Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 47)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de junho de 2016, 16h30

Spacca
1. Introdução
A importância do Direito e das profissões jurídicas, por decorrência, tem aumentado sensivelmente nos últimos anos. As razões, como já assinalado na última coluna, ligam-se à evolução do Estado de Direito, ao aumento de suas interações comerciais com o estrangeiro e com um certo pragmatismo típico do regime comunista chinês. Prova disso é que, em 2013, havia 230 mil advogados na China, em contraste com os 2 mil existentes em 1983[1].

Nesta coluna, estar-se-ão as profissões jurídicas na China, as quais, como também já salientado, têm se transformado celeremente ao mesmo tempo em que a percepção social do Direito é alterada.   

2. A advocacia chinesa: queda e ascensão
O regime comunista chinês, ao menos na Era Mao, não apreciava os advogados. Exemplo disso está no fato de que, só com a Constituição de 1954, esses profissionais foram admitidos no ordenamento jurídico de modo oficial. Na década de 1950, os “primeiros” advogados admitidos pelo regime eram oriundos de faculdades de Direito da antiga União Soviética. Em nova campanha de perseguição contra os supostos inimigos da ideologia maoista, mais de 2 mil advogados foram incluídos no rol de personalidades suspeitas. Com a Revolução Cultural (1966-1976), os cursos jurídicos chineses foram encerrados, e os escritórios de advocacia, virtualmente extintos[2].

Desaparecido Mao Tsé-Tung, e inaugurada a era de abertura econômica com Deng Xiaoping, a partir de 1976, houve um “renascimento” das codificações chinesas, a começar pelo Código de Processo Penal e, em 1982, com a nova constituição do país, que reconhecia o direito à defesa. Na década de 1980, foram reabertas as faculdades de Direito e criada a Associação de todos os Advogados da China. No entanto, esse período histórico foi marcado pela caracterização dos advogados como profissionais a serviço do Estado, ainda que atuassem de modo autônomo[3].

Os anos 1990 foram de abertura econômica, o que também implicou a liberalização do mercado advocatício chinês, com a abertura de firmas privadas no país. Em 1996, aprovou-se um Estatuto da Advocacia. Uma das principais mudanças advindas dessa lei está na substituição do conceito de advogado como um agente do Estado pelo de um profissional a serviço dos clientes. Outra inovação reside no exame nacional, de caráter ânuo, para admissão no quadro de advogados[4].

O exame nacional para qualificação do bacharel como advogado, desde 2002, realiza-se em uma base unificada. Não há um organismo como a Ordem dos Advogados do Brasil, com poder de certificação profissional. Esse poder é ainda exercitado pelo governo chinês. Detalhe importante: ser advogado não pressupõe o bacharelado em Direito. Qualquer graduado, independentemente do curso, pode requerer essa qualificação[5]. O número de aprovados no exame, contudo, é baixíssimo. Apenas 7% dos candidatos anuais conseguem a aprovação. É necessário ainda ter um ano de experiência em uma firma de advocacia.

Embora não exista algo como a OAB, a Associação de todos os Advogados da China exerce funções de controle disciplinar e de representação da classe. Diferentemente do Brasil, essa associação não goza de autonomia em relação aos órgãos estatais[6].

O número de advogados na China passou de 153.846, no ano de 2005, para 271.452 mil em 2014[7]. Desse total, há 110 mil advogados filiados à Associação de todos os Advogados da China.

Ao passo em que a advocacia privada floresce na China, os advogados criminais padecem com um sistema processual penal extremamente restritivo aos direitos de investigados e acusados. Há dificuldades em relação ao acesso às provas, ao contato com os clientes presos e à assimetria de poderes (e de legitimidade social) com os órgãos do Ministério Público. Um “bom” advogado criminalista é aquele que possui “boas” conexões com autoridades da polícia judiciária ou do Ministério Público[8].

3. A magistratura do povo 
O Poder Judiciário chinês tem como órgão superior o Supremo Tribunal do Povo, formado por 340 magistrados, com jurisdição em matérias cíveis, criminais, econômicas, administrativas e com poder revisor sobre atos de outras cortes.

