Opinião

Jamais se disse ou se pretendeu dizer que traficante pode andar armado

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27 de junho de 2016, 14h28

Admiro o Lenio Streck, mas não posso dizer que circulo entre seus amigos próximos. Ele foi meu professor em duas ocasiões, no mestrado e no doutorado. E também esteve na minha banca de doutoramento, em abril de 2006. Quando fui promovido a desembargador e classifiquei-me na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na vaga deixada por Aramis Nassif, tive a felicidade de compor aquela câmara criminal na companhia de Amilton Bueno de Carvalho, de Luiz Gonzaga da Silva Moura e de Genacéia Alberton. Lenio Streck, como todos sabem, foi procurador de justiça e por muitos anos, certamente mais de uma década, na 5ª Câmara Criminal do TJ-RS.

Nesses termos, estou honrado com uma crítica, severa, do Lenio, na sua última coluna da ConJur, ou, como ele diz, uma “chinelada epistêmica”. É a segunda crítica que dele recebo, pelo menos de que eu saiba, que constou na sua prestigiada coluna da ConJur. Honrado porque convivo muito bem com a crítica. Ela me faz bem, pois sempre procuro ter um sentimento elevado de autocrítica. Também estou honrado porque vem do Lenio. E, no caso, ela me dá a oportunidade de dizer algo mais.

Procuro prestar, na matéria penal, uma jurisdição garantista. Nas demais matérias também procuro não me desgarrar das concepções que lhe servem de fundamento. Observar e aplicar a Constituição. Aliás, nas aulas de graduação sempre recordo da noção de Streck quando diz que “temos — os brasileiros — um sentimento de baixa constitucionalidade”. Isso é fruto da ditadura que vivenciamos e da jovialidade das nossas instituições, para começo de conversa. Muitos não dão tanta importância, como deviam, à Constituição, prestes a completar 28 anos. E, nesse contexto, também prestigio e dou uma importância extremamente relevante à legislação. Digo sempre: “a lei é o resultado de uma longa evolução cultural da humanidade e, por isso, um determinado indivíduo não pode se considerar mais sábio do que ela”.

Na primeira crítica fui classificado como “iluminista tardio” (coluna de 4 de julho de 2013). Tive oportunidade de responder em artigo publicado na ConJur (9 de julho de 2013). Na última, do dia 23 de junho, fui classificado de “ativista caolho”. A primeira crítica que recebi é porque passei a entender, naquela ocasião, em razão do número elevadíssimo de mulheres presas levando drogas aos presídios e que, então, eram presas e condenadas, que isso se tratava de crime impossível e, por isso, não cabia a condenação. Houve outros entendimentos posteriores no sentido de que as revistas, íntimas, eram vexatórias e, por isso inconstitucionais. Esse entendimento veio de Nereu Giacomolli, com quem compartilhei, entre meados de 2012 e o final de 2014, a composição da 3ª Câmara Criminal do TJ-RS. Atualmente, o que havia sido percebido na 3ª Câmara Criminal e também já era visto por entidades protetoras dos direitos humanos e de pesquisas de proteção violência de gênero, vem ganhando maior espaço. Não é possível aceitar essa situação de aumento do número de mulheres presas por levarem drogas a presídios. Se isso ocorre é porque o “sistema prisional” não funciona, ou não funciona como deveria funcionar. E quem “paga o preço” é a mulher, que não é uma dama, mas uma mulher submissa a uma cultura machista, que além de abusá-la, violentá-la, agredi-la, atualmente submete a mulher a situações vexatórias na visita aos maridos e parentes presos e, ainda, a situações em que se vêem obrigadas a cumprir determinadas imposições, mesmo que apenas subjugadas sentimentalmente, poucas por dinheiro, a levar drogas aos presídio.

Isso agrava os problemas sociais, porque se os maridos estão presos e as mulheres vão presas, quem cuidará dos filhos e demais parentes dessas pessoas? E assim a criminalidade se projeta e aumenta. Mas esse tema já está vencido, de certo modo para mim, até porque vem alcançando outros espaços de debate, inclusive no STF na semana passada, quando expressou entendimento que revoga a Súmula 512 do STJ, ocasião em que diversos ministros mencionaram esse grave problema do aumento de mulheres presas acusadas por tráfico. Nesses termos, me sinto bem pela crítica feita à época, pois já por volta de 2012, há quatro anos, essa percepção eu já possuía. Então é possível que eu vista a carapuça de “iluminista tardio”, mas continuo com minhas convicções.

A crítica atual é dúplice e talvez nem seja atual. Já me criticaram em novembro de 2015 a respeito daquela mesma decisão de que fui relator na 3ª Câmara Criminal.

