Ambiente Jurídico

Um histórico sobre o Direito Ambiental nos Estados Unidos

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11 de junho de 2016, 8h05

Spacca
Embora muitos afirmem que o Direito Ambiental americano foi criado no âmbito do Congresso nos anos 1970, na verdade ele é fruto do desenvolvimento de séculos das doutrinas da common law que buscam, ainda hoje, a proteção das pessoas e da propriedade contra danos causados pela ação de outros. Notadamente, a common law está embasada nas doutrinas do nuisance para resolver questões ambientais, embora condutas que resultem em invasão física das propriedades possam ser analisadas com base na doutrina do trespass. A doutrina do nuisance é aplicada para proteger o proprietário nos seus direitos de uso e gozo da terra, enquanto a doutrina do trespass protege a posse exclusiva da terra contra perturbações e invasões[1].

Pode-se dizer que a complexa estrutura do Direito Ambiental norte-americano é composta de doutrinas da common law e de leis federais e estaduais que levam as agências federais emitirem diversas regulações e, ainda, intermediarem acordos entre os estados. Agências federais nos Estados Unidos têm competência para julgar administrativamente, executar políticas públicas e regulamentar leis por delegação do Congresso, em determinadas circunstâncias, como decidido e firmado pela Suprema Corte no célebre caso Chevron[2].

De acordo com Tarlock, o Direito Ambiental nos Estados Unidos, como hoje definido, é a síntese das regras da era pré-ambiental da common law, de princípios de outras áreas do Direito e das leis da era pós-ambiental aprovadas no Congresso. As últimas são influenciadas pela aplicação de conceitos derivados dos campos da ecologia, da ética, da ciência e da economia[3].

Pode-se organizar cronologicamente a legislação ambiental mais relevante no sistema americano do seguinte modo:

1. National Environmental Policy Act (NEPA): em vigor desde 1970, estabelece amplos objetivos para a política ambiental nacional e determina que as agências federais providenciem avaliações de impactos ambientais quando as ações que puderem causá-los forem relevantes.

2. Clean Air Act: as emendas do Clean Air Act de 1970 estabelecem uma moldura de regulações federais para o controle da poluição do ar e substituem o Clean Air Act de 1963. Preveem um conjunto de prazos para a EPA promulgar standards de qualidade do ar a serem implementados pelos estados e standards nacionais para poluentes do ar perigosos. Restou previsto na legislação o citizen suit, para que o cidadão tenha um instrumento processual de tutela da qualidade do ar. A lei foi emendada em 1977, para exigir controles mais rigorosos nas regiões que falharem em obedecer os standards nacionais de poluentes do ar perigosos, com o objetivo principal de combater o grave problema da chuva ácida. Sofreu nova emenda em 1990, criando nova modulação regulatória para verificação da qualidade do ar.

3. Federal Water Pollution Control Act (Clean Water Act): aprovada em 1972, a lei proíbe descargas de poluentes na superfície das águas, exige a utilização de tecnologia baseada em controles sobre as descargas e estabelece um programa nacional, o National Pollutant Discharge Elimination System (NPDES), que deve ser implementado pelos Estados sujeito à supervisão da EPA. Autoriza subsídios e concessões para a construção de usinas de tratamento de esgoto e prevê o citizen suit para que os cidadãos possam promover a defesa da qualidade da água. Foi substancialmente emendada esta legislação pelo Clean Water Act Amendments de 1977 e pelo Water Quality Act de 1987.

4. Federal Insecticide, Fungicide and Rodenticide Act (FIFRA): essa lei, de controle de pesticidas, emendou a legislação originária de 1947 e passou a exigir o registro dos pesticidas, além de autorizar a EPA a proibir estes quando perigosos. A legislação foi emendada no ano de 1988, para exigir uma revisão mais célere e periódica dos registros de pesticidas e, em 1996, com a aprovação do Food Quality Protection Act, passou a ser exigir mais rigorosa proteção contra resíduos destes sobre os alimentos.

5. Marine Protection, Research, and Sanctuaries Act of 1972 (Ocean Dumping Act): aprovado em 1972, proíbe o despejo de resíduos no oceano, exceto com a permissão e nos locais designados pela EPA.

6. Endangered Species Act (ESA): aprovada em 1973, essa legislação proíbe as ações federais que coloquem em risco os habitats das espécies em risco de extinção e proíbe a apropriação de qualquer animal dessas espécies por qualquer pessoa.

