Diário de Classe

Os limites da interpretação e a democracia

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25 de junho de 2016, 8h00

Spacca
O Diário de Classe hoje pretende abordar uma questão que preocupa cada vez mais a doutrina brasileira. Entro em campo neste espaço para preencher a lacuna deixada pela lesão dos atletas titulares. Entra, pois, o suplente.

Com efeito. Há um debate e um dilema na contemporaneidade. O debate: jurisdição constitucional (decorrente do constitucionalismo) e democracia. Há compatibilidade? Penso que sim. E qual é o dilema? Simples: ele exsurge do fato de que, se há compatibilidade, a jurisdição constitucional não pode se sobrepor à legislação democraticamente votada e que não seja incompatível com a Constituição. Portanto, se a jurisdição “construir” novos textos, não estará fazendo interpretação e tampouco mutação, mas, sim, substituindo-se ao poder constituinte. Logo, a demo-cracia se transformará em jurisdicio-cracia.

Lembro que na coluna O Supremo, o contramajoritarismo e o “Pomo de ouro” falei amiúde a esse respeito. Importamos indevidamente cinco teses (jurisprudência dos valores, teoria da argumentação, ativismo norte-americano, “métodos” de Savigny e o neoconstitucionalismo, problemática que também já analisei aqui). Isso fez com que talvez tenhamos perdido — e somos todos culpados, e não me excluo do conjunto desses enunciados — os limites das relações entre os poderes e as fronteiras hermenêuticas que fazem a diferença (e não cisão) entre texto e norma (lei e sentido da lei, exsurgente da concretude).

Nos dias de hoje, poucos ainda acham que é possível “colar” significante e significado ou “lei e direito” (ou, ainda, texto e norma). Isso seria fazer uma espécie de psicopatia a-hermenêutica. Se isso fosse possível, por exemplo, o prazo de 48 horas para o preparo para o recurso na Lei dos Juizados, caindo no domingo, tornaria deserto o recurso. E uma lei que dissesse que é proibido carregar cães na plataforma, impediria um cego de levar o seu cão-guia (para usar um velho exemplo de Siches). E um menino, comprando um picolé, arrasaria o conceito de contrato, pois não? Afinal, ele não é parte capaz…

Mas — atenção — por outro lado também não se pode “descolar” texto e norma (a não ser no caso de inconstitucionalidade, é claro). “Descolar” texto e norma significa pagar pedágio ao mais simples pragmati(ci)smo. É se render a uma espécie de neossofismo ou neonominalismo. Ativismos e decisionismos dependem, exatamente, do-descolamento-da-norma-do-seu-texto (qualquer dúvida, sugiro a leitura das seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar um texto legal, em Jurisdição e Decisão Jurídica, RT, 2013)[6]. Texto e norma são diferentes. Mas não cindidos. E nem colados.

Ora, se o Direito (ou seja, a norma, que, segundo Müller e Gadamer, é sempre applicatio) é o que o STF diz que é, então ele — o STF — pode desplugar a norma do texto livremente. E pode fazer o texto virar “um nada”. Logo, por exemplo, ele pode dizer que, “onde a CF não fala da possibilidade de o STF examinar inconstitucionalidades via controle concentrado de lei municipal, leia-se que o STF pode examinar” (antes que alguém reclame, não estou me referindo à ADPF). E assim por diante. E o STJ pode “construir”, à vontade, hipóteses de liberação de FGTS. Basta querer… E um Juiz pode estabelecer o número (mínimo e máximo) de folhas que uma petição pode conter. E o STF pode dizer que onde está escrito trânsito em julgado não está escrito trânsito em julgado. E pode o STJ decidir que o CPC não se aplica aos juizados especiais. E, assim, chegamos a outro paradoxo: se tudo pode, nada pode. Se tudo é, nada é!

Por isso, minha insistência contra o uso de argumentos metajurídicos ou coisas desse quilate. Um argumento moral (ou metajurídico) é irmão gêmeo do decisionismo. E da não democracia. É como o pamprincipiologismo. Eu invento um princípio e passo a valer mais do que o parlamento. Simples assim.

E, por favor, entendam-me: isso não é implicância minha. É apenas compromisso com a democracia. Isso não quer dizer que outros, que pensam diferente de mim, não estejam comprometidos com a democracia. Apenas explicito o lugar de minha fala. E a hermenêutica não quer ser a Rússia tomando o território da Crimeia ou da Ucrânia. Hermenêutica, ao contrário de qualquer perspectiva imperialista, de invasão de sentidos, é conservadora. Ou seja, quer, sim, conservar a “ossatura constitucional”. Nela está implícito muito mais que o mero texto, ou seja, nela está a construção social da cidadania e do Estado Democrático. Que não pode depender de alguns. Mesmo que seja um Supremo Tribunal.

Numa palavra
O Supremo Tribunal não dispõe do texto constitucional. O Judiciário não faz lei. A questão, portanto, é saber que tipo de jurisdição constitucional queremos. Uma jurisdição que obedeça a força normativa da Constituição, a coerência e a integridade do direito tem muito mais condições de garantir a democracia do que decisões pragmáticas e a construção de jurisprudência(s) defensiva(s). Se hoje é possível dizer que onde está escrito x leia-se y, o que impede que amanhã se diga que "onde está escrito n, leia p"? Passado um tempo, todas as letras estarão trocadas… Se me entendem a alegoria (ou metáfora). Por isso, sugiro a leitura de Machado de Assis: A Sereníssima República. Ali, há tantos anos, Machado já denunciava o perigo do drible hermenêutico e dos saltos triplos carpados que os tribunais dão na lei e na Constituição. Nosso papel é dizer que isso não pode ser assim. Por isso, este singelo Diário de Classe. Para deleite, eis o resumo do conto que aqui repito, face a minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo): Machado fala do Cônego Vargas que relata sua descoberta: “Aranhas falantes,  que se organizaram politicamente”. Assim: 

O Cônego ofereceu às aranhas um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. Chamou o “país das aranhas” de Sereníssima República. Claro que as aranhas arrumaram modos de driblar as próprias regras do sistema. As aranhas eram versadas no law-system pindoramense. Com efeito, o inusitado ocorreu quando da eleição de um cargo importante para o qual concorreram dois candidatos: “Nebraska contra Caneca”.  Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. As cinco testemunhas juraram que o nome vencedor era mesmo de Nebraska. Mas Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Contratou um grande filólogo, que apresentou a sua tese:

“— em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido.  Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”.  Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Vocês não entenderão. E, aí está a prova: a primeira afirmação mais as silabas “ca” e as duas “Cane”, dá o nome Caneca”.  

Eis o vencedor: Caneca! Bingo! Nebraska virou Caneca. Estava na cara, pois não? E tudo feito de acordo com a lei.

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