Estado da Economia

A volta dos que não foram: para relembrar o "Estado regulador"

Autor

  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

5 de junho de 2016, 8h05

Spacca
Um dos primeiros atos do governo ilegítimo instaurado pelo golpe de Estado de 2016 foi a edição de uma Medida Provisória, a MP 727, de 12 de maio de 2016, que, aparentemente, restaurou a concepção de "Estado regulador", ideia que, segundo seus defensores, teria sido abandonada pelos governos Lula e Dilma desde 2003. Na realidade, me causa uma grande estranheza toda essa celeuma em torno da restauração de um modelo de Estado que nunca foi abandonado, ao contrário do senso (in)comum dos juristas (homenageando aqui o querido Lenio Streck).

Uma pequena recordação histórica da estrutura administrativa brasileira pode revelar alguns dados que permitem uma melhor compreensão de qual Estado se está tratando quando se analisa o Estado brasileiro. A Constituição democrática de 1988 recebeu o Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), elaborado por Roberto Campos e Octavio Gouveia de Bulhões (1964-1967). O Paeg, e as reformas a ele vinculadas, propiciou a atual configuração do sistema monetário e financeiro, com a criação do Banco Central do Brasil (Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964)[1], do sistema tributário nacional (Emenda Constitucional 18, de 1º de dezembro de 1965, e Código Tributário Nacional, Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966) e da atual estrutura administrativa, por meio da reforma implementada pelo Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, ainda hoje em vigor.

As reformas feitas pelo Paeg visavam, fundamentalmente, recuperar a economia de mercado. Um dos objetivos explícitos do Decreto-Lei 200/1967 foi, justamente, aumentar a "eficiência" do setor produtivo público por meio da descentralização na execução das atividades governamentais. As empresas estatais tiveram, assim, que adotar padrões de atuação similares aos das empresas privadas (artigo 27, parágrafo único do Decreto-Lei 200/1967[2]), foram obrigadas a ser "eficientes" e a buscar fontes alternativas de financiamento. Desse modo, a permanência da estrutura administrativa reformada no regime militar, com as concepções de eficiência empresarial e de privilegiar o setor privado já presentes cerca de 30 anos antes da chamada "Reforma Gerencial" dos anos 1990, é um elemento-chave para a compreensão das possibilidades e limites da atuação do Estado brasileiro no domínio econômico.

As tentativas de "mudança" no papel do Estado, visando manter as mesmas estruturas, levadas a cabo pelos governos conservadores eleitos a partir de 1989, muitas vezes optaram pelo caminho das reformas constitucionais, com o intuito deliberado de "blindar" as alterações, impedindo uma efetiva mudança de política. Isso quando ditas "reformas" simplesmente não ocorreram à margem, ou até contrariamente, do disposto no texto constitucional, como no caso do Plano Nacional de Desestatização (Lei 8.031, de 12 de abril de 1990, posteriormente substituída pela Lei 10.482, de 9 de setembro de 1997), ou das leis que criaram as "agências" reguladoras.

A “regulação” da economia virou o tema da moda, com seus defensores se apressando em proclamar um “novo direito público da economia”, em sintonia com as reformas microeconômicas estruturadas a partir do “Consenso de Washington”; em contraposição ao “velho” direito econômico, responsável pelo “antiquado” dirigismo da Constituição de 1988. Os objetivos da Reforma Gerencial eram aumentar a eficiência e a efetividade dos órgãos estatais, melhorar a qualidade das decisões estratégicas do governo e voltar a administração para o cidadão-usuário (ou cidadão-cliente). A lógica da atuação da administração pública deixaria de ser o controle de procedimentos (ou de meios) para ser pautada pelo controle de resultados, buscando a máxima eficiência possível. Para tanto, um dos pontos-chave da reforma era atribuir ao administrador público parte da autonomia de que gozaria o administrador privado, com a criação de órgãos independentes (as “agências”) da estrutura administrativa tradicional, formados por critérios técnicos, não políticos. A Reforma Gerencial, assim, iria “inovar” ao trazer o que já estava previsto na legislação brasileira desde 1967.

Com a Reforma do Estado, criaram-se duas áreas distintas de atuação para o poder público: de um lado, a administração pública centralizada, que formula e planeja as políticas públicas. De outro, os órgãos reguladores (as “agências”), que regulam e fiscalizam a prestação dos serviços públicos. Uma das consequências dessa concepção é a defesa de que a única, ou a principal, tarefa do Estado é o controle do funcionamento do mercado. Isto contraria o próprio fundamento das políticas públicas, que é a necessidade de concretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado, ou seja, por meio dos serviços públicos. Política pública e serviço público estão interligados, não podem ser separados, sob pena de serem esvaziados de seu significado.

Sintomática do espírito da Reforma do Estado, ainda, foi a substituição, no texto constitucional, dos beneficiários com os serviços públicos: a coletividade foi substituída pelo usuário. O titular do direito de reclamação pela prestação dos serviços públicos (previsto no artigo 37, parágrafo 3º da Constituição de 1988) foi alterado pela Emenda 19, passando da população em geral para o consumidor. O cidadão, com a Reforma Gerencial, é entendido apenas como cliente, como consumidor.

