Opinião

ADI 5.357 é um avanço na construção de um direito antidiscriminatório

Autores

  • Bruno Galindo

    é professor associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco.

  • Mateus Pereira

    é professor assistente da Universidade Católica de Pernambuco diretor de Comunicação Social da ABDPro e vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB/PE.

13 de junho de 2016, 7h45

Aparentemente, soa estranho cogitar um “direito” a discriminar; parece óbvio que isso não faz sentido na construção de um Estado democrático e constitucional de direito. Mas, em se tratando do constitucionalismo brasileiro, o óbvio, não poucas vezes, precisa ser desvelado, tomando emprestada expressão utilizada por Lenio Streck. Embora ideal e abstratamente pareça um absurdo pleitear em juízo um “direito” a discriminar (e aqui a referência é essencialmente à discriminação negativa, pejorativa, não às discriminações reversas ou positivas [1]), o tema entrou na pauta judicial em pleno 2015 e na mais alta instância judicial brasileira.

Objetivamente, foi o que sucedeu com a ADI 5.357, protocolada no Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) e distribuída para a relatoria do ministro Edson Fachin, cuja petição inicial postulava, em linhas gerais, a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 28, § 1º, e 30, caput, do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015); dispositivos que conferem aplicabilidade ao artigo 24 da Convenção de Nova York, estipulando que a obrigação de receber alunos com deficiência é de todas as escolas participantes do sistema educacional brasileiro, públicas ou privadas. Em síntese, a Confenen almejou que a expressão “privadas” deveria ser reputada inconstitucional, pois a obrigação atribuída aos estabelecimentos particulares de ensino afrontaria o direito de propriedade, sua função social (sic) e a liberdade de iniciativa, além de ser uma obrigação exclusiva do Estado e da família prover educação para a pessoa com deficiência. Direto ao ponto: acaso o pedido da ADI fosse acolhido, os referidos estabelecimentos estariam livres para recusar as matrículas de alunos com deficiência, em virtude desta, sem que o comportamento levasse à responsabilização criminal (artigo 8º da Lei 7.853/1989).

Pois bem. Um dos permanentes desafios da efetividade dos direitos humanos, não somente aqui no Brasil, é o seu aspecto cultural. Tanto menos ocorrem pretensões dessa natureza quanto mais possa ser sólida uma cultura jurídica e constitucional humanista e democrática, na qual a força normativa da constituição seja correspondente à generalização congruente das expectativas normativas (fazendo aí uma junção de Konrad Hesse e Marcelo Neves e, por que não dizer, também de Karl Loewenstein [2]).

Nessa linha, encontra-se em construção teórica (e por que não dizer, cultural), com avanços e percalços a depender do país e comunidade dos quais tratemos, uma espécie de direito antidiscriminatório, consubstanciado em diferentes medidas para minimizar vulnerabilidades de grupos sociais que sofrem discriminações em razão de suas condições específicas. Como afirmado por um dos autores deste texto em outra oportunidade, o direito antidiscriminatório pode ser conceituado como “um conjunto de medidas jurídicas em âmbito constitucional e infraconstitucional que almeja reduzir a situação de vulnerabilidade de cidadãos e grupos sociais específicos através da proibição de condutas discriminatórias pejorativas, a exemplo da criação e manutenção de privilégios injustificáveis à luz das contemporâneas teorias da justiça, e, por outro lado, da implementação, quando necessário, de políticas públicas de discriminação reversa ou positiva, sempre no sentido de promover tais grupos e cidadãos a uma situação de potencial igualdade substancial/material, políticas estas normalmente transitórias até que se atinja uma redução significativa ou mesmo extinção da vulnerabilidade em questão”. [3]

