Diário de Classe

Como ensinar processo penal quando um juiz decreta, de ofício, prisão em HC?

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11 de junho de 2016, 8h00

Spacca
Está muito difícil ensinar processo penal quando o juiz prende o paciente de um Habeas Corpus de ofício.

— Professor, o juiz pode decretar prisão preventiva em um Habeas Corpus que discute se o valor da fiança pode ser dispensado em face da situação econômica do acusado?

— Não poderia, mas faz, em nome da mentalidade inquisitória que ainda permeia a magistratura, como foi o tema do evento recentemente organizado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho na UFPR.

Tempos difíceis em que magistrados garantistas são perseguidos por levar a sério o processo penal. Estava conversando com um colega “perseguido” e nos demos conta de que na nossa adolescência, embora estivéssemos afastados geograficamente, ainda assim tínhamos uma razão, um ideal, alguma coisa em que acreditávamos; alguma coisa pela qual valia a pena viver, ou seja, aceitávamos lutar até a morte! Fazíamos parte da geração que não se acomodava com as aulas de “Educação Moral e Cívica (EMC)”, “OSPB” ou de “EPB”. Éramos, por assim dizer, gente contagiada por um “comum sonho ideal”. Lutamos por democracia, comemoramos a Constituição da República de 1988, fomos ingênuos de “cara pintada”, manipulados pelos media, acreditávamos em um mundo melhor e diferente. Outro mundo era possível! E, mesmo achando que o tempo não passava, ficamos velhos. Acreditamos, todavia, no Direito, e não em voluntarismos.

No atual estágio da “pragmatização eficiente” do mundo e, especialmente, do Direito Processual Penal, ainda acreditamos em ideais, a saber, ficções que nos dão os limites simbólicos do que chamamos realidade. Não se trata de viver no sonho, nem aceitar que se possa dar conta do Real, mas de pensar o quanto de ficção permanece na nossa realidade, como dizem Zizek e Lenio Streck. Essas coordenadas simbólicas no Direito andam se perdendo justamente pela funcionalização da “coisa julgada” que fazia do quadrado redondo e do redondo quadrado, apontando, na matriz, que há um limite que precisa ser aceito, acreditado e não racionalizado, dada a impossibilidade do todo. Porém, os “iluministas do discurso” acham que se pode chegar a acordos sobre tudo e aí, nesse lugar de mercado penal, somente se cria o jogador-processual-negociante capaz de apresentar o semblante de algo que não pode ser dito, mas aparenta ser; e convence os incautos de sempre.

Aliás, no Direito Processual Penal não se pode esperar muito de gente criada com os manuais de sempre, porque limitam a capacidade de compreensão constitucionalmente adequada. São manietados por uma visão caolha e iludida do processo e Direito Penal, lançados na moda do direito negociado até ao extremo.

Em nome da consequência, dos efeitos das decisões, o regime do devido processo legal, a congruência entre o pedido e a decisão, a reformatio in pejus, enfim, a lógica do sistema resta destruída por magistrados que desconsideram os limites processuais em nome do resultado do que acham certo. As regras servem para colocar limites em todos, especialmente magistrados. Enfim, respondendo ao aluno em dois momentos: a) não pode fazer, mas faz; b) está difícil ensinar processo penal no deserto do Real do voluntarismo.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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