Efetivamente aquele acórdão está mal redigido. Mas isso é próprio da magistratura, que convive com o elevado volume de serviço, daí a pressão pela produtividade e pela quantidade e, por isso, não pode cuidar, como deveria, da qualidade da redação dos seus textos. Atualmente, na 3ª Câmara Criminal cada um dos desembargadores recebe mais de 200 processos por mês, por vezes o número chega a 300 ou passa desse número, dependendo de quantos componentes estejam em gozo de férias. Não há represamento da distribuição. Cada um dos componentes recebe diariamente em média 5 ações de habeas corpus, já tendo ocorrido de receber 10 dessas ações no mesmo dia. Os gabinetes são compostos de 1 cargo de secretário e 3 cargos de assessor, com mais 2 de estagiários. Somente no final do ano passado é houve o acréscimo de mais um cargo de estagiário e o terceiro cargo de assessor somente se tornou possível em 2014. Com esse quadro o desembargador tem de produzir mais de 200 votos de relator por mês e mais de 400 votos de revisor e de vogal, além de examinar cerca de 100 pedidos iniciais de habeas corpus. Esse é o volume médio mensal de serviços de cada um dos desembargadores da 3ª Câmara Criminal e é semelhante o volume de serviço da 1ª e da 2ª Câmara, com idêntica competência.

Como percebeu o Lenio, a ementa daquele acórdão, e a responsabilidade disso é exclusivamente do desembargador relator, está mal redigida, pois deixa a dúvida sobre se o traficante pode andar armado “para proteger a sua atividade”. Jamais se disse isso ou se pretendeu dizer isso. E o Lenio interpretou bem o que se quis dizer. Ninguém pode dizer que seria aceitável portar arma para proteger uma atividade penalmente ilícita. Assim, o meu entendimento foi o de reprimir uma conduta que não é adequada do ponto de vista legal: pedir mais para, quem sabe, levar o menos. Ora, se o traficante porta arma para proteger sua atividade penalmente ilícita, ele só pode ser acusado de tráfico com a majorante do uso de arma de fogo, não de tipos penais autônomos, como, costuma ocorrer, tráfico em cumulação material com porte de arma. A lei não permite isso. E as denúncias não são claras, mas a prova demonstra isso. Então, a conclusão é a de que a denúncia é incorreta e, por isso, deve ser reprimida, porque não é possível admitir essa conduta do Ministério Público — do Estado que acusa. O Estado tem de ter, no nosso entendimento, sempre e sempre, um comportamento eticamente aceitável. Daí que absolvíamos do porte de arma, já que não constou na acusação formalizada a acusação adequada do ponto de vista legal: majorante do tráfico, com suas elementares.

E, quanto ao entendimento sobre a interpretação do artigo 212 do Código de Processo Penal, na redação da Lei 11.690/2008, desde a sua edição tenho claro o entendimento de que o protagonismo judicial na coleta da prova penal ficou reduzido ao mínimo. Apliquei esse entendimento, desde o início da vigência da Lei, no Juizado Especial Criminal do Foro Regional Tristeza, em Porto Alegre. Participei de debates nesses termos com magistrados em que eu defendi essa concepção. Entretanto, quando fui promovido e integrei a composição da 5ª Câmara Criminal, já havia uma definição jurisprudencial, nos tribunais superiores, de que se tratava de nulidade relativa o fato de o magistrado continuar aplicando o texto legal anterior e que, assim, cabia requerer, tempestivamente na própria audiência, que fosse seguido o artigo 212 e, pior, que fosse alegado prejuízo, não sendo cabível alegar, como prejuízo, a condenação que ocorrera.

Havendo, então, centenas de julgamentos do Superior Tribunal de Justiça e muitos do Supremo Tribunal Federal,  assim como decisões do TJ-RS nesses termos, continuar com a compreensão de que haveria nulidade no fato de o juiz exercer protagonismo na coleta da prova, seria insistência desmedida. Sinalo esses aspectos como relator, por exemplo, na A.C. 70059652966, de abril de 2016. Quanto à compreensão de nulidades relativas e absolutas no processo penal, por igual concordo com o Lenio. Todavia, estou obrigado a adotar o entendimento dos tribunais superiores diante da Súmula Vinculante 10 do STF e do art. 97 da Constituição, ou seja, da chamada “cláusula de reserva de plenário”, pois o artigo 571  e, especialmente, o artigo 572, do Código de Processo Penal, enuncia essa distinção.

Isso como manifestação minha à crítica, severa, recebida. Aliás, certamente serei merecedor de outras críticas. Quanto ao “caso Bolsonaro”, não li a decisão, mas, creio, deve vir junto com a compreensão de que não existem direitos fundamentais ilimitados. E, a imunidade parlamentar, prevista na Constituição Federal, deve ser interpretada nesses termos.

Agradeço ao Lenio pela crítica recebida e continuo a admirá-lo, também por ter sido quem me ensinou hermenêutica. 

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