Os avanços desse direito antidiscriminatório têm exigido dos intérpretes constitucionais uma permanente disposição de se repensar o princípio da igualdade, fortalecendo seus aspectos materiais justificadores de, por um lado, coibir ações de discriminação negativa ou pejorativa, e, por outro, promover ações de discriminação positiva quando necessárias. Como desdobramentos do primeiro tipo, há, por exemplo, as diversas formas de combate ao racismo e à homofobia no plano de se impedir acesso aos mesmos bens jurídicos por parte de pessoas socialmente discriminadas por essas razões, a exemplo de importantes decisões como o paradigmático Acórdão do STF na ADI 4.277, quando o tribunal decidiu pela constitucionalidade das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Em relação ao segundo tipo, há a necessidade de promoção de políticas públicas que viabilizem o acesso dessas pessoas a bens jurídicos diversos, corrigindo desigualdades concretas por meio de medidas de justiça corretiva, evocando mais uma vez uma importante decisão da corte suprema brasileira, quando decidiu pela constitucionalidade das políticas de ação afirmativa referente às cotas raciais no acesso à universidade pública, em mais um acórdão paradigmático, desta vez na ADPF 186.

Não há dúvida de que essa discussão é amplamente influenciada pelo debate político-jurídico dos EUA a partir dos anos 70 do século passado; tendo em vista inicialmente a questão racial e as ações afirmativas pertinentes, jusfilósofos norte-americanos, a exemplo de John Rawls e Michael Walzer, debate(ra)m o princípio da igualdade como definidor das liberdades individuais fundamentais, calibrado por outro princípio de justiça, o princípio da diferença, com a ideia básica da equitativa igualdade de oportunidades. [4] Essas discussões foram ampliadas nas décadas seguintes envolvendo outros fatores relativos ao debate igualdade/diferença, tais como gênero, pobreza/miserabilidade, orientação sexual, cultura, assim como a deficiência.

No plano da deficiência (rectius: acessibilidade e inclusão social da pessoa com deficiência), pensar um direito antidiscriminatório a partir de todas essas contribuições levou, no plano internacional, ano de 2007, a 101 Estados soberanos aprovarem a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (também conhecida como Convenção de Nova York); o Brasil também é signatário da referida Convenção, concluindo sua aprovação interna desde 2008 com um detalhe de extrema relevância: a referida Convenção foi o primeiro (e até agora, único) tratado internacional de direitos humanos aprovado e ratificado pelo critério estabelecido no artigo 5º, § 3º, da Constituição da República, integrando o denominado “bloco de constitucionalidade”, uma tendência que se acentua, corroborada por decisões do STF (RE 482.611/SC e ADI 514/PI). [5]

Aliás, desde 1999, por força da Convenção de Guatemala, contemplada pelo Decreto 3956/2001, que a discriminação (em sentido negativo) da pessoa com deficiência recebeu um adequado tratamento normativo, repudiando-se a eventual discussão em derredor a um direito à discriminação. Desde então, a despeito de solenemente ignorado, esse Tratado estabeleceu que a compreensão da discriminação (negativa) de uma pessoa com deficiência também poderia passar apenas pelo resultado provocado, sendo dispensável perquirir a intenção do agente. Mas a Convenção de Nova York, com ares de inclusão social ainda desconhecidos pela Convenção de Guatemala, redimensionaria o tema.

Claramente, a Convenção de Nova York foi influenciada por esse ambiente político-jurídico antidiscriminatório incorporando o que há de mais avançado em termos jurídicos. Dentre outras coisas, por superar o denominado modelo médico, no qual a deficiência é pensada como “doença” a ser curada, adotando o modelo social, marcado pela aceitação da diversidade humana e da necessidade de superação de um padrão de humano (“normal”). [6] No ponto, a Convenção de Nova York resgata uma dívida histórica, invertendo o ônus (da diferença) para a sociedade ao determinar que a deficiência resulta da interação da pessoa com o meio (social, cultural, virtual etc.) ainda não adaptado e que, por esse motivo, possa lhe trazer dificuldades desproporcionais à efetiva inclusão (artigo 1, “propósito” combinado com preâmbulo, letra “e”). A deficiência não é portada, pois.

