Embargos e agravos

"Ampliar julgamento virtual no STF dá mais poder a relator e reduz transparência"

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29 de junho de 2016, 13h41

Spacca
Um dos principais problemas de um tribunal abarrotado de processos para julgar é a chamada monocratização das decisões. Desse fenômeno, o Supremo Tribunal Federal é o exemplo mais eloquente: dos 54,6 mil processos julgados pelo tribunal este ano, 47,9 mil o foram pelo relator, sozinho, sem a participação dos demais ministros, conforme dados divulgados pela corte atualizados na última quinta-feira (23/6).

Desse total, quase 40 mil decisões foram tomadas em recursos internos, principalmente agravos regimentais e embargos de declaração. Por isso é que o Supremo aprovou, por unanimidade, em sessão administrativa, que o julgamento desses casos seja feito pelo Plenário Virtual.

O sistema será parecido com o que já funciona para a repercussão geral, para a discussão sobre a existência de matéria constitucional em recursos ou para a aplicação da jurisprudência pacífica da corte. O relator apresenta os embargos e agravos e os ministros têm cinco dias úteis para pedir destaque ou vista dos casos. A sessão virtual tem início 24 horas depois. Já as partes têm até 24 horas antes do início da sessão para pedir destaque no julgamento de algum processo.

Mas se o método vai dar mais rapidez aos julgamentos, pode dar ainda menos transparência e aumentar o poder do relator nos processos. É o que diz a advogada Damares Medina.

No início deste ano, ela publicou um livro em que analisa os resultados da repercussão geral entre 2007, quando foi criada, em 2014. E o que ela descobriu foi que os ministros não apareceram para votar no Plenário Virtual, onde se discute a existência repercussão no recurso, em 30% dos casos. E a abstenção conta como voto a favor.

Isso resultou numa vitória do voto do relator em 99% dos casos, já que, mesmo quando votam, os ministros só dizem se concordam ou não com o relator. E tendem a concordar, já que não precisa fundamentar para acompanhar. O único que fundamentou absolutamente todos os votos foi o ministro Marco Aurélio.

Com a nova emenda sobre embargos e agravos, a tendência é que esses números se repitam. Com a diferença, explica Damares em entrevista à ConJur, que a discussão sobre a existência de repercussão geral num recurso é preliminar, de admissibilidade. E as decisões em embargos e agravos é de mérito e definitiva, com análise de argumentos e parecer do Ministério Público.

“Seria salutar uma liturgia mais adequada a mudanças dessa envergadura, como a melhor divulgação das sessões administrativas e uma maior publicização desses espaços decisórios”, afirma Damares. “Estamos diante de um processo de concentração de poderes do relator, no qual, cada vez mais, o princípio do colegiado cede lugar ao individualismo monocrático dos relatores no processo constitucional.”

Leia a entrevista:

ConJur – Qual é a principal mudança da transferência do julgamento dos embargos e agravos pelo Plenário Virtual?
Damares Medina – De acordo com a redação da Emenda Regimental 51/2016, a principal mudança é o prazo de cinco dias úteis para a manifestação acerca do provimento ou improvimento do recurso. Com isso, cria-se o voto tácito do ministro que deixar de se manifestar nos cinco dias, no mesmo sentido do voto do relator do processo. 

ConJur – O Supremo tem privilegiado soluções administrativas, preocupado com a quantidade de processos pra julgar, em detrimento das jurisdicionais?
Damares Medina – A solução aventada é procedimental, tomada em sede administrativa típica para alteração regimental, com nítido conteúdo judicial e profundos desdobramentos, já que repercutirão no processo decisório de milhares de recursos. Nesse sentido, seria salutar uma liturgia mais adequada a mudanças dessa envergadura, como a melhor divulgação das sessões administrativas e uma maior publicização desses espaços decisórios. O ofício enviado pelo ministro Marco Aurélio ao presidente do Supremo é emblemático desse cenário. Se até o presidente da Comissão de Regimento Interno se sentiu alijado do processo decisório que alterou o regimento, renunciando ao cargo, que dirá nós, jurisdicionados.

ConJur – Hoje o Supremo julga os agravos e embargos em listas elaboradas pelo relator, e raramente há algum tipo de discussão. Com o plenário virtual esse processo ficará mais transparente?
Damares Medina – O procedimento tornará o julgamento mais acessível, já que vincula a inclusão do recurso interno no Plenário Virtual à disponibilização da lista de julgamento com antecedência mínima de cinco dias. Entretanto, a emenda já prevê exceções, porque ficará a critério do relator do processo a submissão do recurso ao plenário virtual, bem como a apreciação do pedido de destaque da parte.

