Opinião

A falência transnacional no Projeto do Código Comercial

Autores

  • Sérgio Campinho

    é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

  • Márcio Souza Guimarães

    é professor doutor visitante da Université Paris-Panthéon-Assas doutor pela Université Toulouse Capitole professor da Universidade de Saint Gallen (Suíça) acadêmico fundador da Academia Brasileira de Direito Civil e ex-membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

  • Paulo Penalva Santos

    é professor da especialização da Escola de Direito RIO da FGV procurador do Estado aposentado. Advogado. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

17 de junho de 2016, 12h05

O Projeto de Lei que institui o Código Comercial da Câmara dos Deputados (PL 1.572/11), depois de cinco anos de tramitação, com debates envolvendo diversos setores da economia, seminários e núcleos de discussões, é um instrumento que põe o Brasil na vanguarda da legislação comercial internacional, com normas claras e precisas sobre a atuação empresarial, incorporando boas regras jurídicas experimentadas no cenário mundial, como a falência transnacional, já bem consolidada no direito norte americano e cada vez mais estruturada na União Europeia.

O desafio global para as empresas que atuam em mais de um país é cada vez mais marcante, devendo se amoldar às diversas legislações, costumes e procedimentos de cada Estado. O Brasil avançou significativamente nesse sentido, ao adotar a regra de Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), em 2014. Trata-se de lei modelo da United Nations Commission on International Trade Law (Uncitral), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), que congrega diversos países com o fim precípuo de criação de um ambiente de relações comerciais internacionais seguro, fundado na concorrência, liberdade de mercado para modernização e harmonização das regras de comércio internacional. Desde 1997, a Uncitral editou uma outra lei modelo, destinada ao tratamento da crise da empresa transnacional (cross-border insolvency), com a finalidade de que os Estados em que se situar a empresa transnacional possam estabelecer: a) cooperação entre as cortes e autoridades competentes dos países envolvidos; b) previsibilidade jurídica para as negociações e investimentos; c) razoável e eficiente administração judicial da insolvência transnacional, protegendo os interesses de todos os credores e terceiros interessados, incluindo-se o devedor; d) proteção e maximização do ativo do devedor e e) facilitação da recuperação ou financiamento de empresas em dificuldades, protegendo o investimento e preservando o emprego.

A crise da empresa, denominada pelos franceses de droit des entreprises en diffculté, é um capítulo da história de praticamente todos os empresários e sociedades empresárias, como afirma Elizabeth Warren [1]: todo empresário e sociedade empresária conhecerá momentos de dificuldades, diferenciando-os aqueles que conseguirão superá-las e os outros que ficarão pelo caminho. A empresa, em seu conceito técnico de atividade econômica organizada para a distribuição e circulação de bens e serviços, tem importante papel na economia e desenvolvimento de uma comunidade, município, estado, país ou mesmo da economia global. O desafio da falência transnacional é o de que apesar da empresa ser transnacional (presente em vários países), as entidades jurídicas (sociedades) são nacionais, devendo respeitar a legislação de insolvência do Estado em que está situada[2]. Nesse contexto, com o intuito de harmonizar as diversas legislações de cada país, respeitando a soberania (jurisdição) de cada Estado, a lei modelo de insolvência transnacional (cross-border insolvency) da Uncitral foi elaborada. Os Estados Unidos a incorporaram em seu ordenamento jurídico, em 2005, no capítulo 15 do Código de Insolvência Americano (US Bankruptcy Code), positivando, em verdade, prática já adotada pelos tribunais americanos, desde 1993, no conhecido caso Maxwell[3], em que os ativos da companhia estavam situados em território americano e a sede social em Londres, dando azo à elaboração de um protocolo para liquidação e pagamento de três principais credores — bancos britânicos. A base do protocolo entre os países, na pessoa do Estado-Juiz, deve se basear nos princípios da cooperação, maximização dos ativos e celeridade no tratamento das questões, dispensando-se cartas rogatórias e traduções juramentadas, sendo admissível a comunicação até mesmo pela via eletrônica, desde que assim convencionado pelos juízes e administradores judiciais envolvidos. O referido capítulo 15 já foi testado por diversas vezes e parece alcançar o objetivo da lei, como se verifica no recente caso do banco Lehman Brothers, envolvendo aproximadamente 35 processos em 12 países, todos regidos e coordenados pelo protocolo firmado (insolvency protocol).

