Opinião

Descobrindo o óbvio: defesa prévia na lei de improbidade foi revogada pela EC 32/01

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1 de maio de 2016, 11h19

Já se disse e repetiu, um sem número de vezes, que a maior dificuldade na técnica argumentativa é provar o óbvio. Bem examinadas as coisas, não vai nisso ironia alguma. Em política, como em tudo mais, a reiteração de um abuso acaba por fazê-lo entrar na normalidade da vida.

É o que se dá com o poder, atribuído pela Constituição ao presidente da República, de editar medidas provisórias. Trata-se, a todas as luzes, de uma competência excepcional e não ordinária. Mas a prática brasileira acabou por transformar o abuso manifesto em costume pacífico e consagrado, sob as vistas complacentes do órgão judicial incumbido de zelar pela guarda e conservação do sistema constitucional.[1]

Aqui se pretende demonstrar o óbvio decorrente da reiteração de uma prática usada e abusada. O óbvio é a revogação de parte das disposições da medida provisória 2.225-45/01 pela emenda constitucional 32/01; o abuso refere-se às (re)edições inconstitucionais de tais atos normativos, sem qualquer urgência.

A medida provisória 2.225-45/01, reeditada 45 vezes – sem qualquer urgência, bem se vê – pelo então chefe do Poder Executivo da União, Fernando Henrique Cardoso, pretendeu alterar as Leis 6.368/76, 8.112/90, 8.429/92 e 9.525/97.

No que importa a este breve texto, a medida provisória 2.225-45/01 pretendeu alterar o procedimento da ação de improbidade administrativa, instituindo, essencialmente, a defesa prévia, de forma análoga ao procedimento dos crimes funcionais, previsto nos art. 514 e ss. do Código de Processo Penal.

Costuma-se afirmar que tal medida provisória continua em vigor, uma vez que sua eficácia fora “congelada” – e esta nos parece a melhor expressão para designar o fenômeno – pela emenda constitucional 32/01.

A eficácia das medidas provisórias em geral, editadas em data anterior a 11/09/01, data da publicação da emenda constitucional 32/01, foi, de fato, congelada pelo art. 2º deste ato normativo. Nos termos deste dispositivo, tais medidas provisórias “continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.”

No entanto, a eficácia das disposições da medida provisória 2.225-45/01 – reeditada pela última vez em 04/09/01, anteriormente, pois, à data estabelecida no art. 2º da emenda constitucional 32/01 – que versam sobre o procedimento da ação de improbidade administrativa não foi congelada. Explica-se.

A mesma emenda constitucional 32/01, alterando profundamente a disciplina constitucional das medidas provisórias, estabeleceu vedação da edição desta espécie normativa sobre matéria relativa a direito processual (art. 62, parágrafo 1º, I, “b”, CF).

Com a entrada em vigor da emenda constitucional 32/01 – o que ocorreu na data de sua publicação, a saber, 11/09/01, nos termos de seu art. 3º –, as disposições da medida provisórias 2.225-45/01 sobre o procedimento da ação de improbidade foram imediatamente revogadas, ou, sob outra perspectiva, não foram recepcionadas[2] pela nova disciplina constitucional da matéria, pois versaram sobre matéria relativa a direito processual civil[3].

Não se pode argumentar que a eficácia das disposições sobre procedimento da ação de improbidade contidas na medida provisória 2.225-45/01 fora congelada porque elas sequer foram recepcionadas pelas novas normas constitucionais decorrentes do poder constituinte reformador. Tais disposições da referida medida provisória foram revogadas pela emenda constitucional 32/01 tão logo esta entrou em vigor.  

O congelamento da eficácia das medidas provisórias editadas nos termos do art. 2º da emenda constitucional 32/01 pressupõe medida provisória materialmente compatível com as novas normas constitucionais, o que, como se viu, não é o caso. O art. 2º da emenda constitucional 32/01 aplica-se a outras medidas provisórias editadas de acordo com seus termos, mas não às disposições revogadas pelo mesmo ato normativo.

Conclui-se assim, com segurança, que não houve qualquer alteração do procedimento da ação de improbidade administrativa previsto na Lei 8.429/92 pela medida provisória 2.225-45/01. Não há, pois, defesa prévia neste procedimento, circunstância que costumava “especializar” o procedimento ordinário estabelecido no caput daquela lei.[4] Ajuizada a demanda, deve o demandado ser citado para oferecer contestação, e não intimado para oferecer defesa prévia.

A argumentação aqui desenvolvida é nova. Pode levar algum tempo até conquistar corações e mentes. Há mais de 15 anos tem se procedido de acordo com as alterações previstas na medida provisória 2.225-45/01. No entanto, às vezes, só descobrimos o óbvio após longa procura.[5]

 


[1] COMPARATO, Fábio Konder, A “questão política” nas medidas provisórias: um estudo de caso

[2] A inconstitucionalidade é sempre congênita, originária. Texto legal materialmente incompatível com ordem constitucional superveniente, ainda que parcial, como as emendas constitucionais, resolvem-se com a revogação da disposição legal anterior, ou, sob perspectiva diversa, mas com idênticos efeitos práticos, com a não-recepção do texto legal anterior.

[3] Não se desconhece a profunda celeuma a propósito da diferença entre normas de processo e normas de procedimento, que geram consequências na definição do ente federativo detentor da competência legislativa na matéria. Não há, contudo, qualquer concordância quanto a este ponto, ainda que mínima. Pressupor-se-á, aqui, a natureza de direito processual das normas sobre procedimento da ação de improbidade administrativa.

[4]  Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.

[5] BARROSO, Luis Roberto, O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, 8º edição, Editora Renovar, p. 296

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