Na questão educacional, pode-se afirmar que a compreensão iria até mais além, dentro da perspectiva daquilo que autores como Rafael de Asís Roig, Agustina Palacios e Javier Romañach identificam como “modelo da diversidade”, uma evolução do modelo social que acarreta na compreensão da deficiência como fator enriquecedor da própria vida em sociedade. [7] Isso quer dizer, essencialmente, que a convivência em uma escola de qualquer tipo entre alunos com e sem deficiência não é benéfica somente aos primeiros; traduz-se, sim, em uma perspectiva educacional de aprendizado recíproco, de educação inclusiva para a vida, de exercício da cidadania, de compreensão de limites e possibilidades dos indivíduos a partir de suas singularidades.

Em linhas gerais, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor desde janeiro de 2015, é um desdobramento de todas essas concepções, consolidando a legislação já existente em alguns pontos e, em outros, regulamentando a Convenção. Esta faz referência, em seu artigo 24, ao direito à educação da pessoa com deficiência sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades. Para tal, os Estados devem assegurar em todos os níveis um sistema educacional inclusivo, o que inclui as escolas públicas e privadas, não sendo ocioso recordar que o modelo empresarial da livre iniciativa não é absoluto, deparando-se com diferentes limites normativos.

Em verdade, desde a nossa Carta de 1988 tem sido progressivamente fortalecida a tendência a reconhecer e contemplar os direitos da pessoa com deficiência, sobretudo para atender às suas necessidades específicas, diversas das do cidadão “normal” (do padrão de ser humano presente no (in)consciente coletivo), para alcançar a efetiva igualdade de oportunidades e ter acesso aos mesmos bens jurídico-sociais. São condições necessárias ao exercício da cidadania e, para tal, vem se erigindo um significativo arcabouço de normas jurídicas antidiscriminatórias.

É algo praticamente incontroverso na atualidade e não se vê, por exemplo, decisões judiciais conferindo aos estabelecimentos empresariais privados o “direito” de não executarem em suas casas e prédios as obras tecnicamente necessárias à acessibilidade; ao contrário, isso pode ocasionar até mesmo a não autorização do empreendimento com as consequências legais adjacentes. É igualmente impensável cobrar-se da pessoa em cadeira de rodas ou com qualquer outra característica que possa restringir a mobilidade, valores ou outra contraprestação em virtude de obras de acessibilidade, as quais teriam o uso do espaço adaptado como fato gerador.

No ensejo, também em uma decisão emblemática que o segundo autor deste ensaio analisou em outro trabalho, [8] o STF refletiu a inclusão em ambientes escolares, que não na mesma dimensão tratada na ADI em exame, senão na perspectiva arquitetônica. Referimo-nos ao RE 440.028/SP, em que a 1ª Turma da Corte reconheceu a obrigatoriedade de uma escola pública de São Paulo em remover as barreiras arquitetônicas para tornar o ambiente acessível a qualquer pessoa. Na oportunidade daquele estudo, (re)interpretando a tese jurídica ali firmada, foi defendido que:

“Nesse ponto, muito embora o caso se refira às barreiras arquitetônicas, não podemos negligenciar as demais barreiras existentes, pois a tese jurídica em parte reafirmada pela Suprema Corte, por força da isonomia, alcança (deveria alcançar) todas as dimensões da acessibilidade (arquitetônica, comunicacional, instrumental, programática, atitudinal e metodológica; ou qualquer outra que a literatura específica venha a identificar). A literatura já avançou significativamente sobre o tema ao identificar as seis barreiras encimadas à efetiva inclusão social das pessoas com deficiência — também reputadas dimensões da acessibilidade, a depender do prisma. É importante observar que o texto convencional foi sensível a todas elas, trazendo preceitos direcionados a cada uma das situações. […]; Tudo isso sem ignorar que, sendo inspirada no paradigma da inclusão social, a Convenção (Decreto 6.949/09) é animada pelo enfrentamento de todas as barreiras sem distinção em graus ou ordem de prioridade. E não poderia ser diferente, já que a Convenção teve em mira o empoderamento, autonomia e a independência das pessoas com deficiência, o que pressupõe a equiparação de oportunidades e a igualdade de condições. A hermenêutica para compreender a tese oriunda da decisão não se conserva alheia a esses direcionamentos.”