Os juízes chineses regem-se pelo Estatuto dos Magistrados da República Popular da China, aprovado em 1995, com modificações relevantes em 2001[9]. São requisitos legais para o ingresso na magistratura: a) nacionalidade chinesa; b) idade mínima de 23 anos; c) reputação ilibada, o que compreende aspectos profissionais, políticos e morais; d) prestar juramento de fidelidade à Constituição; e) ter “boa saúde”; f) ser bacharel, não necessariamente em Direito, com exigências particulares de experiência na área jurídica, a depender de ser um egresso de um curso jurídico ou não (art 9º). No entanto, ainda hoje, há juízes sem curso superior. Tal circunstância levou o Supremo Tribunal do Povo a obrigar os magistrados nessa condição a concluírem cursos superiores em um prazo de cinco anos, sob pena de perda de seus cargos[10].

Um dos problemas mais graves da magistratura chinesa é a corrupção, que se opera em dois níveis. O primeiro, de cunho político, é determinado pela dependência do Poder Judiciário às estruturas do Partido Comunista e ao governo. O segundo dá-se no campo das relações pessoais, com a falta de isenção dos juízes em casos concretos, ditada por fatores ordinários de corrupção individual. Neste último campo, as ações cíveis são as mais atingidas e, na sequência, as criminais[11].

Alguns estudos apontam como causa específica da corrupção judicial chinesa o modo como os tribunais são financiados, o que obriga os juízes a buscar meios alternativos de remuneração na iniciativa privada ou por força de taxas judiciárias arbitrárias ou pela priorização de demandas com valores de causa maiores. Outros entendem que os baixos valores da remuneração dos magistrados seriam a causa determinante da corrupção em níveis superiores à média de nações com níveis de desenvolvimento econômico equivalente[12].

O número de juízes na China é relativamente elevado. Há 200 mil magistrados no país, em uma relação de 14 por 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, esse número é de 11 por 100 mil habitantes. Não há como se fixar valores nacionais para a remuneração dos magistrados chineses, dadas as especificidades das funções exercidas e a diferença entre as províncias, no entanto, há estudos que apontam uma remuneração anual bruta de 7.264,93 a 8.475,75 euros por ano para um juiz chinês, ou seja, de 605,41 a 706,31 euros por mês. Detalhe: os valores da remuneração dos juízes não são disponíveis em plataformas de acesso ao público, como ocorre em muitos países[13].

4. Os promotores do povo
Não é possível estabelecer uma equivalência ideal entre os Ministérios Públicos dos países ocidentais e as Procuradorias do Povo chinesas, embora estas últimas concentrem muitas das atribuições típicas dos primeiros. São exemplos de suas funções a promoção de ações penais, o controle da investigação criminal e a defesa da ordem jurídica.

A Suprema Procuradoria do Povo é o órgão central do que se poderia chamar de “Ministério Público” chinês (com aspas em razão do que já mencionado sobre as peculiaridades do modelo da China). A Lei Orgânica das Procuradorias do Povo da República Popular da China data de 1979 e com alterações relevantes em 1980 e 1983[14]. A Procuradoria atua especialmente nos casos criminais e na fiscalização da atuação dos tribunais. Sua vinculação direta é ao Congresso Nacional do Povo chinês, o que demonstra uma ausência de autonomia institucional que é sensível para os padrões ocidentais[15].

Não há dados oficiais sobre a remuneração dos procuradores chineses.

***

Na próxima coluna, retomar-se-á o exame das universidades e do magistério jurídico na China.


[1] YOUXI, Chen. A tale of two cities: the legal profession in China. International Bar Association’s Human Rights Institute (IBAHRI): Thematic Papers n. 2, mar.2013. p.3.
[2] YOUXI, Chen. Op. cit. p.4.
[3] YOUXI, Chen. Op. cit. p.5.
[4] YOUXI, Chen. Op. cit. p.6-7.
[5]  POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel (Orgs). Direito Chinês contemporâneo. São Paulo: Almedina Brasil, 2015. p.312-313.
[6] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.314.
[7] Disponível em: http://www.statista.com/statistics/224787/number-of-lawyers-in-china/. Acesso em 15/6/2016.
[8] YOUXI, Chen. Op. cit. p.12-13.
[9] Disponível em: http://www.npc.gov.cn/englishnpc/Law/2007-12/12/content_1383686.htm. Acesso em 13/6/2016.
[10] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.150-153.
[11] WANG, Yuhua. Court funding and judicial corruption in China. The China Journal, v. 69, p.43-63, 2013. p.46.
[12] WANG, Yuhua. Op. cit. p.47.
[13] BLASEK, Katrin. Rule of Law in China: A comparative approach. Berlin: Springer, 2015. P.69.
[14] Disponível em: http://www.npc.gov.cn/englishnpc/Law/2007-12/13/content_1384077.htm. Acesso em 10/6/2016.
[15] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel. Op. cit. p.314.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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