Ouvido do Estado

Gravações feitas por Sérgio Machado não têm valor de prova, dizem especialistas

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7 de junho de 2016, 19h38

O valor político das gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado é inegável. Por causa delas, o presidente interino Michel Temer já trocou dois ministros, e o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a prisão do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), do ex-presidente da República José Sarney (PMDB-AP) e do senador Romero Jucá (PMDB-RR). Mas o uso dos áudios na Justiça não será tão simples.

A utilização das chamadas gravações clandestinas (quando um dos interlocutores grava a conversa sem avisar o outro) só é aceita, segundo especialistas em Direito Penal consultados pela ConJur, em dois casos, sempre em defesa própria: para a preservação de direitos (um acordo verbal, por exemplo) ou para se proteger de uma investida criminosa (como uma extorsão).

No caso de Machado, as gravações foram usadas para entregar para autoridades como forma de garantir um acordo de delação premiada. Assim, ele deixa de ser uma parte da conversa e passa a agir como a longa manus do Estado, avalia a criminalista Maria Elisabeth Queijo autora do livro O Direito de Não Produzir Prova Contra Si Mesmo.

“Quando há a participação de um terceiro, especialmente em se tratando de um agente estatal (Ministério Público ou autoridade policial, por exemplo), torna-se imperiosa a autorização judicial para concretização da medida”, explica Miguel Pereira Neto, criminalista e presidente da Comissão Permanente de Estudos sobre Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

Como uma espécie de agente do Estado, ele teria que seguir as limitações impostas aos agentes da polícia e do Ministério Público. “É como o policial que convoca acusado para falar informalmente e grava o depoimento", diz Maria Elisabeth Queijo. "Mas é ainda mais grave, porque, como é uma conversa entre amigos, há o principio da confiança, que rege as relações sociais. Todos falamos algumas coisas por conveniência social”, explica para depois concluir que a prova é inválida.

Indução
Outro problema de usar os áudios seria a forma como o ex-diretor da Transpetro conduz as conversas (e induz respostas). A ideia fica clara em falas de Machado, como “amigo, eu preciso da sua inteligência” e “eu estou muito preocupado porque eu acho que o Janot está a fim de pegar vocês. E acha que eu sou o caminho”.

Essa indução também tem o condão de invalidar a prova, de acordo com o criminalista Luís Guilherme Vieira. Ele afirma que trata-se de uma produção de prova “grosseira”, na qual um interessado provoca o outro a dizer a frase que ele quer gravar, como se fosse uma espécie de flagrante preparado. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, tem uma súmula vinculante (145) segundo a qual “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

A súmula não se aplica ao caso, porque não houve flagrante. No entanto, o criminalista Fernando Augusto Fernandes lembra que a ilicitude das gravações se baseia no mesmo princípio que gerou a súmula, de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. “Quando o sujeito grava outro com o objetivo de obter uma confissão, está, de fato está burlando a garantia do silêncio. E é muito mais grave se ele tem contato anterior com autoridade e combina que vai fazer gravação”, afirma.

Crime inexistente
Além do problema apontado na produção da prova, especialistas afirmam que também não existe crime nas gravações, diferentemente do que diz a Procuradoria-Geral da República. Calheiros, Sarney e Jucá são acusados de tentar atrapalhar as investigações da operação "lava jato", que apura um esquema de corrupção na Petrobras.

Fernando Fernandes diz que “criminalizar políticos porque falam ou tentam influenciar ministros do Supremo sobre a ‘lava jato’ ou desejam mudar leis para conter o abuso de juiz é tornar crime ter opinião contrária a Sergio Moro”. 

Fábio Tofic Simantob, vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), concorda: falar que fez ou que vai fazer alguma coisa não é crime. As conversas gravadas seriam, se muito, uma espécie de confissão informal. Os envolvidos estariam, no máximo, dizendo que estão dispostos a fazer algo ou confessando que o fizeram. “Mas a lei brasileira diz que não é válida sequer uma confissão dada exclusivamente ao delegado. Logo, uma que foi dada em conversa particular entre amigos não pode receber tratamento diferente”, diz Tofic.

“A provocação afasta o crime”, sentencia o também criminalista Alberto Zacharias Toron. Mas ele faz uma ressalva: quando o interlocutor revela ação criminosa cometida no passado. “Nesse caso o crime revelado pode ser investigado; houve apenas a revelação provocada, mas não a prática.”

Pegadinha delacional
O advogado e professor de processo penal Lenio Streck diz que Machado fez uma "pegadinha juridica-delacional" para seus interlocutores. “A pergunta que deve ser feita é: o interlocutor falaria aquilo se não fosse provocado? O sujeito que grava está construindo prova. Isso é ilegal”, afirma. O que o ex-presidente da Transpetro gravou foram intenções, diz, que podem ser moralmente condenáveis, mas o Direito não pode se guiar pela moral. “Ninguém pode ser processado ou condenado por ‘coisas feias’. Só por crime. Simples assim.”

Streck critica  ainda a divulgação das gravações, que primeiro saíram na imprensa para só depois chegarem às acusações da PGR: “A lei diz que o conteúdo da delação só pode ser divulgado depois do recebimento da denúncia. Mas quem cumpre a lei no Brasil? Os fins justificam os meios. O futuro mostrará que o Direito ajudou na destruição do próprio Direito. Puro canibalismo”.

Ao comentar a situação, o jurista lembra da velha anedota: “O ‘machado’ vem entrando na floresta e uma árvore diz para a outra: não se preocupe, o cabo é dos nossos. Ao que a outra, mais cuidadosa, diz: mas acho que o aço lhe subiu à cabeça. Eis a lâmina que pegou todo mundo”.

Precedente Delcídio

De acordo com o parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição Federal, parlamentares só podem ser presos em casos de "flagrante de crime inafiançável". No entanto, o advogado constitucionalista João Paulo Jacob, do Nelson Wilians e Advogados Associados, entende que o precedente criado pelo próprio STF ao permitir a prisão do ex-senador Delcídio Amaral [em novembro de 2015] torna factível a ideia de que o STF novamente possa decretar a prisão dos três envolvidos.

Para ele, também não caberia decretar a prisão de senadores no exercício do mandado, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável. Mas, se repetir o caso de Delcídio, o Supremo pode entender que eles pertencem a uma organização criminosa, “sendo, portanto, um crime permanente, que continua no espaço de tempo e assim ser considerado flagrante a qualquer momento”.

Filipe Fialdini, criminalista, afirma que o precedente é inconstitucional, bem como é “inconcebível que um procurador-geral da República peça ao Supremo para que a Constituição seja violada”. Ele não é otimista em relação à resposta que o STF dará ao caso: “Se o princípio da presunção de inocência já caiu, não há direito fundamental garantido”.

Já Fernando Fernandes lembra que, se a prisão for decretada pelo Supremo, precisa ainda ser referendada pelo Senado. “E o Senado não cometerá outra vez o erro que cometeu com Delcídio”, vaticina.

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