No mesmo sentido, a União Europeia (EU), por meio do Regulamento 1.346/00, deu início à adoção da insolvência tansnacional (faillite transfrontalière), reconhecendo que cada Estado membro possui uma legislação própria sobre a matéria, bem como jurisdição para decidir sobre os bens e sociedades que se encontram em seu território, adotando a teoria territorialista, contrapondo a teoria universalista, onde um juízo seria o competente para decidir sobre todas as demandas referentes à empresa em dificuldades, onde quer que se situe no mundo[4]. A lei modelo da Uncitral serviu de inspiração à regra europeia, dispondo que o juízo principal (main proceeding) será o do local em em que for identificado o principal estabelecimento (Center of Main Interests – Comi), prevendo a elaboração de um protocolo com os demais juízos em que a empresa estiver presente (non-main proceeding), por meio da comunicação entre as cortes, na forma estabelecida no protocolo de insolvência, sob à égide do denominado Court to Court Cooperation (CCC), fundadada no princípio da cortesia internacional (princípio da courtoisie ou comity).

Tanto no sistema europeu, como no norte americano, respeita-se a jurisdição (soberania) de cada país em que a empresa transnacional está situada. Decreta-se a falência ou concede-se a recuperação judicial em cada país, com a elaboração de um protocolo de cooperação entre os Estados. O caso Eurotunnel lidou com 17 sociedades em recuperação judicial, sediadas na Inglaterra e França, fixando-se o juízo competente o Tribunal do Comércio de Paris, onde identificado o Comi, mesmo verificado que o registro da sede social tinha lugar em Londres. O protocolo de insolvência foi elaborado para que as decisões francesas fossem cumpridas na Inglaterra, bem como a troca de informações se desse da maneira mais eficaz.

Mesmo diante de tanta diversidade, a tendência de que cada país integrante da EU tenha a sua legislação própria, inclusive comercial, é uma realidade, já restando comprovado ser impossível haver uma uniformização apta a criar uma “legislação europeia”. Mais recentemente, novo regulamento de insolvência europeia foi editado em 2015, com vigência prevista para 2017 (Regulamento 848/15), chancelando tal diretriz, mantendo o juízo principal e os demais juízos secundários, corrigindo e precisando, com maior clareza, alguns institutos, como o local do principal estabelecimento (Comi), afastando a pratica nefasta do fórum shopping, em que dava azo à possibilidade do devedor escolher o país que ostentasse a legislação mais favorável ao tratamento da dificuldade enfrentada[5]. Tal prática viola o preceito mundial do juiz natural (due process of law)[6], recentemente posto em evidência no caso Van Gasenvinkel (2015), empresa situada na Holanda, Bélgica e Luxemburgo, ao recorrer ao tribunal inglês para reorganização de seus débitos (scheme of arrangement), por se tratar de um mecanismo simples e eficaz de reestruturação, sem ostentar qualquer estabelecimento ou bens em território inglês, sob a alegação de que havia credores no Reino Unido. O pleito foi admitido pelo Tribunal Inglês sob o fundamento de que alguns credores estavam sediados em seu território[7], o que, a todo evidente, não pode ser admitido.

O Brasil está muito atrasado em relação ao direito das empresas transnacionais em dificuldades. Nosso país, embora seja uma economia expressiva no comércio internacional e nele estejam estabelecidas diversas “subsidiárias” de multinacionais estrangeiras, não apresenta uma estrutura jurídica capaz de lidar de forma adequada com os aspectos transfronteiriços da insolvência empresarial. Paulo Campana Filho[8] assinala, de maneira categórica, que as normas brasileiras destinadas à recuperação das empresas endividadas parecem talhadas para abranger as sociedades nacionais, ignorando que elas possam ter relações econômicas e societárias com outras entidades estabelecidas no estrangeiro.

Uma sociedade estrangeira ou brasileira delibera sobre a expansão da empresa (atividade) além da fronteira levando em consideração vários aspectos referentes ao negócio, e um deles, de grande relevância, é o ordenamento jurídico em que estará inserida. A insolvência não é algo que seja pretendido, tampouco buscado, mas é um real e concreto risco, cujos fatores ultrapassam em muito a capacidade de gestão e previsibilidade de todos os profissionais financeiros e econômicos envolvidos na operação. Assim sendo, é de grande relevância a previsibilidade legal sobre o tratamento da crise da empresa em cada país, sobretudo a adoção da lei modelo da Uncitral. O relatório do doing business do Banco Mundial, de 2015, aponta o Brasil em 55º lugar no item “eficiência da insolvência” (resolving insolvency), dentre os 189 países avaliados, indicando o necessário aperfeiçoamento legislativo.

