosso Estado Democrático de Direito.[6]

Com frequência, a doutrina rotula a cooperação processual como um modelo principiológico segundo o qual o processo civil, na contemporaneidade, deve estruturar-se. A base da cooperação processual estaria sobretudo no direito fundamental ao contraditório, que teria sido redimensionado para nele se inserir o próprio órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, não mais como mero espectador do duelo travado entre os litigantes. Esse modelo cooperativo seria o mais adequado porque nele a condução do processo não estaria determinada pela vontade das partes e tampouco seguiria a forma inquisitorial, com o órgão jurisdicional em posição assimétrica e superior. O que se teria é uma condução cooperativa do processo, sem destaques para qualquer dos sujeitos processuais, por intermédio de deveres de conduta (de esclarecimento, lealdade, proteção e consulta) a envolver e obrigar a todos, partes e juiz, este último assumindo dupla posição, sendo paritário na condução do processo, no diálogo processual, e assimétrico no momento de decidir.[7]

Acontece que essa perspectiva desperta questionamentos seriais: Quem, afinal, redimensionou o contraditório para nele inserir o juiz como sujeito do diálogo processual juntamente com as partes? Como justificar que a cooperação processual, que é um instituto infraconstitucional, tenha força suficiente para redimensionar o contraditório, um direito fundamental? Não deveria ser o contrário: a cooperação sendo redimensionada pelo contraditório? E onde ficaram os limites semânticos-pragmáticos impostos pelo artigo 5º, LV, da Constituição, que assegura o contraditório e a ampla defesa apenas e tão somente aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral? Como advogar um redimensionamento do contraditório, para nele inserir o juiz como sujeito do diálogo processual com as partes, se o contraditório é um direito fundamental das partes e não do juiz? Como justificar deveres das partes para com o juiz com fundamento no contraditório? (Afinal, por ser direito fundamental dos litigantes, o contraditório cria uma relação jurídica que impõe deveres ao juiz. O juiz não têm direitos oriundos do contraditório. No que diz respeito a esse direito fundamental, são as partes que se encontram em posição privilegiada em relação ao juiz, são elas é que têm direito ao contraditório, ao passo que ao juiz cabe observá-lo e atuar para que ocorra e se aperfeiçoe na maior medida possível). Se defronte ao contraditório a posição de protagonistas compete aos litigantes com exclusividade, como aceitar a figura do juiz atuando em paridade com eles? Aliás, o que significa dizer que o juiz é paritário no diálogo processual? Ser paritário é dialogar de igual para igual com as partes? Não ser mero espectador significa que agora teremos entre nós a figura (arrepiante) de um juiz contraditor?

São muitas as dúvidas. Mas insista-se nisso: que estória é essa de redimensionar um direito fundamental tendo-se por base um instituto infraconstitucional? Ora, os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo (político, doutrinário, ideológico), vinculam maiorias porque representam pilares que asseguram a própria existência do Estado Democrático de Direito. É preciso lembrar que direitos fundamentais, apesar da sua linguagem aberta e fluída, impõem por igual limites semânticos que constrangem hermenêutica e pragmaticamente o intérprete e cuja adulteração não se admite nem mesmo pelo poder de reforma constitucional (CRFB, artigo 60, §4º), quanto mais por anseios doutrinários e legislativos. Há neles, por assim dizer, uma blindagem contramajoritária.

Não cabe ao Judiciário desestruturar o contraditório, esgarçá-lo, nele empreendendo “upgrade” de sentidos para, à fórceps, realocar a figura do juiz a fim de torná-lo paritário no diálogo processual, construção teórica que representa um prato cheio para uma atuação jurisdicional com pendor excessivamente social, em desprezo à liberdade das partes e de seus advogados. Bem diferentemente, seu papel é o de tutelar esse direito fundamental (e também qualquer outro), preservando suas balizas, protegendo seus contornos constitucionais, mesmo que isso signifique contrariar motivações doutrinárias prevalecentes.[8]

Não se está a tratar aqui de algo menor, situado apenas no prisma doutrinário, ausente de consequências práticas. Esse modelo cooperativo de processo despreza, por exemplo, estudos empíricos, elaborados por centros de psicologia comportamental cognitiva, demonstrando que julgadores soçobram perante automatismos mentais. São vítimas de propensões e vieses cognitivos capazes de torná-los, mesmo inconscientes disto, parciais em seus julgamentos. Há hoje, para se ter uma ideia, provas indicando que: 1) o juiz da liminar tende a confirmá-la em sua sentença (confirmation bias), estando sujeito a sobrelevar provas e argumentos que corroborem sua posição inicial; 2) o juiz da instrução tende a sentenciar contaminado pela prova oral que diante dele foi produzida (representativeness bias), o que coloca em xeque a regra da identidade física do juiz; 3) o juiz tem dificuldade de ignorar provas apresentadas ao processo e, posteriormente, consideradas ilícitas (anchoring-and-adjustment bias); 4) o juiz é amiúde influenciado por impressões recebidas em razão do conhecimento de propostas de acordo realizadas pelas partes (anchoring-and-adjustment bias); 5) o juiz tende a supervalorizar laudos produzidos por peritos oficiais (in group bias), seguindo a voz daqueles que “pertencem a seu grupo”, o que no Brasil pode significar desprezo pelos pareceres técnicos.

