Opinião

A problemática disciplina unitária da dissolução de sociedades no CPC

Autor

  • Marcelo Vieira von Adamek

    é professor doutor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. advogado em São Paulo associado do Instituto de Direito Societário Aplicado secretário da Comissão Especial de Direito Societário do Conselho Federal da OAB coordenador da Comissão de Contencioso Societário do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

20 de junho de 2016, 11h17

Diferentemente dos Códigos de Processo Civil de 1939 e de 1973, que silenciaram sobre o tema, o atual Código de Processo Civil de 2015 trouxe, dentre os procedimentos especiais, uma nova disciplina legal específica para a assim denominada “ação de dissolução parcial de sociedade”, em seus artigos 599 e seguintes.

Sob essa designação, porém, o legislador pátrio tratou de duas ações judiciais que, até a entrada em vigor do código atual, sempre foram bem distinguidas pela doutrina e pela jurisprudência, dada a diversidade de seus objetos e, consequentemente, dadas as diferenças das pessoas que delas poderiam se valer, como autoras, e contra as quais deveriam ser propostas, como rés.

No Código de Processo Civil de 2015, porém, passou-se não só a designar, mas também a disciplinar como “ação de dissolução parcial de sociedade” indistintamente tanto a demanda que tem por objeto a extinção, resolução ou dissolução do vínculo contratual que une o sócio à sociedade (isto é, a ação de dissolução parcial em sentido estrito) como a que tem por objeto a definição e a cobrança da sociedade do valor correspondente à participação societária daquele que deixou de ser sócio (isto é, a ação de apuração de haveres).

O resultado dessa mixórdia e da tentativa de sistematização unitária dessas duas ações afigura-se bastante insatisfatório e tende a trazer uma série de delicados problemas de ordem prática, como isso se procurou demonstrar no livro recentemente publicado em conjunto com o professor Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, professor associado e chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP, intitulado “Da ação de dissolução parcial de sociedade: comentários breves ao CPC/2015” (Malheiros Editores, 2016). Dentre os muitos pontos de atenção que a nova disciplina processual suscita, três podem ser aqui destacados.

Em primeiro lugar, o objeto da ação de dissolução parcial não é a mais apenas a dissolução propriamente dita. A assim denominada “ação de dissolução parcial de sociedade”, conforme previsto nos incisos do art. 599 do CPC, pode ter por objeto a só resolução da sociedade, a só apuração de haveres ou ambas as coisas.

Consagrou-se no texto da lei, por esse modo, a possibilidade de ter-se na prática uma ação de dissolução de sociedade que… não é de dissolução, mas de mera condenação (apuração de haveres), uma contradição em termos legalmente positivada.

Para além desse problema da nomenclatura, no entanto, há aqui consequências práticas relevantes. É que, ao segregar a lei as pretensões de resolução e apuração em incisos autônomos, exsurge daí a conclusão de que, na ação de dissolução parcial agora em vigor, a apuração de haveres não é mais consequência lógica e necessária da resolução do vínculo societário, mas uma pretensão autônoma a ser eventualmente cumulada à antecedente de dissolução (e que, portanto, ao deixar de ser expressamente deduzida, não poderá mais ser atendida de ofício).

Desnecessário dizer que, a confirmar-se essa interpretação, um tanto difícil de ser afastada até pela forma como os incisos foram encadeados no art. 509 do código, surgirão na prática situações, no mínimo, iníquas: pense-se na ação de exclusão, por exemplo, na qual os remanescentes e a sociedade não têm nenhum interesse em pedir a apuração dos haveres que esta estará obrigada a pagar, e diante da qual o excluendo será colocado na difícil posição de, ao mesmo tempo em que se opuser ao pedido de exclusão, ainda ter que formular em caráter eventual, através de reconvenção, o pedido de apuração de haveres, para ser acolhido na eventualidade de ser excluído, o que significa dizer então que, qualquer que seja o desfecho do processo, o excluendo decairá de um dos pedidos.

Seja como for, a nova disciplina exige pedido expresso de apuração de haveres, pondo limites à atividade do juiz e aos efeitos da sua decisão. Complicou-se por esse modo o que antes se resolvia de forma mais harmônica, e simples, eis que sob a égide do Código de Processo Civil anterior prevalecia o entendimento de que a apuração de haveres do excluído, em sede de liquidação, não pressupunha pedido da parte, mas era aquilo que parte da doutrina bem designava de “efeito anexo” da sentença que decretava a resolução parcial do vínculo societário, o que era também acatado pelos tribunais (dentre outros, vide: TJ-SP, Ap. 597.668-4/2, 7ª Câm. Dir. Priv., Rel. Des. Sousa Lima, v.u., j. 03.12.2008).

De outro lado, embora o art. 599 do código pareça conceder ao autor ampla faculdade de cumular os pedidos de resolução de vínculo e de apuração, casos haverá em que essa cumulação será necessária ou, mais propriamente, em que o pedido de apuração de haveres não poderá prescindir do pleito antecedente e cumulado de resolução do vínculo societário, sem o qual aquele não poderá ser atendido. Tal sucederá em todos os casos em que a resolução do vínculo societário operar-se por efeito de sentença judicial constitutiva (por exemplo, exclusão judicial, retirada judicial por justa causa e dissolução parcial stricto sensu alternativa à dissolução total).