O projeto do Código Comercial posiciona o Brasil na vanguarda mundial, ao legislar, na parte geral do Projeto de Código Comercial, sobre os princípios aplicáveis à falência transnacional, no § 5º, do artigo 9º, restando clarificado que: os juízos brasileiros devem cooperar diretamente com os juízos falimentares estrangeiros, na forma deste Código e da lei, quando a crise da empresa tiver repercussão transnacional, com vistas aos seguintes objetivos: I – aumentar a segurança jurídica na exploração de empresas e na realização de investimentos no Brasil; II – eficiência na tramitação dos processos de falência e recuperação judicial transnacionais; III – justa proteção dos direitos dos credores e do devedor; IV – maximização do valor dos bens do devedor; e V – facilitação da recuperação da empresa em crise. Adiante, ao inserir o capítulo VII-A, à Lei 11.101/05, dispondo sobre a falência transnacional, incorpora ao ordenamento jurídico brasileiro a lei modelo da Uncitral, disciplinando a cooperação entre o juízo brasileiro e os estrangeiros (artigo 188-A), sem a necessidade de carta rogatória (artigo 188-G) ou tradução juramentada (artigo 188-C, §1º), respeitado o princípio da ordem pública (artigo 188-I), com a previsão de que haverá um juízo principal (main proceeding) e um subsidiário (non-main proceeding) (artigo 188-N, I), respeitando a jurisdição (soberania) de cada país, exatamente nos termos das legislações mundiais mais avançadas sobre o tema.

Bob Wessels[9], um dos maiores estudiosos da cross-border insolvency, já chegou a assinalar que a ocorrência de casos de falência transnacional comparava-se a pássaros raros que passam pelas cortes algumas vezes durante uma geração. Essa não é mais a realidade da falência transnacional, que adquire uma importância crescente em nosso direito pátrio, já presente nos tribunais brasileiros processos dessa natureza, com decisões que ainda tergiversam sobre qual legislação deve ser aplicada, bem como sobre a legitimidade ativa de uma sociedade estrangeira para ingressar com um pedido de recuperação judicial no Brasil, traduzindo insegurança jurídica aos empresários que pretendem expandir seus negócios para além dos limites do seu território. O texto do projeto do Código Comercial, como todo projeto de lei, em que o debate para o aperfeiçoamento é intenso e muito salutar, traduz algumas divergências quanto ao conteúdo, mas o relevante e pioneiro é que preenche efetiva lacuna do direito brasileiro sobre a insolvência transnacional, imprimindo segurança jurídica e celeridade processual, afastando a burocracia e a imprevisibilidade na interpretação da matéria.


1 WARREN, Elizabeth. Chapter 11: Reorganizing American Business. NY: Aspen Publishers, 2008, p.1.

2 SOUZA GUIMARÃES, Márcio. Direito Transnacional das Empresas em Dificuldades in Tratado de Direito Comercial (ULHOA, Fábio, coord.). Saraiva, 2015, pp. 37-69

3 WESTBROOK, Jay Lawrence. The Lessons of Maxwell Communications 64 FORDHAML. REV.2531 (1996).

4 Um dos maiores defensores da teoria universalista reconhece que é praticamente impossível a sua consolidação. TUNG, Frederick. Is International Bankruptcy Possible? Michigan Journal of International Law, vol. 23:1, pp. 2-70.

5 DAMMANN, Reinhard, MENJUCQ , Michel e ROUSSEL GALLE, Philippe. Le nouveau règlement européen sur les procédures d'insolvabilité. Rev. Proc. Coll. n. 1, Janv. 2015, étude 2.

6 WESTBROOK, Jay Lawrence. Theory and Pragmatism in Global Insolvencies: Choice Of Law. American Bankruptcy Law Journal, nº 65, pp. 457-490.

7 England and Wales High Court (Chancery Division)Neutral Citation Number: [2015] EWHC 2151 (Ch), 22 de julho de 2015.

8 CAMPANA FILHO, Paulo Fernando. A recuperação judicial de grupos societários multinacionais: contribuições para o desenvolvimento de um sistema jurídico brasileiro a partir do direito comparado. Tese de Doutorado, apresentada na Universidade de São Paulo – Faculdade de Direito (2003).

9 WESSELS, Bob. Themes of the Future: rescue businesses and cross-border cooperation. Artigo apresentado no Congresso anual da INSOL na Europa, Paris, 27 de setembro de 2013.

Autores

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    é sócio do escritório Campinho Advogados e professor de Direito Comercial da UERJ.

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    é professor da Escola de Direito RIO da FGV, doutor pela Université Toulouse 1 Capitole, professor visitante da Harvard Law School, Max Schmidheiny Foundation Guest Professor at the Institute for Public Finance, Tax Law and Law & Economics at Saint Gallen University, acadêmico da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro.

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    é professor da especialização da Escola de Direito RIO da FGV, procurador do Estado aposentado. Advogado. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

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