Opinião

Traição entre criminosos não é condição de êxito da Justiça

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7 de junho de 2016, 16h00

ConJur transcreveu, agora, artigo publicado pelo juiz Sergio Moro no jornal O Estado de São Paulo de 31 de maio, denominado A Justiça e os decaídos. Cuida aquele magistrado, no texto, da hoje corriqueira delação premiada, ou colaboração recompensada, sistema posto a viger muito antes dos italianos ou dos investigadores norte-americanos, sabendo-se que a delação já constava das velhas “Ordenações”. Aliás, delatar é conduta que se insere na própria existência, funcionando desde os bancos de escolas primárias às sofisticadas hipóteses de comunicação social. A delação premiada, atualmente, é moeda de troca sem grandes novidades. As variações dizem, é claro, com a qualidade dos confitentes e consequências da confidência, quer no valor monetário a ser recuperado, quer mesmo na inculpação dos dedurados. Há, evidentemente, técnicas adequadas à obtenção de resultados razoáveis pela inquisição. Di Pietro, juiz italiano hoje egresso daquela magistratura, tinha sua forma de agir. Ele próprio explicava, segundo quem o entrevistou certa vez, que interrogava todos os suspeitos concomitantemente, a fim de não permitir que um repassasse ao outro a versão dada aos fatos.

Discutia-se, na doutrina, até pouco tempo atrás, se a traição feita por um delinquente em relação ao outro seria ou não, em determinadas circunstâncias, tipificadora do crime de tortura. A disputa perdeu ressonância, pois raros, atualmente, se dedicam à matéria, na medida em que a captação de informações sob promessa de benevolência já é redundância até risível, pois os suspeitos se dispõem, antes mesmo de inquirições ditas formais, a dizer o que sabem e, intermitentemente, inventar algo sobre o que não conhecem. Evidentemente, manter-se um acusado em cárcere durante meses sem qualquer regalia, aguardando-se o enfraquecimento de resistências físicas ou emocionais, é forma de tortura, sabendo o investigado que uma reação positiva do preso lhe há de minorar o sacrifício, inclusive, de satisfazer necessidades básicas em orifício aberto no chão da cela, buraco este vulgarmente chamado “boi”. Em outros termos, embora não se o diga abertamente, uma das diferenças entre a traição ou o silêncio é aquela de poder livrar-se o encarcerado não aviltadamente da carga intestinal. Cuida-se de frase posta com rudeza no vernáculo, mas é assim, principalmente quando o cárcere é habitado por dois ou mais prisioneiros. Dentro do contexto, permaneça-se no tema: às vezes, o suspeito de delinquência resiste a quase tudo, mas cede frente ao repetivo descortinamento de sua intimidade, valendo aqui, à margem, a sugestão, advinda da doutrina moderna, no sentido de não haver prerrogativa ou diferença entre pequenos e grandes acusados. Em suma, o tratamento precisa ser igualitário.

