Observatório Constitucional

Juízes podem contribuir na concretização do direito à educação?

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

25 de junho de 2016, 8h10

I.

No último dia 23 de março, noticiou-se que o juízo da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu medida liminar em ação civil pública movida pela Defensoria Pública para obrigar os entes cariocas estadual e municipal a matricular imediatamente em creche pública as 42.640 crianças que aguardavam vaga em lista de espera, sob pena de multa de R$ 300 por menor desassistido[1]. Mais recentemente, em 12 de maio, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, decidiu pela impossibilidade de invocação da fórmula da reserva do possível para negar o acesso à educação infantil pelo município de Volta Redonda, ordenando a imediata matricula do então recorrente[2].

Tais decisões parecem reconhecer o direito subjetivo de se exigir do Estado matrícula em instituições de educação infantil custeadas pelos cofres públicos. Ocorre que, diferentemente do direito à medicamentos, que pode ser resolvido com a alocação do orçamento para a aquisição desse ou daquele produto, a criação de milhares de vagas na rede pública apresenta outros complicadores, já que requer não apenas recursos financeiros, mas também a contratação de professores, a construção de instalações adequadas, a aquisição de material didático etc. Como consequência, as ordens judiciais coletivas, como a do TJ-RJ, acabam sendo descumpridas, como tem sido noticiado nos jornais, ao passo que as decisões de cunho individual, como a do STF, acabam privilegiando algumas crianças em detrimento de outras que aguardam na lista de espera, já que a decisão não cria novas vagas no ensino público.

Nessa perspectiva, o presente artigo pretende lançar algumas ideias concernentes à concretização do direito à educação. A questão a ser enfrentada é: a par do evidente caráter simbólico de tais decisões, como elas podem efetivamente contribuir para a efetivação desse direito?

II.

É importante ressaltar que não se pretende, nesse artigo, discutir a exigibilidade do direito à educação. Com efeito, se em determinado momento alguns doutrinadores de viés liberal contestavam a exigibilidade dos direitos ditos de segunda geração[3], desde a edição da obra The Cost of Rights: Why Liberty depends on Taxes, de Stephen Holmes e Cass Sunstein, tal discussão parece estar superada.

No afamado estudo, os referidos autores demonstraram não haver diferença ontológica na concretização dos direitos de primeira ou de segunda geração, visto que qualquer desses direitos necessita de custeio público para ser implementado. Assim, o direito à liberdade, por exemplo, típico direito de primeira geração, exige que o Estado invista na criação de políticas de segurança pública, que envolvem custos na estruturação da polícia, do Ministério Público, dos tribunais e dos presídios.

Ou seja, tanto os direitos de primeira geração (como o direito à liberdade) como os de segunda geração (direito à educação, por exemplo), necessariamente demandam investimentos públicos, o que faz ruir a antiga distinção entre direitos que exigem uma abstenção do Estado daqueles que demandam uma prestação positiva. Percebe-se, pois, que a necessidade de previsão orçamentária ou de estabelecimento de política pública específica não pode representar um empecilho para o reconhecimento de um ou de outro tipo de direito.

Tal constatação, contudo, acaba por revelar que, em razão da limitação dos recursos públicos, nem sempre é possível a efetivação completa de determinado direito, seja ele de qualquer espécie. É por esse motivo que a casuística da jurisprudência tem nos mostrado que deve haver parâmetros para se verificar se efetivamente houve negligência ou omissão do Estado em dar efetividade a determinado direito.

Nesse diapasão, o Pretório Excelso, ao tratar de outro direito social, o direito à saúde, fixou, na Suspensão de Tutela Antecipada 175, algumas balizas para verificar se determinado medicamento poderia ser judicialmente exigido. Assim, de acordo com o que restou fixado no precedente, não obstante a Constituição Federal de 1988 preveja, em seu artigo 196, que o direito à saúde deve ser universalmente garantido, o não fornecimento pelo ente público de medicamentos não incluídos nos protocolos do SUS, via de regra, não implica violação ao direito fundamental[4].

Já no que tange à situação do sistema carcerário brasileiro, direito nitidamente vinculado às liberdades de primeira geração, o mesmo Supremo Tribunal Federal reconheceu, na ADPF 347, haver um “estado de coisas inconstitucional”, tendo em vista o quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais causados pela incapacidade reiterada e persistente das autoridade públicas em modificar a conjuntura de violação de direitos fundamentais dentro dos presídios[5].