É inaceitável, por conseguinte, menosprezar os perigos de uma proposta teórica cujo mote é situar o órgão julgador como sujeito do contraditório em paridade com os litigantes. Juiz paritário às partes, que com elas exerce o contraditório, caminha no fio da navalha e aventura-se no terreno dos enviesamentos. Arrisca-se a tomar partido em prol de alguém antes mesmo de chegado o momento de solucionar o litígio. É temerário (e inconstitucional) desmerecer a feição de garantia agregada ao contraditório, percebida pelo fato patente de que a Constituição o assegura apenas e tão somente às partes (e não ao Estado-juiz), daí extraindo-se perspectiva precaucional a impedir atuações de “juízes contraditores” no palco processual. Não fosse assim, cairia por terra a blindagem contramajoritária (associada a todo direito fundamental) e estaria aberta a temporada para o semeio de autoritarismos na prática forense a exasperar os males do ativismo judicial, hoje uma lamentável realidade brasileira.[9]

É preciso respeitar o contraditório em seus limites semânticos, dobrar-se ao devido processo constitucional, pois isso significa também a preservação da essência mesma da jurisdição, que é a imparcialidade do juiz, muito embora se encontre ela, é preciso reconhecer, bastante desbotada nestes tempos estranhos em que próprio o Supremo Tribunal Federal parece se acocorar perante clamores populares, chegando ao ponto de reescrever (para pior) os nossos tão caros direitos fundamentais.


[1] STRECK, Lenio. DELFINO, Lúcio. LOPES, Ziel Ferreira. LIMA, Danilo Pereira. O papel do jurista em face da crise política e institucional brasileira. Revista Conjur. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-25/papel-jurista-face-crise-politica-institucional>. Acessado: 06/04/2016.

[2] Ibid.

[3] Jessé de Souza é um crítico voraz da concepção do “homem cordial”, utilizada e difundida por Sérgio Buarque de Holanda, cunhada anos antes por Rui Ribeiro Couto. Entre os juristas que estudam os escritos do referido sociólogo, é preciso destacar dois importantes nomes: Dierle Nunes e Danilo Pereira Lima.

[4] Sobre os males do ativismo judicial: ABBOUD, Georges; LUNELLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo. RePro, 242, abr./2015. p. 21-47.

[5] STRECK, DELFINO, LOPES e LIMA. Op. cit.

[6] Entre outros, Daniel Mitidiero (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 3.a ed. 2015) e Fredie Didier Jr. (JUNIOR, Fredie Didier. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Coordenação: Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. Rio de Janeiro: Forense, 2015) defendem que o juiz é paritário no diálogo processual com as partes. Mitidiero, contudo, em recente obra escrita em coautoria com Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, demonstra preocupação com a delimitação da cooperação processual. Dialogou abertamente com críticas contrárias à sua teoria (inclusive, críticas que eu próprio, respeitosamente, fiz). Fica claro que parte de um conceito restrito (ou fraco) de cooperação, extraído do contraditório, a envolver apenas deveres de cooperação “do juiz para com as partes”. Em seu texto ele esclarece que a cooperação processual jamais pode significar aniquilamento da autonomia individual e da autorresponsabilidade das partes. A colaboração não elimina o princípio da demanda e as suas consequências básicas, a saber: o juízo de conveniência a respeito da propositura (ou não) da ação e a delimitação do mérito da causa, tarefas ligadas exclusivamente à conveniência das partes. O que há é um verdadeiro “dever de engajamento” do juiz em prol de uma decisão justa. Mitidiero também recusa qualquer possibilidade de cooperação entre partes (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. Tutela dos direitos mediante procedimento comum. Vol. 2. São Paulo: RT, 2015. p. 71-74). Estou plenamente de acordo com o autor, como se verifica em artigo publicado, em coautoria, na Revista Conjur (Ver aqui). Mas é preciso dizer que esse conceito de cooperação está aquém do pretendido pelo art. 6o. do novo CPC. Em outro ensaio, publicado na Revista Brasileira de Direito Processual, avancei um pouco mais a fim propor interpretação que, de algum modo, se ajuste mais perfeitamente à redação do art. 6o., sempre preso a preocupação com a constitucionalidade do dispositivo (DELFINO, Lúcio. Cooperação processual: inconstitucionalidades e excessos argumentativos – trafegando na contramão da doutrina. RBDPro, 93, 2016. p. 149-168). Esclareça-se, por fim, o seguinte: de lado naturais (e salutares) discordâncias surgidas no palco acadêmico, fica o registro do meu apreço por Daniel Mitidiero e Fredie Didier Jr., processualistas que tanto fizeram, e continuam a fazer, para o avanço do direito processual civil no Brasil.

[7] DIDIER, Fredie. Comentários ao Novo CPC. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 18-21.

[8] O Supremo Tribunal Federal já decidiu, acertadamente, que “a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, tem como destinatários os litigantes em processo judicial ou administrativo e não o magistrado que, no exercício de sua função jurisdicional, à vista das alegações das partes e das provas colhidas e impugnadas, decide fundamentalmente a lide”. (STF, Segunda Turma, AgRg no RE 222.206/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado: 30/03/1998, disponível em: <www.stf.jus.br>).

[9] O tema das propensões cognitivas me foi apresentado por Eduardo José da Fonseca Costa, quem na atualidade mais profundamente o estuda segundo um viés atrelado ao direito processual civil. Conferir: FONSECA COSTA, Eduardo José. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias. RBDPro, 90. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2015. p. 153-173. 

Autores

  • é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!