Opinião

Para que seja melhor aplicado, contingenciamento de despesas deve ser claro

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4 de junho de 2016, 7h30

A Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, pretendeu modernizar o sistema de regras que disciplina a gestão de recursos públicos. Em apertada síntese, esta lei determina que os gestores públicos devem obedecer a metas de geração de receitas, bem como a limites pré-estabelecidos no que toca às despesas públicas[1].

O art. 4º, parágrafo 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) disciplinou as metas de arrecadação. Segundo este parágrafo, “integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas,…”. Por consequência, todos os anos, quando o Poder Legislativo aprova a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) proposta pelo Poder Executivo, aquele analisa e legisla sobre as metas de arrecadação impostas para o exercício financeiro subsequente.

Ciente de que estas metas nem sempre serão atingidas pelos órgãos de arrecadação, o legislador previu um mecanismo para readequação do orçamento quando as metas do Anexo de Metas Fiscais não fossem alcançadas. O artigo 9º da Lei Complementar 101/2000 determina que “se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias”. Ou seja, caso as metas de arrecadação estipuladas na lei de diretrizes orçamentárias não possam ser alcançadas, os gestores de recursos públicos deverão adequar seus orçamentos, reduzindo proporcionalmente as despesas. Essa técnica de limitação de empenho recebe o nome de “contingenciamento”.

Nos termos do artigo 9º, todos os Poderes e o Ministério Público têm o dever de contingenciar suas despesas. Considerando-se que hoje há outros órgãos do Estado que são dotados de autonomia orçamentária – tais como os Tribunais de Contas e as Defensorias Públicas – é inequívoco que a estes também se impõe o dever de contingenciar despesas, motivo pelo qual parece mais adequado falar em “órgãos dotados de autonomia orçamentária”, e não exclusivamente em Poderes.

O contingenciamento é sempre uma medida temporária, imposta para evitar o desequilíbrio momentâneo das contas públicas. Por esse motivo, se a realização da receita tornar a crescer ao longo do exercício financeiro, o ordenador de despesas poderá voltar a efetuaras despesas originalmente orçadas. Esta é a regra estabelecida pelo parágrafo 1º do artigo 9º.

Outra particularidade das regras estabelecidas pelo artigo 9º é que o contingenciamento será efetuado “segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias”. Essa regra é coerente com o artigo 4º da LRF, que atribui à LDO o papel de dispor sobre o equilíbrio entre receitas e despesas. Se à lei de diretrizes orçamentárias compete assegurar esse equilíbrio, esta lei naturalmente deverá definir o que fazer quando o equilíbrio for ameaçado.

Portanto, para bem compreender como deverá ser feito o contingenciamento, é imperativo analisar o que foi determinado pela LDO em vigor, pois esta é a lei que torna previsível e transparente a eventual necessidade de contingenciamento. Previsível e transparente não só para a sociedade, como bem pontuou Maurício Conti[2], mas especialmente para os órgãos dotados de autonomia orçamentária, ou seja, para aqueles que têm a responsabilidade de contingenciar as despesas.

De fato, se as diretrizes para eventual dever de contingenciamento estiverem bem estabelecidas na LDO, estes órgãos terão inequívoca ciência de como deverão proceder caso a estimativa de receita venha a ser frustrada, tornando-se necessária a limitação de empenhos. Isso porque os órgãos dotados de autonomia orçamentária participam da redação da LDO, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal[3], tendo, por consequência, ingerência nos termos em que será prevista a limitação de empenho.

Portanto, a Lei de Diretrizes Orçamentárias deve deixar claras algumas diretrizes de limitação de empenho, a fim de viabilizar o contingenciamento. Primeiramente, a LDO deve definir as despesas orçamentárias que não podem ser contingenciadas, dando fiel cumprimento ao parágrafo 2º do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo o qual não podem ser limitadas as despesas decorrentes de obrigações constitucionais, as destinadas ao pagamento do serviço da dívida e as ressalvadas pela LDO.

Nesse aspecto, a técnica de referir quais despesas não podem se contingenciadas é mais adequada do que a técnica de referir quais despesas podem ser contingenciadas, pois assegura-se a autonomia de cada um dos Poderes e do Ministério Público, que poderão escolher o que contingenciar. Se for necessária a limitação de empenho, cada um dos chefes dos Poderes deverá publicar ato em que define o que contingenciar, conforme leciona Carlos Valder do Nascimento:

Na hipótese de materialização dessa ocorrência [necessidade de limitar o empenho], há de ser fixado o montante a ser tornado indisponível para empenho e movimentação financeira. Competirá ao chefe de cada Poder publicar ato esclarecendo os montantes que seus órgãos terão como limite de movimentação e empenho.[4]

A seguir, a LDO deve definir a forma de cálculo do montante a ser contingenciado por cada um dos órgãos dotados de autonomia orçamentária. Ao estabelecer esse critério de rateio, o legislador deve ter em mente a efetiva possibilidade de contingenciamento por cada órgão, considerando o impacto que as despesas que não podem ser contingenciadas têm sobre o orçamento total deste. Se o legislador deixar de considerar as particularidades de cada órgão, arrisca inviabilizar a limitação de empenho, por exigir que o órgão reduza despesas que, nos termos da própria LDO, não podem ser contingenciadas.

Por fim, e mais relevante do que os dois pontos anteriores, a LDO deve esclarecer o procedimento de contingenciamento, definindo prazos e diretrizes de procedimento para cada um dos envolvidos no processo de limitação de empenho. Os órgãos dotados de autonomia orçamentária deverão ser comunicados pelo chefe do Poder Executivo – ou por pessoa a quem este delegar os poderes – acerca da frustração da expectativa de receita, e, ato contínuo, deverão expedir os correspondentes atos de limitação de empenho, com o correspondente cronograma de implementação. Um procedimento bem estabelecido é crucial para assegurar a previsibilidade e transparência dessa técnica de limitação da despesa orçamentária.

Portanto, o detalhamento do procedimento de limitação de empenho na Lei de Diretrizes Orçamentárias é medida essencial para permitir que os órgãos dotados de autonomia orçamentária se preparem para implementar o contingenciamento, caso ele venha a ser necessário. Caso esse procedimento não seja claro e conhecido por todos, o contingenciamento pode ser extremamente traumático aos órgãos dotados de autonomia orçamentária.

[1] Esse artigo é uma adaptação resumida do texto publicado na Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 36, n. 75, p. 29-53, cujo título é O Dever de Contingenciamento Estabelecido na Lei De Responsabilidade Fiscal – Tensão Entre o Equilíbrio Orçamentário e a Independência entre os Poderes. Disponível em http://www.pge.rs.gov.br/upload/rpge75_2.pdf.

[2] CONTI, Maurício. Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-jun-02/contas-vista-orcamento-nao-peca-ficcao, acesso em 20/05/2016.

[3] Vide, dentre outras, a ADI 4356, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2011, DJe11-05-2011; e a ADI 5381, Relator(a) Min. ROBERTO BARROSO, julgada em 18/05/2016, acórdão pendente de publicação.

[4] MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 5ª ed. SP: Saraiva, 2011, p. 111.

Autores

  • é procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Oxford, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, e professora da graduação em Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

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