Crime de opinião

Será que ainda posso criticar a fastidiosa operação "lava jato"?

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9 de junho de 2016, 18h08

A imprensa e a sociedade estão ansiosas com o desenrolar de um pedido do pedido de prisão do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), do senador Romero Jucá (PMDB-RR) e do ex-presidente da República José Sarney, flagrados em uma escuta ambiental, realizada por dileto amigo. Para o ex-presidente Sarney tratava-se do filho de um antigo companheiro já falecido. Para os senadores, um colega de mandato que até então parecia perseguido injustamente.

Em um ambiente amistoso, é possível e natural um posicionamento dos interlocutores em favor daquele que era um verdadeiro suplicante de conselhos e de orientações. Afinal, eram amigos.

Nas reuniões realizadas, segundo gravações veiculadas pela imprensa, houve críticas à atuação do chefe do Ministério Público Federal, à lei de delações e ao que foi apelidado de operação “lava jato”. Entre amigos, houve questionamentos e aconselhamentos, inclusive com a indicação de advogados.

Ao contrário de outra reunião também noticiada pela imprensa, a realizada entre o filho de um acusado chamado Nestor Ceveró e o ex-senador Delcídio do Amaral, não houve proposta de suborno e ou planos de fuga, tampouco tráfico de influência. Nada disso! Houvesse, a imprensa teria destacado.

Apesar de ser absolutamente diferente o teor das reuniões, o procurador-geral da República, conforme noticiam os jornais, pediu a prisão de Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney.

O argumento, segundo a imprensa, é de que os requeridos teriam cometido o delito previsto na Lei 12.850/2013, que estipula no parágrafo 1º do artigo 2º a seguinte conduta criminosa: "Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa".

Ou seja, pelo noticiado na imprensa, a reunião, o aconselhamento, o traçar estratégias defensivas e o exercício natural de críticas à autuação do Judiciário é crime, máxime quando se critica o Ministério Público e o Judiciário.

Não é crível que tal requerimento possa ter recepção pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo que com o constrangimento decorrente da divulgação “vazada” do pedido de prisão. Aliás, tal como está posto na imprensa, nem sei se o simples redigir deste artigo também é crime.

Tenho a esperança de que não seja. Mas, se for, como possuo clientes na referida operação policial, a minha crítica está, no mínimo, acobertada pela imunidade profissional, pois como advogado posso, pelas prerrogativas que possuo, ter a liberdade de expressão e manifestação de opinião, em juízo e fora dele.

Interessante, que dois dos que tiveram o pedido de prisão protocolado contra si também possuem tal prerrogativa, a deles prevista no artigo 53 da Constituição Federal, que estipula: "Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos".

Ora, o primeiro equívoco do referido pedido de prisão, os senadores não podem ser punidos e ou questionados por manifestarem opiniões ou desejo de mudar a lei, mesmo que seja a lei de delações. Aliás, interessante lembrar que tal proposta já tramita na Câmara dos Deputados em um projeto de lei (PL 4372/2016) da autoria do ex-presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, deputado Wadih Damous (PT-RJ), que, entre outras medidas, estabelece que só seja aceita delação de pessoas que estejam em liberdade.

Mas não é a prerrogativa de deputados e senadores que permite concluir pela inviabilidade do referido pedido de prisão ou pela tipicidade da conduta. O que se criminaliza é a crítica à operação “lava jato”. Aliás, qualquer tentativa de se esquivar de um juiz com assento na seção judiciária de Curitiba parece crime. Outro ex-presidente da República teve contra si ofertada denúncia porque pediu, aceitou ou foi posto no cargo de ministro de Estado.

A situação que se cria na “lava jato” é tão absurda que faz presumir que o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal é obstáculo ou embaraço à investigação criminal. Algo ininteligível, como se um juiz de piso fosse melhor que o Excelso Tribunal. Mas este não é o nó górdio para o artigo. A presente crítica ao pedido de prisão cinge-se à sua total discrepância com as decisões do Supremo Tribunal Federal.

O Supremo Tribunal Federal tem em seu rol de decisões alguns posicionamentos que devem ser imutáveis, eis que a Corte defronta-se com situação análoga a outra já apreciada, na qual ficou consignado:

Tenho para mim, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal defronta-se, no caso, com um tema de magnitude inquestionável, que concerne ao exercício de duas das mais importantes liberdades públicas – a liberdade de expressão e a liberdade de reunião – que as declarações constitucionais de direitos e as convenções internacionais – como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (Artigos XIX e XX), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Arts. 13 e 15) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigos 19 e 21) – têm consagrado no curso de um longo processo de desenvolvimento e de afirmação histórica dos direitos fundamentais titularizados pela pessoa humana.

É importante enfatizar, Senhor Presidente, tal como tive o ensejo de assinalar em estudo sobre “O Direito Constitucional de Reunião” (RJTJSP, vol. 54/19-23, 1978, Lex Editora), que a liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das idéias, configurando, por isso mesmo, um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar.

Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder.

Neste referido acórdão o ministro Celso de Mello, trouxe a lembrança de de habeas corpus concedido em favor de Ruy Barbosa,  onde se viu consignado o secular posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

“A Constituição Federal expressamente preceitua que a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública. Em qualquer assunto, é livre a manifestação do pensamento, por qualquer meio, sem dependência de censura, respondendo cada um, na forma legal, pelos danos que cometer. Não se considera sedição ou ajuntamento ilícito a reunião (pacífica e sem armas) do povo para exercitar o direito de discutir e representar sobre os negócios públicos. À Polícia não assiste, de modo algum, o direito de localizar ‘meetings’ e comícios. Não se concede ‘habeas-corpus’ a indivíduo não indicado nominalmente no pedido.”

Ainda no referido acórdão o ministro transcreveu trecho da petição do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), presente naqueles autos:

A proibição do dissenso equivale a impor um ‘mandado de conformidade’, condicionando a sociedade à informação oficial – uma espécie de ‘marketplace of ideas’ (OLIVER WENDELL HOLMES) institucionalmente limitado. Ou, o que é ainda mais profundo: a imposição de um comportamento obsequioso produz, na sociedade, um pernicioso efeito dissuasório (‘chilling effect’), culminando, progressivamente, com a aniquilação do próprio ato individual de reflexão (…).

Ao final de seu voto o ministro traz duas considerações importantíssimas à analise da prisão dos requeridos, quando diz:

Ninguém desconhece que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento.

A liberdade de expressão representa, dentro desse contexto, uma projeção significativa do direito, que a todos assiste, de manifestar, sem qualquer possibilidade de intervenção estatal “a priori”, as suas convicções, expondo as suas idéias e fazendo veicular as suas mensagens doutrinárias, ainda que impopulares, contrárias ao pensamento dominante ou representativas de concepções peculiares a grupos minoritários.

A liberdade de expressão e o direito de reunião foram consagrados pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 187, que disse que a manifestação em favor da descriminalização do uso de maconha é lícita. Espera-se que o Supremo também declare lícita a manifestação individual e ou coletiva contra a já fastidiosa operação “lava jato”. Independentemente de quem quer que sejam os autores das referidas críticas.

Não se pode criminalizar ideias. Isso não se faz!

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