O repasse de atividades estatais para a iniciativa privada é visto por muitos como uma “republicização” do Estado, partindo do pressuposto de que o público não é, necessariamente, estatal. Essa visão está ligada à chamada “teoria da captura”, que entende tão ou mais perniciosas que as “falhas de mercado” (market failures), as “falhas de governo” (government failures) provenientes da cooptação do Estado e dos órgãos reguladores para fins privados. No Brasil, essa ideia é particularmente forte no discurso que buscou legitimar a privatização das empresas estatais e a criação das “agências”. As empresas estatais foram descritas como focos privilegiados de poder e a sua privatização tornaria público o Estado, além da criação de “agências” reguladoras “independentes”, órgãos “técnicos“, “neutros”, “livres” da ingerência política na sua condução.

A “neutralidade” e a “técnica” tornaram-se, portanto, fortes argumentos dos defensores das “reformas regulatórias”, reduzindo o espaço decisório reservado à política e buscando limitar as atividades estatais a um mínimo. O fenômeno dos “poderes neutros” (como as “agências”) ocorre especialmente em momentos de crise da política, quando diminui a percepção da racionalidade da atuação dos poderes públicos. Esses “poderes neutros” têm por característica marcante o fato de não desenvolverem atividades produtivas, mas regularem e controlarem estas atividades. Na realidade, o que ocorre é a independência da tecnocracia de qualquer forma de controle, justificando isso por sua “neutralidade” ou “imparcialidade”. Um círculo restrito de técnicos “captura”, assim, boa parte da estrutura administrativa. Os órgãos públicos instituídos para assegurar a intervenção do Estado na esfera econômica têm sua instrumentalidade negada, paradoxalmente, pelos seus próprios dirigentes. A pretensão do argumento da “neutralidade” é a de orientar as escolhas coletivas a partir de cálculos de utilidade que os indivíduos fariam tendo em vista seus próprios interesses, como se não existissem valores sociais, fazendo prevalecer os interesses de mercado sobre a política democrática. Nesse contexto, ganham inusitada importância a famosa análise “custo-benefício”, ultimamente tão em voga, ou a interpretação do "princípio da eficiência", ou seja, a adequação entre meios e fins, exclusivamente como "eficiência econômica", como se a racionalidade de atuação do Estado devesse ser a mesma que a dos agentes econômicos privados no mercado.

A negação ou a crítica à racionalidade da política, no entanto, não pode obscurecer o fato de que as decisões dos técnicos são tão discutíveis quanto as dos políticos. Para além de suas competências específicas, os pressupostos e valorações de fundo destes técnicos continuam subjetivas, embora possam estar formalmente de acordo com o meio ao qual os técnicos estão vinculados. O órgão “técnico” ou “neutro” é, deste modo, um instrumento de representação de grupos restritos de especialistas, cujo espaço e importância foram ampliados às custas da esfera democrática.

É possível concluir que a chamada Reforma do Estado da década de 1990 não reformou, de fato, o Estado brasileiro. Afinal, as “agências” independentes”, que, na realidade, não são independentes, foram simplesmente acrescidas à estrutura administrativa brasileira, não modificaram a administração pública, ainda configurada pelo Decreto-Lei 200/1967, apenas deram uma aura de modernidade ao tradicional patrimonialismo que caracteriza o Estado brasileiro. O ponto central das reformas do Estado dos anos 1990, e agora repetido em 2016, foi o objetivo de, finalmente, conseguir a “despolitização do direito”, retirando, assim, as decisões jurídicas (e políticas e econômicas) das mãos dos políticos, devolvendo-as aos “cidadãos”. Pode-se perceber, portanto, que a "reforma regulatória" consiste em uma nova forma de “captura” do fundo público, ou seja, a "nova regulação" nada mais é do que um novo patrimonialismo, com o agravante de se promover a retirada de extensos setores da economia do debate público e democrático e do poder decisório do povo.

Esse mesmo discurso e esses mesmos argumentos, que nunca deixaram de ser empregados mesmo durante o suposto período “neodesenvolvimentista” que teria sido instaurado a partir de 2003 no Brasil, estão sendo repetidos ad nauseam pelos juristas apoiadores da ruptura institucional de 2016. Segundo eles, a Medida Provisória 727/2016 marcaria uma nova grande mudança no papel do Estado no Brasil. As célebres palavras que Tancredi diz a Don Fabrizio no início do romance O Gattopardo, de Lampedusa, novamente, caem como uma luva para descrever a situação brasileira: "Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude".


[1] A legislação sobre o sistema financeiro nacional, boa parte dela ainda em vigor, foi quase toda aprovada durante o governo do Marechal Castello Branco, como a Lei 4.380, de 21 de agosto de 1964 (Lei do Sistema Financeiro da Habitação), a já mencionada Lei 4.595/1964 (que cria o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional), a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965 (lei do mercado de capitais) e o Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966 (que reestrutura todo o setor de seguros e resseguros do país).
[2] Artigo 27, parágrafo único do Decreto-Lei 200: "Parágrafo Único – Assegurar-se-á às emprêsas públicas e às sociedades de economia mista condições de funcionamento idênticas às do setor privado cabendo a essas entidades, sob a supervisão ministerial, ajustar-se ao plano geral do Govêrno".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!