7. Safe Drinking Water Act (SDWA): aprovada em 1974, exige que a EPA fixe os limites máximos permitidos de poluentes nos sistemas públicos da água potável. Foi emendada em 1996, para exigir uma mais rápida promulgação de standards para flexibilizar os standards já fixados.

8. Toxic Substances Control Act of 1976 (TSCA): confere à EPA abrangente autoridade para regular ou proibir a manufatura, distribuição ou o uso de substâncias químicas que representam riscos não razoáveis. Exige a notificação da EPA antes da manipulação, de novos produtos químicos ou de novos usos dos produtos químicos existentes.

9. Resource Conservation and Recovery Act of 1976 (RCRA): determina que a EPA estabeleça regulações assegurando a segura gestão de resíduos perigosos. A lei foi emendada pelo Hazardous and Solid Waste Amendaments em 1984 (HSWA) que impõe novas tecnologias baseadas nos standards relativos aos aterros sanitários que possuem resíduos perigosos e aumentou a autoridade federal sobre o despejo de resíduos sólidos não perigosos.

10. Comprehensive Environmental Response, Compensations, and Liability Act of 1980 (CERCLA): estabelece o sistema de responsabilidade objetiva para liberação de substancias perigosas e cria um superfundo para financiar ações para despoluição. Foi emendada em 1986 para expandir o superfundo e impôs objetivos numéricos e prazos para a limpeza das zonas poluídas. Especifica standards e procedimentos a serem seguidos e determina o nível e o escopo das ações de limpeza.

11. Emergency Planing and Community Right-to-Know Act (EPCRA): aprovada em 1986, essa legislação exige que as corporações e companhias informem detalhadamente as autoridades locais a respeito do uso de qualquer substância tóxica e que elaborem a relatoria anual das quantidades das substancias químicas liberadas no meio ambiente[4].

Relevante doutrina norte-americana, por sua vez, divide o Direito Ambiental nacional em seis etapas históricas: a era da common law e da conservação (anterior ao ano de 1945); da assistência federal aos problemas dos estados (1945-1962); do crescimento do moderno movimento ecológico (1962-1970); da construção da infraestrutura federal regulatória (1970-1980); da expansão e refinamento das estratégias regulatórias (1980-1990); e a atual fase do recuo e reinvenção regulatória[5]. Evolução que passa por séculos de construção do Direito com os precedentes e evoluções doutrinárias da common law, pelo Estado keynesiano e assistencialista, pela conscientização da comunidade internacional sobre questões vinculadas ao desenvolvimento e crise ambiental, pela era do neoliberalismo recente e sua derrocada e, evidentemente, pelos tempos atuais de busca da promoção do desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas.

A tutela do meio ambiente nos Estados Unidos não é, portanto, apenas promovida pelo Estado e agências federais, mas também pelos cidadãos com o ajuizamento de ações judiciais. Existem vários requisitos para o reconhecimento do standing do demandante ambiental nos Estados Unidos, que tornam a Justiça nem sempre acessível a este. O cidadão deve demonstrar:

  •  possuir legitimidade, a ser analisada no caso em concreto, para impugnar ato ou omissão estatal ou de agência federal;
  • o esgotamento da via administrativa antes da ação judicial;
  • que o caso está instruído e em condições de ser julgado;
  • que está presente um dano atual ou futuro, não necessariamente econômico, que afete direitos individuais do demandante[6].

Existe vasta legislação estatal em matéria ambiental que autoriza qualquer cidadão, ou qualquer pessoa, propor um citizen suit por violação à lei ou por desacordo com os standards na emissão de poluentes. Embora a previsão do citizen suit, no parágrafo 304 do Clean Air Act, sirva de modelo para a maioria dessas ações, é a previsão do citizen suit no Clean Water Act que tem embasado a maioria das demandas do estilo[7].

O citizen suit pode ser promovido contra o Estado, ente estatal ou corporação que esteja violando um standard de efluentes ou limitando o previsto na legislação de regulação ou, ainda, descumprindo ordem emitida pela agência federal e pelo próprio Estado referente aos níveis de emissões. O citizen suit também pode ser promovido contra a agência federal quando existir alegada falha no cumprimento de lei ou dever previsto no Clean Water Act[8].

Cidadão no sentido da lei “é qualquer pessoa que tenha um interesse  ou direito que possa ser adversamente afetado pelo dano ambiental”[9]. Como já reconhecido pela jurisprudência, o citizen suit é apenas um suplemento, e não um suplante da ação estatal em matéria de proteção ambiental. O Poder Legislativo não pretendeu que o cidadão seja sempre um potencial intruso sobre a discricionaridade das agências federais[10]. Tanto na regulação da poluição da água, quanto do ar, o cidadão não pode demandar se o administrador ou o Estado ajuizaram previamente uma ação civil ou criminal em uma corte estadual ou federal, de acordo com a doutrina da diligent prosecution[11].

