Opinião

Internet ilimitada é prevista no Marco Civil e Anatel erra ao favorecer empresas

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1 de maio de 2016, 8h30

No dia 18 de abril foi publicado no Diário Oficial da União o Despacho 1/2016 da Superintendente de Relações com Consumidores da Anatel. Nesse despacho, entre outras providências, foi autorizada a prática de limitação da banda larga fixa pelas operadoras de telefonia após o prazo de 90 dias.

No mesmo dia em que publicado o ato administrativo, o presidente da Anatel e a superintendente de Relações com Consumidores daquela agência expressaram comentários na mídia para tentar justificar a necessidade de mudança de fornecimento de dados para a modalidade limitada.

Entre as afirmações, foi dito que o consumidor brasileiro estava mal acostumado com a internet ilimitada. Segundo a Anatel, a era da internet ilimitada havia chegado ao fim e a principal razão para isso estaria no uso de serviços streaming, como YouTube, Netflix e jogos online[1].

Contra esse ato administrativo, os deputados federais, Raul Jungmann e Rubens Bueno, ambos do Partido Popular Socialista (PPS), ajuizaram ação popular de número 0024664-56.2016.4.01.3400, distribuída para a 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. A causa foi patrocinada pelo escritório Torreão, Machado e Linhares Dias Advocacia e Consultoria.

A opção pela ação popular encontrou duas justificativas. Em primeiro lugar, por se tratar de uma ação democrática. Não apenas os parlamentares, mas qualquer cidadão eleitor pode usar esse remédio jurídico para afastar dano ao patrimônio público. Em segundo, porque não apenas os 96,4 milhões de usuários da internet no Brasil foram prejudicados com o despacho da Anatel. Na verdade, o ato administrativo também atinge todo o patrimônio público. Basta lembrar que escolas, hospitais, universidades, tribunais, policiais e órgãos da Administração Pública dependem de uma conexão de qualidade e sem qualquer limite para poderem operar de maneira eficiente.

Apenas a título ilustrativo, no campo da educação, cerca de 70% da população que acessa a internet, usa a rede com a finalidade de educação ou aprendizado, segundo dados do IBGE[2]. A Educação à Distância (EaD), baseada em vídeo-aulas, será diretamente prejudicada pelo ato administrativo da Anatel, pois, segundo o próprio presidente daquela agência reguladora, essa medida objetivaria combater a visualização de vídeos na internet.

Sem dúvida, a rede mundial de computadores é atualmente o meio mais importante de exercício da cidadania, por representar o acesso à informação, à cultura e aos meios de comunicação. É indiscutivelmente um serviço público essencial para o exercício de diversos direitos fundamentais, que não podem ser restringidos de forma arbitrária por um ato administrativo unilateral da Anatel.

O ato administrativo expedido pela Anatel é nulo por incompetência, vício de forma e ilegalidade do objeto (artigo 2º, incisos “a”, “b” e “c” da Lei 4.717/95). O despacho viola frontalmente o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) e fere o princípio da moralidade administrativa (artigo 37, caput, da Constituição Federal).

A primeira nulidade do ato resulta de ofensa ao artigo 22, inciso IV, da Constituição Federal. Esse dispositivo estabelece competir privativamente à União legislar sobre informática e telecomunicações. Portanto, para alterar o sistema de fornecimento de internet fixa de banda larga não basta um mero ato administrativo da Anatel. Na verdade, a Constituição exige um projeto de lei federal, preferencialmente com ampla participação popular, capaz de estabelecer novos parâmetros de fornecimento de internet fixa.

Para alteração da forma de prestação de um serviço público essencial de telecomunicação, como o caso da internet, é indispensável que o tema seja debatido de forma democrática, precedido de audiências e consultas públicas, além de respeitada a competência do Poder Legislativo Federal para votar e legislar sobre o tema. Assim, o ato administrativo da Anatel é nulo, por vício de competência e forma, nos termos do artigo 2º, incisos “a” e “b” da Lei 4.717/95.

O despacho da Anatel também é nulo por vício de legalidade de seu objeto, nos termos do artigo 2º, inciso “c”, da Lei 4.717/95. Isso porque o resultado do ato administrativo importa em violação de lei, mais especificamente, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014). Essa lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, os quais foram desrespeitados pelo ato da Anatel.

O Marco Civil estabelece que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e deve ser promovido o direito de acesso a todos os cidadãos brasileiros (artigo 4º, inciso I e artigo 7º, caput). Outras disposições do Marco Civil da Internet especificam o direito à preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, além da proibição de suspensão ou redução da conexão à rede (artigo 3º, inciso V e artigo 7º, incisos IV e V).

Vê-se cristalinamente que o ato da Anatel, perpetrado por Elisa Vieira Leonel, com o aval de João Batista de Rezende, fere a transcrita lei federal. O despacho proferido pela Anatel tolhe o direito à Internet, que é essencial ao exercício da cidadania. Dessa forma, de forma tão ilegal quanto paradoxal, a Anatel tentar atropelar o Marco Civil da Internet.

Tal ato foge da moralidade administrativa, que, no entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, deve estar presente desde o momento da elaboração da lei até a execução em concreto pela Administração Pública[3]. Como diz Celso Antônio Bandeira de Mello, a Administração Pública deve atuar com sinceridade e lealdade perante seus administrados[4], orientação que parece ter sido esquecida pela Anatel.

A Anatel se distancia tanto do interesse público que a Proteste, Associação de Proteção aos Consumidores, lançou petição online, que já possuía mais de 150 mil adesões após três dias da publicação do referido despacho pela agência reguladora[5]. Como disse o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a Anatel de uma só vez conseguiu ofender o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor, ao editar resolução que autoriza formas de explorar mais e mais o cidadão[6].

Ao que tudo indica, a atividade reguladora da Anatel pareceu mais preocupada com os interesses das empresas de telecomunicações do que com todos aqueles milhões de usuários do setor regulado. Resta agora aguardar que as ilegalidades perpetradas pela Anatel seja prontamente revistas pelo Poder Judiciário e ao final se alcance uma normativa democrática, em harmonia com os interesses públicos e dos cidadãos. 

 


[2] IBGE.

[3] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, 21° ed., São Paulo: Atlas, 2007, pág. 198.

[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed.: Malheiros, 2009, p. 119/120.

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