Presunção de inocência

Esperar trânsito em julgado para prender levou a protelação e impunidade

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20 de junho de 2016, 15h23

O paraíso recursal da protelação e impunidade criminal ameaça voltar. Poderosas forças, radicalizando conceitos e princípios, lutam desesperadamente para desfazer a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, votada em 17 de fevereiro passado, que autorizou a prisão de condenados judicialmente, após confirmação da sentença condenatória por colegiado do tribunal de apelação, decisão que recebeu amplo apoio popular e forte aprovação da magistratura, Ministério Público e mídia independente. O tema está novamente na pauta do Supremo.

Para qualquer debate sobre este assunto é importante inicialmente deixar claros pontos fundamentais: não está escrito na Constituição que ninguém será preso até o trânsito em julgado da sentença condenatória.  Também não está escrito na Constituição que o Brasil adotou o princípio da inocência e, menos ainda, que este princípio deveria ser aplicado radicalmente, sem consideração dos demais princípios, normas constitucionais, institutos, experiência mundial e razões de ordem prática.

Tudo começou com uma singela oração posta na Constituição de 1988, assim redundante: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”  Culpado é uma classificação que, assim, para ser válida e histórica, como o "rol dos culpados", deve ser definitiva. A regra é óbvia: se o processo ainda pode ser reanalisado em instância superior, não há culpado definitivo. A formulação indica que é daquelas regras de fácil aprovação em assembleias. Certamente não passaria na Assembleia Constituinte uma ordem certa, como "ninguém será preso até o trânsito em julgado da sentença condenatória".

A singela obviedade permitiu a criação do chamado princípio da inocência e fortalecimento das teses garantistas; mudou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2009 (e legislação ordinária posterior), determinando a prisão condenatória somente após o trânsito em julgado da sentença, depois de percorrer até quatro instâncias de julgamento (local, regional, STJ e STF), dezenas de recursos intermediários, habeas corpus, mandados de segurança e muitos anos de processos.

O espetacular alargamento do espaço recursal aumentou consideravelmente o número de recursos protelatórios; ampliou assustadoramente o número de presos provisórios (pois passou a ser considerada prisão definitiva somente após decisão final da última instância); permitiu que poderosos réus permanecessem por décadas aguardando o fim das várias esferas de recursos; aumentou a incidência de prescrição (pelo passar da idade e pela demora até o último julgamento); e colocou o Brasil na condição de campeão de bondade no requisito de recursos protelatórios, fortalecendo o sentimento de ineficiência judicial, desequilíbrio social e injustiça.

A questão central no presente debate é a prisão. É necessário, portanto, começar a investigação pela matriz constitucional desse instituto. A restrição à liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e LXVII) do artigo 5º. A Constituição constrói e restringe o direito estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição delimita completamente os fundamentos e requisitos da prisão sem qualquer menção de culpa ou culpado nos mencionados incisos.

A Constituição exige o devido processo legal para privar a liberdade dos cidadãos (artigo 5º, inciso LIV). O devido processo legal é concluído na primeira instância com a sentença (que pode ser definitiva, se não houver recurso) e revisado na segunda instância por um colegiado de juízes. No inciso LXI, a Constituição autoriza a prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, requisito atendido na primeira instância com a sentença e confirmado com o julgamento na segunda instância pelo tribunal.

O instituto da prisão está construído e incisivamente delimitado na Constituição (devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente), sem qualquer exigência de culpa definitiva ou de trânsito em julgado final. Se o consenso dominante na Constituinte fosse impedir prisão antes do trânsito em julgado, a Constituição, que tanto fez uso do termo prisão, não seria grafada, nesse ponto tão importante, com palavra e conceito diferente (culpado).  Não houve opção deliberada do Constituinte em exigir trânsito julgado na última instância para início do cumprimento da pena.

O próprio nome, princípio da inocência, que muito alimenta a polêmica, contém uma impropriedade. A regra constitucional não tem a palavra "inocente". Ocorre um salto de não culpado para inocente. Mais apropriado seria "princípio da não-culpabilidade". Parece pouco, mas não é. Choca ouvir que um inocente está preso. Diferente se for dito que está preso um condenado em dois julgamentos, mas ainda não culpado definitivamente, ante a possibilidade de recursos.