Não obstante a grave constatação feita pelo tribunal, a única medida concreta que se encontrou para remediar a situação foi obrigar que os juízes implementem audiências de custódia no prazo de 24 horas contadas do momento da prisão em flagrante. Com essa medida, busca-se evitar prisões banais ou não justificadas e, consequentemente, diminuir a população carcerária. Assim, de acordo com o parâmetro constitucional fixado, há violação ao direito de liberdade e da dignidade humana quando não se faz a audiência de custódia no prazo estipulado.

Percebe-se, em ambos os casos, que a perfeita concretização do direito fundamental exigiria elevados gastos para colocar em prática um sistema de saúde/carcerário digno, mas as alternativas possíveis, levando-se em consideração os escassos recursos financeiros e humanos existentes, foram aquelas engendradas nos precedentes mencionados. São decisões que limitam o escopo de normas constitucionais para adequá-las à realidade social concreta.

No caso da educação infantil, a solução não pode ser muito diferente. Apenas para se ter uma ideia da gravidade do quadro fático, confira-se alguns dados do problema no âmbito do Distrito Federal. De acordo com dados da Secretaria de Educação distrital, há, atualmente, mais de 125 mil crianças entre 0 e 3 anos — elegíveis, portanto, para uma vaga em creche pública —, mas estão disponíveis apenas 9.324 vagas em instituições públicas ou conveniadas.

Nesse cenário, torna-se absolutamente impossível o integral atendimento da demanda no Distrito Federal. Obviamente que nem todas as crianças nessa faixa etária dependem do poder público para frequentar creches. Grande parte das famílias escolhe ou cuida pessoalmente da criança nessa fase inicial da vida ou matricula seus filhos em instituições particulares. Mesmo excluindo esses casos, ainda assim estima-se haver uma demanda reprimida de nada menos que 18 mil crianças aguardando vaga no ensino infantil público.

Registre-se que o aumento da oferta de vagas em creches públicas não é uma tarefa fácil. De acordo com os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil do MEC, para o grupo máximo de 15 alunos, são necessários ao menos dois monitores e um professor. Assim, para cada turma pequena de mais 15 quinze alunos, o poder público tem que contratar ao menos mais três profissionais, sem contar os investimentos necessários com a infraestrutura da instituição.

A celebração de novos convênios com instituições particulares também não parece ser uma opção viável a curto prazo. A par dos elevados custos, há inúmeras dificuldades administrativas para a celebração de tais convênios. Com efeito, o convênio é um instrumento legal que o poder público se utiliza para se associar a entidades particulares na execução de políticas pública. Não se trata, contudo, de um mero instrumento de repasse de recursos, visto que o poder público permanece com a responsabilidade de orientar e supervisionar as conveniadas, com cursos de formação continuada e assessoria técnico-pedagógica. A celebração de convênio é custosa e demorada. As instituições conveniadas passam pelo processo de credenciamento, em observância às exigências legais da Lei 8.666/93.

Percebe-se, assim, que, entre a vontade de expandir o número de atendidos no ensino infantil e a concreta efetivação da medida, há um complexo iter a ser observado pela administração pública. Ainda assim, caso o gestor decidisse albergar todas as crianças na faixa etária entre 0 e 5 anos em instituições conveniadas, provavelmente não haveria vagas suficientes na rede privada.

Diante desse quadro, caso o Poder Judiciário adote uma solução jurídica simplista para resolver a infinidade de casos que tratam de vaga em creche e pré-escola — como a de reconhecer que todas as crianças na faixa etária descrita no artigo 208, IV, da Carta Magna, possuem, indistintamente, direito subjetivo ao acesso à educação infantil —, tal medida ignoraria a dura realidade do país, que, além de passar por uma inegável crise financeira, possui graves deficiências sociais, administrativas e econômicas.

Sendo assim, o que se percebe é que o direito ao acesso à educação infantil deve ser considerado dentro da realidade socioeconômica do ente federado. O que deve ser avaliado, portanto, é se a política pública implementada se revela adequada para atender às necessidades daqueles que mais precisam, tendo em vista que o acesso universal ao ensino infantil é uma meta inatingível.

III.

Deixando de lado o modelo ideal de acesso universal ao ensino infantil público, deve-se pensar em como estruturar um modelo de acesso ao sistema que seja constitucionalmente adequado à realidade de cada ente federado, levando-se em consideração as limitações administrativas e financeiras. Ou seja, cumpre ao intérprete definir o patamar mínimo de proteção do direito à educação em razão das dificuldades inerentes à proteção de direitos sociais.