ConJur – Quais a consequências dessas exceções?
Damares Medina –
Até o momento, não há nenhum critério objetivo que oriente a decisão do relator de submeter ou não o processo ao julgamento eletrônico ou presencial, o que abre margem a excepcionalidades e casuísmos, cada vez mais frequentes no processo constitucional. Estamos diante de um processo de concentração de poderes do relator, no qual, cada vez mais, o princípio do colegiado cede lugar ao individualismo monocrático dos relatores no processo constitucional. 

ConJur – Haverá mais decisões por omissão?
Damares Medina – Há elementos empíricos para concluirmos que o comportamento absenteísta dos ministros no Plenário Virtual será potencialmente aumentado, dado o elevado número de recursos internos e o prazo quatro vezes menor para decidir (cinco dias úteis se comparados aos 20 dias da repercussão geral). A se manter o comportamento decisório que o STF adotou nos últimos nove anos de Plenário Virtual, podemos esperar que, nos cinco dias para o julgamento dos agravos regimentais e embargos de declaração, apenas o relator profira o seu voto.

ConJur – Esse é o comportamento nas discussões sobre a repercussão geral?
Damares Medina –
Fazendo um paralelo com o julgamento da repercussão geral, apenas o relator do processo fundamenta o seu voto e os demais ministros têm o prazo de 20 dias para se manifestar. Mesmo votando sinteticamente e sem fundamentação (se sim ou não), os ministros deixam de votar em 30% dos casos de repercussão geral. Na prática, o voto do relator do processo é vencedor em 99% dos casos, seja pelo quórum qualificado, seja pelo alto índice de abstenção dos demais ministros. Como no caso dos recursos internos o volume de processos é absurdamente maior e o prazo é quatro vezes menor, a tendência é que a omissão se agrave drasticamente.

ConJur – Mas já não é isso o que acontece nos julgamentos físicos?
Damares Medina –
O “voto tácito” não é lugar comum no processo constitucional. Chama atenção o processo silencioso de equiparação do “voto tácito” ao “voto com o relator”. Trata-se de uma profunda mudança estrutural no processo constitucional, já que o “voto tácito” foi instituído para o julgamento da preliminar de repercussão geral e agora é adotado também para o julgamento do mérito dos recursos de agravo e embargos. É preciso atentar para o fato de que essas mudanças estão passando ao largo de um debate com a comunidade jurídica e do próprio legislativo, já que o Supremo está estabelecendo unilateralmente as alterações.

ConJur – Do ponto de vista jurisdicional, o que isso quer dizer?
Damares Medina –
Em uma perspectiva procedimental democratizadora de dispersão de poder, com todas as limitações do julgamento em lista (e não são poucas), há uma dimensão legitimadora para a parte que tem seu agravo improvido pelo voto de quatro ministros que acompanharam o relator. Outro significado terá o julgamento virtual do processo, no qual apenas o relator proferiu o seu voto e os demais ministros simplesmente se omitiram, deixando de votar. Ou seja, sequer acessaram o Plenário Virtual e apuseram sua sintética manifestação, mesmo sem fundamentação, já que se considerará a adoção do fundamento do voto condutor.

ConJur – Dá pra calcular o potencial dessa mudança para os julgamentos de agravos e embargos, diante do comportamento dos ministros?
Damares Medina –
Entre janeiro de junho deste ano, o STF proferiu 40 decisões de repercussão geral e 5.717 decisões em recursos internos. Esses números não podem ser banalizados [clique aqui para acessar o levantamento, do próprio STF]. Levando em consideração que os agravos regimentais e embargos de declaração são julgados nas turmas, entre fevereiro e junho de 2016, as turmas fizeram 19 sessões que decidiram, em média, mais de 300 recursos internos por sessão. Em uma sessão hipotética de cinco horas de duração, a turma julgaria um processo por minuto. Esse quadro caricato serve para demonstrar que, desde que o STF e os demais tribunais superiores adotaram o julgamento em lista como resposta possível à crise numérica, os julgamentos dos agravos regimentais e embargos de declaração são materialmente monocráticos e apenas formalmente colegiados. Seria mias coerente acabar com os julgamentos colegiados dos recursos, ao invés de alterar o método decisório de presencial para colegiado. 