O direito antidiscriminatório tem tido uma clara tendência de fortalecimento no Brasil. No plano legislativo, governamental (políticas públicas) e judicial, é direito que avança, apesar dos percalços. [9] Mas a temática da educação inclusiva ainda carecia de um enfrentamento apropriado, compatível à sua complexidade e sensível à sua importância. Em certa medida, a ADI 5.357 foi o ensejo que faltava.

A última quinta-feira, 9 de junho de 2016, foi um dia histórico e memorável na luta pela inclusão social das pessoas com deficiência. O STF concluiu o julgamento do mérito da ADI 5.357 com uma vitória acachapante das famílias e das pessoas com deficiência: votaram 10 ministros, 9 pela total improcedência da ação e pela constitucionalidade do direito à escola inclusiva abarcando a educação privada e, somente um pelo acolhimento parcial da ação que, na prática, resultaria no acolhimento total (no caso, o ministro Marco Aurélio). Estava ausente o ministro Celso de Mello.

Nove de junho, um dia a ser lembrado…


[1Cf. TUSHNET, Mark: “Regras da Corte Suprema Norte Americana sobre Ação Afirmativa”, in: Jurisdição e Direitos Fundamentais – Anuário 2004/2005: Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS, vol. I, tomo I (org.: SARLET, Ingo Wolfgang). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp. 303-320. RIOS, Roger Raupp: “Relações Raciais no Brasil: Desafios Ideológicos à Efetividade do Princípio Jurídico da Igualdade e ao Reconhecimento da Realidade Social Discriminatória entre Negros e Brancos”, in: Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita (org.: BALDI, César Augusto). Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 465-490.

[2] HESSE, Konrad: A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1991. LOEWENSTEIN, Karl: Teoría de la constitución. Barcelona: Ariel, 1964. NEVES, Marcelo: A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

[3] GALINDO, Bruno: “O direito antidiscriminatório entre a forma e a substância: igualdade material e proteção de grupos vulneráveis pelo reconhecimento da diferença”, in: Direito à diversidade (orgs.: FERRAZ, Carolina Valença & LEITE, Glauber Salomão). São Paulo: Atlas, 2015, p. 51. Cf. tb. MARTÍNEZ, Fernando Rey: “La discriminación multiple, una realidad antigua, un concepto nuevo”, in: Revista Española de Derecho Constitucional, nº 84. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008, pp. 252ss.

[4] RAWLS, John: Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 64ss.. WALZER, Michael: Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 17.

[5] GALINDO, Bruno: “Direito à liberdade: dimensões gerais e específicas de sua proteção em relação às pessoas com deficiência”, in: Manual dos direitos da pessoa com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 101.

[6] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. “O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem”. In: Manual dos direitos das pessoas com deficiência. George Salomão Leite et al. (coords.). São Paulo: Saraiva, 2012, p. 31.

[7] CUENCA GÓMEZ, Patricia: “Sobre la inclusión de la discapacidad en la teoría de los derechos humanos”, in: Revista de Estudios Políticos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2012, p. 117.

[8] PEREIRA, Mateus Costa; SPÍNDOLA, Pedro. A isonomia como vetor à identificação de um precedente judicial: compreendendo a tese jurídica firmada no Recurso Extraordinário nº 440.028/SP. In: Precedentes. Fredie Didier Jr. et al. (coords.). Salvador: JusPodivm, 2015, p. 239-250.

[9] Disponível em: http://direitoecultura.blogspot.com.br/2015/09/haveria-no-brasil-o-direito-discriminar.html

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    é professor associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco.

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    é professor assistente da Universidade Católica de Pernambuco, diretor de Comunicação Social da ABDPro e vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB/PE.

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