É que, já aí, a apuração de haveres aparecerá como pedido consequente, que não se viabilizará sem o pedido antecedente necessário de resolução; não haverá faculdade de cumular os pedidos, mas o ônus de o autor obrigatoriamente fazê-lo. Cuida-se, pois, de hipótese de cumulação escalonada ou sucessiva de pedidos. Em casos que tais, se o autor apenas formular o pedido consequente de apuração de haveres, sem pedir a providência antecedente necessária de resolução do vínculo societário, que não se pode ter por implícita naquele, haverá falta de interesse de agir e, pois, carência da ação. Ou seja, a literalidade da lei processual pode conduzir a equívocos na prática do foro.

Em segundo lugar, o legislador aparentemente pretendeu instituir um problemático litisconsórcio passivo necessário entre sócios e sociedade na ação de dissolução parcial, qualquer que seja o seu objeto, dispondo no art. 601 que uns e outra deverão ser citados para a causa. O criticável pragmatismo do legislador, neste particular, é evidente: diante das discussões que existiam sob o império do código anterior na doutrina e na jurisprudência a propósito da legitimação passiva para cada uma daquelas demandas, de dissolução e de apuração de haveres (problema esse que diz respeito à vinculação das regras processuais à relação jurídica material subjacente), o legislador de 2015 resolveu genericamente prever, de maneira um tanto quanto simplista, que sempre devam então elas ser propostas contra a sociedade e todos os sócios.

Criou-se assim resposta simples para problema complexo; forjou-se, pois, a resposta errada. Isto porque, se o litisconsórcio necessário entre sociedade e sócios até podia ser aceito para os casos de dissolução stricto sensu (como propugnava certa jurisprudência, notadamente porque entre nós não foi adotada outra possível solução em torno desse problema, que seria a cientificação dos interessados para, desejando, intervirem na causa e, em qualquer caso, ficarem sujeitos aos efeito da decisão tomada na causa da qual se lhes deu conhecimento), ao argumento então de que todos estes sujeitos terão a sua esfera jurídica atingida pela eficácia dissolutória do vínculo contratual (art. 114), essa mesma resposta e a sua correspondente justificação teórica não valem para a apuração de haveres em sociedades personificadas, eis que nesta última situação devedora dos haveres será, sempre e sempre, a sociedade; mesmo em sociedades de responsabilidade ilimitada, os sócios não são os devedores dos haveres e, portanto, não deveriam ser convocados para compor o polo passivo.

A solução unitária adotada pelo Código de Processo Civil de 2015, por isso, traz o imenso ônus de transformar faticamente a simples detenção de uma participação societária em sementeira de ações – o sócio, só porque sócio é e nada mais, acabará sendo guindado a juízo e sofrendo todas as restrições e dificuldades daí inerentes, só por ser sócio! E isso ainda quando porventura tenha ficado vencido, por exemplo, em alguma deliberação de exclusão de outro membro – não importa, ainda neste caso terá que figurar no polo passivo ou ativo da ação só para integrar a relação processual, apesar de não se ter deduzido contra ele nenhuma pretensão; ainda quando contra ele, sócio, nada se tenha pedido.

A ilogicidade da situação fala de per si. Resta saber se os tribunais farão as devidas diferenciações, para permitir que na apuração de haveres apenas a sociedade personificada figure no polo passivo, deixando de decretar a nulidade do processo por falta de citação de algum sócio, ou, o que seria ainda pior e o risco agora está concretamente colocado, se expandirá essa criticável solução legal para outras demandas societárias, como a de invalidação de deliberações assembleares, para as quais aquela mesma justificação apresentada para má solução legislativa também se aplica, talvez em grau ainda maior. Eis aqui mais um resultado indesejado da nova disciplina unitária.

Vale ainda mencionar que, no mesmo art. 601, o legislador dispôs, em seu parágrafo único, que “a sociedade não será citada se todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada”. Na realidade, porém, ao contrário do que a literalidade da regra pode sugerir, a sociedade deverá, sim, sempre ser citada: esta é a regra a ser observada, conforme consta da cabeça do mesmo artigo. Se, no entanto, deixar de sê-lo, não se decretará a nulidade do processo e a sociedade, porque indiretamente representada na relação processual por todos os demais sócios, estará sujeita aos termos do processo e à coisa julgada nele formada.

Assim, será grave erro ler o artigo a partir da regra do seu parágrafo único, imaginando que a sociedade não mais precise ser citada. O par. ún. do art. 601 do CPC veicula, em realidade, de maneira imperfeita e contraditória, mera regra de sanação que, na prática, já vinha sendo adotada pelos tribunais (cf.: STJ, REsp 153.515-RJ, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 17.04.1999, DJ 17.04.2000; e STJ, REsp 788.886-SP, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 15.12.2009, DJe 18.12.2009). O par. ún. do art. 601 do CPC, portanto, trata apenas de regra de sanação de nulidade, que melhor teria sido expressa com a seguinte redação: “Não se decretará a nulidade do processo e a sociedade ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada, se todos os sócios tiverem sido citados para a causa”.