ConJur – O seu livro levanta que diversos ministros não votam ou não fundamentam seus votos no plenário virtual, e, como a abstenção conta como voto a favor da repercussão, isso leva a um gargalo: o tribunal reconhece mais repercussões do que pode julgar. Qual deve ser a consequência do julgamento virtual de agravos e embargos?
Damares Medina – A principal diferença é que o julgamento da repercussão geral é preliminar e o seu reconhecimento implica o posterior julgamento do mérito, que acontecerá no plenário presencial.  No caso dos recursos internos, julgamento é de mérito, sem a necessidade de um subsequente julgamento presencial, o que, a princípio, não geraria gargalos. Entretanto, em uma visão sistêmica do contencioso constitucional, sempre que o tribunal fecha uma porta, as vias de acesso tendem a construir caminhos alternativos. Foi o que aconteceu com a multiplicação das reclamações após a criação da repercussão geral. Portanto, apenas com o tempo poderemos observar se a mudança no método decisório acarretará numa melhoria do processo constitucional como um todo. 

ConJur – Os ministros costumam elogiar os resultados do plenário virtual em relação à repercussão geral. O saldo é mesmo positivo?
Damares Medina – Ao contrário do que pode parecer, o grande mérito do Plenário Virtual não é o julgamento eletrônico dos processos. É o prazo peremptório de decidir (20 dias corridos que não se interrompem ou suspendem, e a impossibilidade de pedido de vista) atrelado ao voto tácito. Esses dois elementos decisórios fazem com que, uma vez iniciado o Plenário Virtual, ele necessariamente se encerre no prazo de 20 dias, quer os ministros votem ou, com o resultado do julgamento. Qualquer modelo decisório (presencial ou virtual) que adote prazo fixo peremptório de julgamento terá a celeridade assegura.

ConJur – Mas não há debate e muitas vezes nem voto.
Damares Medina –
O modelo do Plenário Virtual apresenta limitações que não podem ser desprezadas, e uma delas é a total impossibilidade de interação entre os ministros e de intervenção das partes do processo após o início do julgamento. Outro ponto sensível é a carência das fundamentações das decisões no ambiente virtual e o alto índice de abstenção. Parece que, por ser eletrônico e não ser transmitido pela TV Justiça, os ministros nãos e importam muito com técnicas argumentativas ou simplesmente não votam. Dá até para dizer que, ciente de que a abstenção contaria tacitamente como voto pelo reconhecimento da repercussão geral, os ministros apenas registrariam seu voto quando negativos. Em minha exaustiva pesquisa acerca do Plenário Virtual e da repercussão geral verificamos que os ministros votam em ambos os sentidos, sendo de fato alto o índice de abstenção. 

ConJur – A transferência para o Plenário Virtual não vai dar ainda menos transparência ao julgamento dos agravos e embargos?
Damares Medina – Alguns autores veem o STF como a suprema corte mais transparente e mais aberta do mundo. Para mim, essa é uma visão limitada que não leva em consideração o fato de que mais de 85% de todos os processos do STF são decididos monocraticamente nos gabinetes. Muitos deles pelo presidente do tribunal, antes mesmo de serem distribuídos. O STF do Plenário e da TV Justiça representa uma parcela ínfima dos processos e da atividade jurisdicional. Na perspectiva do sistema recursal interno o STF, se assemelha a uma caixa preta.

ConJur – Então, sim, vai reduzir a transparência?
Damares Medina –
Explico: a excessiva sobrecarga de processos impede que se exerça um controle sistemático do processo decisório do tribunal em sua dimensão procedimental e substantiva, e a crise numérica funciona quase como uma blindagem na qual exceções caem no emaranhado de decisões cuja sistematização, padronização e compilação é impossível ao jurisdicionado. Nesse ponto, me pergunto por que, em vez de criar novos filtros recursais e modificar métodos decisórios, o tribunal não adota uma postura decisória efetivamente restritiva.

ConJur – A postura do Supremo hoje não é restritiva?
Damares Medina –
Em minha pesquisa, identifiquei que, mesmo depois da repercussão geral, o comportamento decisório do STF é francamente ampliativo, reconhecendo a repercussão geral em 75% dos recursos analisados. Ora, o acesso ao tribunal e a carga processual depende do tamanho efetivo que os ministros irão dar ao filtro de acesso. Soa contraditório reclamar da carga de processos e votar massivamente pelo reconhecimento da repercussão geral. Ou omitir-se em um cenário no qual a abstenção contará como voto pelo reconhecimento da repercussão geral. A transparência dos julgamentos passa, também, por uma carga processual humanamente exequível. O dimensionamento do volume de processos do STF, por sua vez, é função dos filtros de acesso e da largura que os ministros emprestam a esses filtros, dentre outros fatores complexos que fogem a essa restrita análise, claro. 

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