Nesse sentido, são preciosas as lições do constitucionalista norte-americano Mark Tushnet, que, em obra especialmente dedicada ao estudo comparado sobre as intervenções judiciais na concretização de direitos sociais, concluiu que decisões que viabilizam a troca de experiência entre os poderes (denominadas como decisões “fracas”) — como aquelas que indicam planos de atuação para aprimorar o serviço prestado pelo poder público — são muito mais efetivas do que ordens judiciais concretas (“fortes”), como as que mandam fornecer determinado medicamento ou a criar vagas em escolas públicas[6].

Tushnet, portanto, diferentemente de autores céticos quanto à possibilidade de transformação social por decisões judicias[7], acredita que os juízes possam provocar impacto positivo na formulação e implementação de políticas públicas, desde que as decisões sejam pautadas pelo espírito de aprimoramento do sistema, em vez de simplesmente reprimir a atuação dos agentes estatais.

Alguns exemplos de Direito Comparado ajudam-nos a compreender o seu argumento. No caso Brown v. Board of Education of Topeka[8], no qual a Suprema Corte norte-americana pôs fim à política de segregação racial nas escolas públicas, após ordenar que a miscigenação deveria ocorrer com a maior brevidade possível, a corte passou a monitorar as políticas públicas dos estados na implementação da medida. Isso porque tal decisão exigiu uma profunda mudança nas políticas públicas. Cite-se, como exemplo, a necessidade de adaptação do serviço de transporte escolar, que teve que redesenhar e ampliar suas rotas, com incremento de despesas, visto que, a partir da decisão, alunos de bairros negros passariam a frequentar aulas em bairros de brancos, e vice-versa. É corrente na doutrina estadunidense a afirmação de que o êxito do caso Brown se deve em muito à interlocução estabelecida entre as autoridades locais e a Justiça Federal.

Em outro caso emblemático, de 1997, a Suprema Corte da Carolina do Norte afirmou que o Estado tem o dever de prestar serviço de educação pública de qualidade para todas as crianças na primeira idade. A corte, então, após minuciosa instrução do processo, ajustou com as autoridades locais um detalhado plano para expansão e melhoria do ensino local, com a imposição de medidas específicas que deveriam ser observadas pelas autoridades públicas. Ficou fixado, ainda, na referida decisão, que a cada três anos a sorte reabriria o caso para monitorar os progressos alcançados e, eventualmente, sugerir ajustes[9].

De acordo com Tushnet, tais medidas “fracas” — de interlocução entre os poderes — revelaram-se muito mais exitosas do que decisões judiciais ditas “fortes”, como as que ordenam a imediata realocação de recursos públicas para financiar a abertura de novas vagas no ensino público. A partir de uma análise histórica, o autor conclui que as medidas judicias “fortes” revelaram-se inócuas a longo prazo para resolver o problema do direito à educação, enquanto as decisões “fracas” tiveram impacto positivo no desenvolvimento de políticas públicas.

IV.

Não é segredo que os políticos são movidos pelas mais diversas paixões e interesses que, obviamente, podem levar à adoção de políticas públicas que não sejam as mais adequadas, razão pela qual o Poder Judiciário, tendo em vista a sua inerente independência, pode contribuir na avaliação criteriosa sobre a correção das decisões tomadas pelo Estado na concretização do direito fundamental à educação. O monitoramento da adequação das políticas públicas adotadas parece ser a finalidade mais virtuosa da chamada judicialização da política, e não a realização de uma censura atomizada acerca da injustiça do sistema.

Conclui-se, pois, que o mero reconhecimento de um direito subjetivo ao acesso à rede de ensino pública não é o meio mais adequado para ajudar no concretização do direito à educação. Se o Poder Judiciário realmente tem a intenção de produzir alguma melhora na prestação do serviço de educação infantil, não há alternativa senão analisar criteriosamente os parâmetros que embasam determinada política pública, a partir de um efetivo diálogo institucional com o Poder Executivo. Só assim os juízes efetivamente produzirão impacto positivo no direito à educação.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/31102.
[2] Sobre o assunto, confira a matéria vinculada na revista Consultor Jurídicohttp://www.conjur.com.br/2016-mai-16/reserva-possivel-nao-justifica-falta-vaga-creche-publica .
[3] Cf.. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedhogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 412-413.
[4] STA 175 AgR, relator min. Gilmar Mendes.
[5] ADPF 347 MC, relator min. Marco Aurélio.
[6] TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: Judicial Review and Social Welfare Rights in Comparative Constitutional Law. Princeton: Princeton University Press, 2008.
[7] Nesse sentido, confira ROSENBERG, Gerald. The Hollow Hope: Can Courts Bring Social Change? Chicago University Press, 2008.
[8] Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954).
[9] Leandro v. State, 346 N.C. 336 (1997)

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