Em terceiro lugar, o novo código não disciplinou mais a ação de dissolução total de sociedade. O código atual revogou o de 1973 e, consequentemente, também as regras do código de 1939 sobre dissolução total de sociedades (arts. 655 a 674) que ainda estavam em vigor (CPC/1973, art. 1.218, VII). No seu lugar, porém, não trouxe em substituição novas regras, por esse modo submetendo doravante a dissolução total ao procedimento comum (CPC/2015, art. 1.046, § 3º).

Ocorre que, dadas as atividades desenvolvidas no processo pelo liquidante (as quais não se confundem com as de uma simples liquidação da sentença ou de mero acertamento do quantum debeatur, na exata medida em que envolvem atos jurídicos e materiais diversos tendentes à realização do ativo social, pagamento do passivo e partilha do saldo entre os sócios, com a prestação final de contas), era recomendável que houvesse regras específicas para tratar da matéria. Era importante, pois, que se mantivessem regras disciplinadoras de um procedimento especial para a dissolução total de sociedades, na sua etapa de liquidação. Não foi o que o legislador fez. E, com isso, está-se agora diante de uma situação de lacuna na lei, a clamar pelo recurso às fontes secundárias de auto-integração do sistema jurídico.

Para tal fim, uma primeira ideia poderia ser a de aplicar “analogicamente” as regras do revogado CPC/1939, por esse modo repristinando o seu espírito, mas contra essa solução força reconhecer que se trata de analogia bastante alargada, ou abusada. Outra via seria aplicar analogicamente as regras sobre liquidação extrajudicial de instituição financeira ou da falência, mas, como estes são procedimentos concursais coletivos de caráter liquidatório, parece também não ser a melhor solução. Uma outra alternativa ainda possível é a aplicação das regras do Código Civil atinentes à liquidação convencional de sociedades (CC, arts. 1.102 e a 1.112) no âmbito do processo judicial de dissolução total e liquidação de sociedades, atribuindo-se ao liquidante judicial, escolhido pelo juiz ou indicado pelas partes, as funções que a lei civil imputa ao liquidante convencional.

Ou seja, na primeira fase a demanda seguirá o rito comum; na fase de liquidação, não haverá propriamente atividade de liquidação da sentença (definição de quantum debeatur), mas, sim, a designação de liquidante encarregado da prática dos atos materiais e jurídicos previstos na lei civil. Também essa, reconhece-se, não é solução indene a críticas, dado que o liquidante judicial é, antes de tudo, auxiliar do juízo, sujeito a regime próprio de responsabilidades no exercício do múnus. Ainda assim, é caminho a trilhar. Em todo caso, lamenta-se que no afã de inovar, o legislador de 2015 tenha esquecido de disciplinar aquilo que realmente clamava por regras próprias.

Para além dos três pontos aqui enfocados, a verdade é que a nova disciplina processual é prenhe de problemas e muito mais se poderia discorrer, por exemplo, sobre (i) a regra que, a pretexto de disciplinar a legitimação ativa para a ação (art. 600), alterou de forma desordenada o próprio direito material subjacente e, consequentemente, revogou regras do Código Civil; (ii) fixou critério supletivo de apuração de haveres, aplicável na falta de uma disciplina diversa no contrato social, de difícil manejo prático, por exigir a avaliação segregada de ativos e passivos, tangíveis e intangíves, “a preço de saída”, seja lá o que essa expressão signifique (art. 606); (iii) afastou o capítulo da decisão judicial que fixa o critério de apuração de haveres da eficácia preclusiva da coisa julgada material, permitindo a sua ulterior revisão pelo juiz, a qualquer momento antes de iniciada a perícia (art. 607); e (iv) aparentemente pretendeu atribuir aos sócios o dever de efetuar  o pagamento dos valores dos haveres incontroversos (art. 604, § 1°), muito embora ditos valores em sociedades personificadas sejam devidos apenas por estas, e não pelos sócios.

Muito mais aqui se poderia dizer, mas crê-se que dos exemplos aqui dados já se tenha conseguido demonstrar o quão problemática tende a doravante ser a dissolução parcial de sociedade no foro.

A verdade é que, tanto por aquilo que não disciplinou, e deveria, como por aquilo que mal disciplinou de maneira unitária, o Código de Processo Civil de 2015 neste particular não representou um expressivo avanço para o direito processual societário e, cedo ou tarde, a sua disciplina terá que ser revista, a bem da segurança e certeza na aplicação do direito. Até lá, os profissionais terão que ter muita cautela, e perseverança.

Espera-se ao menos que, no entretempo, a jurisprudência, cujo papel no passado foi dos mais expressivo para a consolidação das bases dogmáticas da ação de dissolução parcial e da ação de apuração de haveres, cumpra novamente o mesmo papel. Trabalho não faltará.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP; advogado, parecerista e árbitro; professor do Insper, junto ao qual é responsável pelos módulos de Sociedades Limitadas e Contencioso Societário.

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