Segunda leitura

Estupro coletivo no morro do Rio de Janeiro exige olhares diversos e profundos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de junho de 2016, 8h38

Spacca
O país acompanha, perplexo, as investigações sobre o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos de idade, ocorrido no dia 21 de maio em uma moradia localizada no Morro do Barão, zona oeste do Rio de Janeiro.

Segundo a vítima, ela  foi até a casa de um rapaz com quem se relacionava há três anos  “e, depois, só se lembra que acordou no domingo, em uma outra casa, na mesma comunidade, cercada por 33 homens armados com fuzis e pistolas. Ela destacou que estava dopada e nua”.[1] Sua reação não foi a de procurar a Polícia, mas sim o chefe do tráfico, a quem se queixou do furto de seu celular e de ter sido estuprada.

Os fatos só vieram a público no dia 24, quando um vídeo colocado nas redes sociais mostrou a cena de uma jovem nua e desacordada e dois rapazes fazendo comentários indicativos da existência de estupro coletivo praticado por mais de 30 homens.

A repercussão foi enorme. Mensagens de solidariedade se sucederam na internet. Outras, ao inverso, atribuíam à jovem a culpa, pois seria conhecida por entregar-se a todos. A discussão foi além de nossas fronteiras, tendo a Organização das Nações Unidas  se solidarizado com a vítima.

Abrem-se parênteses para observar que no estado do Rio de Janeiro registrou-se uma média de 13 estupros por dia entre 1º de janeiro e 30 de abril deste ano.[2] Em São Paulo há, pelo menos, um estupro por dia de mulher em condição vulnerável.[3]

As investigações pela Polícia Civil já começaram com polêmica.  O delegado foi acusado pela advogada da vítima de omisso. Por sua vez, apurou-se que “a advogada responde a uma ação por associação criminosa movida pelo Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ”[4], acusada de envolvimento nos protestos ocorridos no Rio de Janeiro em passado recente. Ambos foram substituídos.

Tão logo viu-se despojada de seu celular, a vítima procurou o chefe do tráfico no local. Não foi à Polícia Civil ou Militar, deixando claro quem é que decide os conflitos no local. Esta situação é o fruto da omissão do Poder Público por décadas. Antigos governadores do estado deveriam ser lembrados pelo que fizeram ou deixaram de fazer, permitindo que a situação chegasse a este ponto. Ponto este que muitos consideram sem volta.

A personalidade da vítima também merece análise. Não para atribuir-lhe responsabilidade pelo fato, como muitas vezes ocorre, em odiosa visão machista, mas sim porque ela faz parte do contesto dos fatos.

Segundo notícias do jornal Estado de São Paulo, ela saía sozinha aos 11 anos, frequentava bailes funk, engravidou aos 13 anos, largou a escola, tem um filho de 3 anos e costuma usar ecstasy, lança-perfume e cheirinho da loló.[5] O que a levou a chegar a este ponto?

A primeira pergunta será, inevitavelmente, onde estava a sua família. Não agora, mas sim anos antes. O que a levou, aos 11 anos de idade, a frequentar bailes funk? Terá sido sua conduta fruto da desídia dos pais? A família é a base da sociedade.  Não se pode esperar que o Estado resolva tudo e muito menos, como vem se tornando comum, que a escola eduque as crianças, substituindo os pais.

E os autores? Segundo consta, tinham de 18 a 20 anos, com exceção de um, com 41, que teria sido operador de câmara na TV Globo. Criados em um ambiente em que prevalece a lei do mais forte, avaliam o caso sob uma ótica machista e com regras próprias. Veja-se o comentário na mensagem abaixo, postada em um dos sites que noticiaram a ocorrência:

Ela ta acostumada a fazer isso, é garota do tráfico, meninas que tranzam com traficantes, aliás vários ao mesmo tempo. Agora vem dar de inocente, além disso todo mundo sabe que não é permitido estupro em favela, quando acontece, os estupradores pagam com a vida e morrem da pior forma[6]

Há aí uma lógica própria da realidade em que vivem. Em um primeiro momento moralista, ou seja, se a vítima se entregava a traficantes, não poderia reclamar do ocorrido. Em um segundo momento, lembrando que o estupro é proibido na favela e que se o fato fosse verdadeiro os estupradores seriam julgados e condenados à pena de morte.

Merece referência, ademais, o fato de que a divulgação pelo vídeo é que gerou a revolta da sociedade. E há vídeos disponíveis  banalizando o sexo e exibindo práticas de toda espécie. É admissível que um casal filmasse relações com  filha de 13 anos?[7] Ou que um universitário e dois menores de uma escola em cidade do interior de Santa Catarina possam ter estuprado uma menor de 15 anos, gravado as cenas e colocado o vídeo na internet?[8] Até onde estas coisas influenciam negativamente os jovens?

Deve, ainda que de forma paralela, ser lembrado o mal que tal tipo de notícia traz ao Brasil e aos brasileiros. Estes, quando no exterior, passam a ser olhados com cautela.  Turistas pensarão duas vezes antes de vir ao nosso país. Efeitos econômicos são o resultado direto. A procura pela Olimpíada no Rio de Janeiro tem sido muito aquém da esperada, obrigando hotéis e companhias de turismo a praticarem preços mais baixos.

Agora vejamos os fatos do ponto de vista legal. A reação da sociedade é emocional. A judicial deve ser técnica.

O crime de estupro está previsto no art. 213 do Código Penal e consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso Esta é a forma clássica, com violência física, e a pena é de 6 a 10 anos de reclusão.

Mas ele pode ser praticado com presunção de violência quando a pessoa é vulnerável. É o caso de menores de 14 anos, de pessoas com deficiência mental ou que não tenham condições de discernimento ou de opor resistência ao ato. Prevista no art. 213-A do Código Penal, é punido com 8 a 15 anos de reclusão.

No caso em tela, a vítima compareceu ao Hospital Maternidade Maria Amélia no dia 26, portanto 5 dias depois,  para submeter-se a exame clínico, e a perícia não localizou vestígios de violência. No entanto, se ela estava desacordada ou se, simplesmente, fossem mesmo 33 homens, está flagrante a impossibilidade de resistir. Consequentemente, os que participaram de ato sexual ou que tenham estimulado sua prática, podem ser denunciados por estupro de vulnerável.

Resta, ainda, a postagem do vídeo nas redes sociais.  À primeira vista, contudo, não se vê nos artigos 153 e 154 do Código Penal, com a redação dada pela Lei 12.737 de 2012, que dispõe sobre os delitos informáticos, qualquer relação com os fatos em questão. Por mais que a colocação dos vídeos seja condenável, se não houver previsão de crime em lei eles não podem ser processados. E, no caso, não há.

Note-se que as autoridades, na busca da verdade, devem evitar a tentação da mídia, que leva alguns a mostrarem-se simpáticos a quaisquer apelos coletivos expressivos. O juiz, principalmente, não pode curvar-se a manifestações de qualquer espécie, mas sim julgar com independência e imparcialidade, pois estas são as virtudes mais caras de sua profissão.

Em suma, o crime de estupro é abominável e sua prática deve, por todos, ser combatida. Isto independentemente da condição da vítima, pois ninguém, seja qual for a orientação sexual, pode ser constrangido à prática de ato sexual. Todavia, o caso em foco merece análise mais ampla. Não será aumentar a punição que dará solução ao problema. É preciso ir mais fundo. Tudo indica que estamos vivendo uma fase de ausência de valores e fatos como este são o reflexo de tal situação.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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