Em suma, algumas demandas judiciais ambientais nos Estados Unidos são propostas com base nas antigas doutrinas da common law e, a sua maioria, ao contrário do que algumas vezes se afirma, são fundadas na legislação ambiental aprovada no Congresso. Estado, agências federais e cidadania têm legitimidade para a tutela ambiental judicial, desde que violados direitos e interesses privados, uma vez que a Constituição de 1787, as emendas do Bill of Rights e demais emendas constitucionais, assim como os precedentes da Suprema Corte, não elevaram o meio ambiente a bem autônomo e merecedor de tutela constitucional específica como no Brasil.

Existe expectativa, entre os ambientalistas, de que a Suprema Corte, que tem sido refratária em decidir a favor do meio ambiente nas últimas décadas — EPA v. Massachusetts (2007) foi uma exceção —, possa mudar de posição após a morte do conservador justice Scalia, fulminado por um infarto em uma estação de caça no início do ano. A eventual nomeação de um justice liberal em sua substituição é a esperança para a formação de precedentes favoráveis ao meio ambiente nas próximas décadas. Importante referir que a corte conta agora com oito membros, quatro liberais e quatro conservadores, e que a recente indicação do judge Merrick Garland pelo presidente Obama para ser o nono justice encontra-se pendente de aprovação no Senado, dominado pela maioria republicana fortemente financiada pela indústria dos combustíveis fósseis. Se essa indicação para a Suprema Corte não for aprovada até o final do ano, Hillary Clinton ou Donald Trump poderá revê-la no próximo ano. Em caso de vitória de Trump, as perspectivas da causa ambiental e, em especial, do combate as mudanças climáticas nos Estados Unidos são sombrias e muito possivelmente, por hora, a América won't be green again.

Voltarei a este tema, com maior profundidade, futuramente.


[1] PERCIVAL, Robert; SCHROEDER, Christopher; MILLER, Alan;  LEAPE, James. Environmental Regulation. Law, Science and Policy. 7 th ed.  New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2013.p. 89.
[2] Sobre o caso Chevron  U.S.A v Natural Resources Defense Council, ver: FARBER, Daniel; FREEMAN, Jody; CARLSON, Ann. Cases and Materials on Environmental Law. 8 ed. Saint Paul: West Publishing, 2006. Pags. 450-455.
[3] TARLOCK, A. Dan. Is there in Evironmental Law?, 19. J. Land Use & Envtl. L 213, 222(2004).
[4] PERCIVAL, Robert; SCHROEDER, Christopher; MILLER, Alan;  LEAPE, James. Environmental Regulation. Law, Science and Policy. 7 th ed.  New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2013.p. 93-94.
[5] PERCIVAL, Robert; SCHROEDER, Christopher; MILLER, Alan;  LEAPE, James. Environmental Regulation. Law, Science and Policy. 7 th ed.  New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2013.p. 62.
[6] WEINBERG, Philip; REILLY, Kevin. Understanding Environmental Law. 2nd ed. Newark: LexisNexis, 2008. P.5.
[7] DOREMUS, Holly; LIN, Albert; ROSENBERG, Ronald; SCHOENBAUM, Thomas. Environmental Policy Law: Problems, Cases and Readings. Fith Edition. New York: Foundation Press, 2008. [P. 863-875].
[8] Clean Water Act [33 U.S.C. § 1251-1387. Sec. 505].
[9] DOREMUS, Holly; LIN, Albert; ROSENBERG, Ronald; SCHOENBAUM, Thomas. Environmental Policy Law: Problems, Cases and Readings. Fith Edition. New York: Foundation Press, 2008. [p. 863-875].
[10] Supreme Court of the United States. Gwaltney of Smithfield v. Chesapeake Bay Found., 484 U.S. 49, 60 (1987).
[11] Ver: Clean Water Act §505 (b)(1)(B) ( found in Section 4 deste capítulo]; ver, também 42 U.S.C. §7604 [b](1)(B)(CLEAN AIR ACT); 42 U.S.C. §6972 (b)(1)(B)(RCRA).

Autores

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    é juiz federal. Doutorando e Mestre em Direito. Visiting Scholar pelo Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School – EUA. Professor de Direito Ambiental Coordenador na Escola Superior da Magistratura- Esmafe/RS.

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