Com esse desacordo conceitual e lógico, não é razoável submeter toda a clara regulação do instituto da prisão a uma regra tautológica, que trata de outra categoria (culpado), exigindo uma interpretação exageradamente ampliativa. A exigência de trânsito em julgado para prisão é uma ilação, a partir de uma regra com redação desconectada do instituto que se pretende influir (prisão) e gera caricatural descompasso com o direito penal aplicado nas democracias avançadas (EUA, Reino Unido, Canadá, Espanha, Portugal, Argentina e outras), onde a prisão pode começar até mesmo na primeira instância.

Aplicação de princípio da inocência absoluto, por interpretação extensiva, felizmente superada pela histórica decisão do Supremo, leva ao desequilíbrio social.  Imagine-se, a título de argumento, que a República tivesse mais dois tribunais na sua constituição, o Tribunal Final e o Tribunal Definitivo, somente como respeitosos exemplos. O processo penal não terminaria em quatro gerações. Não haveria presos definitivos. O sistema judicial, além dos inafastáveis anseios humanísticos, deve considerar a experiência histórica, razões de ordem prática e funcionalidade equilibrada do sistema penal.

Países civilizados adotam o princípio da inocência até o chamado "dia de corte", onde o cidadão tem o direito a ser julgado por um tribunal isento. Após, recorre na prisão. O Brasil, após lento aprendizado com o princípio da inocência absoluta, com julgamentos em até quatro instâncias e dezenas de recursos, voltou ao razoável. A insistência para o antigo sistema, com muita impunidade para os réus ricos, que são assistidos por renomados profissionais e prisão provisória para os réus pobres, que não conseguem defesa completa e estruturada, é uma maldade com denso déficit  de inocência.

O princípio da inocência já teve ligação com uma passagem espúria na nossa história, quando a ditadura militar fez passar no Congresso a famigerada Lei Fleury (Lei 5.941/73), que permitia aos réus primários e de bons antecedentes responder processo criminal em liberdade, lei especialmente encomendada para favorecer famoso agente da ditadura. É de se perguntar se este interessante movimento de revisão da nova Jurisprudência do Supremo não tem a ver com a eficiência da Operação Lava Jato, com várias condenações de poderosos já confirmadas em segundo grau.

O voto condutor do novo precedente da Suprema Corte justificou, entre outros motivos, que os julgamentos das provas, análise dos fatos e culpabilidade são feitos na primeira e segunda instâncias, restando ao STJ e Supremo apenas conformações gerais de ordem normativa e técnica.  A detalhada análise dos julgamentos criminais destas respeitáveis Cortes confirma a sustentabilidade do argumento e ausência de justificativa para aguardar décadas para inicio do aprisionamento.

Surgiram alegações de que o STJ "aceita" até 36% dos recursos penais. Aceitação de recurso para julgamento não significa absolvição no mérito. As estatísticas publicadas indicam que os casos de absolvição no mérito são ínfimos, próximos de zero, especialmente se descontados os casos de prescrição decorrente da demora de julgamento nos tribunais superiores, não podendo ser fundamento razoável para um interminável sistema judicial que favorece réus ricos. Eventual redução de poucos meses, em penas de vários anos ou décadas, em alguns casos, não serve como motivo justificante para impedir a prisão a partir da segunda instância, ante o amplo espaço para acerto quantitativo.

Também se tem argumentado sobre um prejuízo irreparável para os aprisionados e posteriormente absolvidos nos tribunais superiores. A própria Constituição, reconhecendo expressamente a possibilidade de erros judiciais e prisões além do tempo, apresenta solução, novamente no contexto do instituto da prisão, determinando o pagamento de indenização (artigo 5º LXXV), a solução possível e eleita pela Constituição.

O direito de defesa do acusado é tão amplo no direito penal que vai além do trânsito em julgado da sentença condenatória, pois permite revisões criminais e habeas corpus a qualquer tempo. Em outras palavras, é possível até mesmo a superação da culpa definitiva. O sistema penal não tem segurança jurídica absoluta e definitividade de culpa, quando para favorecer o acusado, resultando a necessidade de soluções intermediárias, inclusive prisão, sob pena do direito não ter qualquer efetividade.

A Constituição não diz que o acusado poderá ser preso após o julgamento da segunda instância, mas também não diz que somente pode ser preso após o trânsito em julgado na última instância. Assim, é razoável defender com boa-fé a manutenção da histórica decisão da Suprema Corte, votada em 17 de fevereiro passado, que buscou o salutar meio termo, acompanhando a maioria das nações civilizadas, permitindo a prisão do acusado já condenado em duas instâncias, que tem apenas remotíssima possibilidade de mudar o veredicto quanto ao mérito. Não existe justiça meramente ideal, apartada da realidade.

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