Vale a digressão em contraponto ao título de estudo posto pelo magistrado Moro no matutino citado. Ali, o êxito da justiça depende de criminosos a se traírem. Na medida em que delinquentes não se traem a não ser por motivos excepcionais, entre os quais sobrelevam os sofrimentos pessoais e da família, o apontamento dos defeitos do comparsa só vem a lume se a ameaça é muito séria. Constrangimentos assim somente são obtidos a poder de restrição da liberdade individual, ou da extensão do cárcere a pessoas importantes no relacionamento familiar (mãe, pai, esposa, filhos, concubinas, enfim). Portanto, a obtenção de provas contra um parceiro na conduta delinquencial tem preço no peso da recompensa a ser obtida. Exemplo: deixar-se de perseguir, prender e castigar a mãe dos filhos do infrator. Cuida-se, aí, de oferta extremamente tentadora constituindo galardão sem par. Note-se, apenas para não se perder o miolo do raciocínio, a hipótese de casal recolhido concomitantemente em prisão provisória, enleando-os imputação análoga. A técnica da obtenção de resultados positivos à descoberta da conduta delituosa pode, sem dúvida alguma, estender-se na pressão sobre o homem ou sobre a mulher, conhecendo-se tal expediente desde os primórdios da civilização, passando, aliás, na condição de hábito regulamentado, pelas inquisições espanholas e italianas. O Brasil, aqui, pode ter inovado alguma coisa, porque o brasileiro sempre tem seu jeitinho especial para nacionalizar hábitos estrangeiros. Convém notar, entretanto, que nosso passado razoavelmente recente já experienciou desde a colocação de microfones em cubículos destinados, nos presídios, a amplexos sexuais entre o recluso e sua mulher (casada ou não, pouco importa), até a fixação de escutas em gabinetes de ministros, não se sabendo, nunca, qual a autoria desses comportamentos nefandos. Partindo-se desse princípio, fica difícil aplaudir a tese do magistrado Moro, porque não se pode dar a qualquer das práticas existentes (manutenção indevida da prisão no cárcere, habitáculos prisionais inadequados, violação da intimidade, inoportunidade dos interrogatórios e continuação destes, ciência de perseguição a familiares e medidas outras) aplauso qualquer. Não, a delação premiada não é fundamental ao êxito da ação penal persecutória, não o sendo, também, qualquer dos adminículos oferecidos em paralelo. A admissão de tal assertiva significaria transformar a exceção (embora repulsiva) em regra, funcionando a lei Processual Penal em rotineira conduta imoral dos intervenientes. A partir da aceitação do preceito, os pressupostos em que o Direito Processual Penal se fixa (licitude na apuração) margeiam perigosamente um lamaçal, perdendo-se, inclusive, o limite a separar o bem e o mal dos partícipes. E não se diria que pressões menos estéticas seriam justificáveis em se tratando de hipotéticos delinquentes (ou mesmo de criminosos habituais), pois valeria, então, igualmente, tese no sentido de que criaturas voltadas ao mal podem sofrer doses maiores de violência, porque maléficas são. Deixar-se-ia ao longe, então, todo o complexo de garantias asseguradas ao ser humano, com predomínio, aliás, naquele sobre o qual assenta dose maior de imputações. Em outros termos, mais grave o crime, maior o empenho em se lhe garantir legalmente a apuração.

Não se diga mais sobre as particularidades, não em razão de se cuidar de contrariedade às palavras de um juiz absolutamente blindado a censuras, mas pelo simples fato de se cuidar de uma premissa cuja intocabilidade tem transformado a doutrina clássica em peneira repleta de perfurações. Tal pressuposto é rotundamente expressado: à Jurisdição não é permitido comportamento extravagante. Não pode, para o fim de obter delações e ou confissões, ferretear a regularidade do processo penal. Não lhe é admitido o negócio fundamentado em perdão parcial ou total de infrações penais, premiando o delator e assim colocando o outro no lugar do primeiro. O magistrado não usa a toga para servir a tal tipo de intermediação. Fica mais difícil, é claro, buscar o delinquente, mas a alternativa posta a viger constitui um balanceamento extremamente nauseante porque se perdoa o primeiro para condenar o segundo.

Tocante ao juiz Sergio Moro, não se lhe dê afago e não se lhe faça censura. Diga-se apenas que enquanto vai ao povo, tira a toga e parte para o debate. Colhe contradição a ser posta, com esforço, dentro das lindes da elegância do texto. Juízes devem quedar-se dentro da toga, com manifestações sempre postas no cerne dos autos. Indo à coletividade, põem-se em condições iguais e ouvem aquilo que parte da população lhes deve dizer. É ficarem na corte, sim, lançando os despachos possíveis, dentro da convicção suportada nas provas. Pondo os pés fora do foro, submetem-se às armas do todo. Podem ferir-se na volta.

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