Limite Penal

Você sabe o que é efeito primazia no Processo Penal?

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Ruiz Ritter

    é advogado criminalista mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS.

29 de julho de 2016, 8h00

Não raras vezes os ditados populares possuem alguma base científica que os suporte e, partindo disso, a psicologia social se debruçou sobre a crença popular de que 'a primeira impressão é a que fica', através — entre outras linhas de pesquisa – do chamado 'efeito primazia'. Ainda que sempre sensível, é crucial buscar o diálogo interdisciplinar para romper com o reducionismo do monólogo científico, e o Direito não está imune a essa necessidade. Todo o oposto. A complexa fenomenologia da violência e, posteriormente, da situação jurídica processual precisam muito desse diálogo interdisciplinar para dar conta – minimamente – de toda a complexidade ali envolvida.

Trazemos hoje um diálogo entre o processo penal e os estudos da psicologia social sobre o fenômeno da percepção de pessoas, mais especificamente no que diz respeito a vinculação da primeira impressão na formação da impressão definitiva, para que se (re)pense determinadas categorias e institutos processuais a partir dessa perspectiva.

Não se objetiva estudar o desenrolar do processo perceptivo em si, bastando que se lhe compreenda como um processo instantâneo, mediante o qual se inferem características psicológicas a determinada pessoa, a partir da observação de sua conduta (entre outros atributos) ou de sua descrição (quando feita por alguém),[1] e se organizam estas inferências em uma impressão una e coerente[2]. É importante entender, minimamente, as consequências cognitivo-comportamentais da fixação de uma primeira impressão em relação a outras posteriores a ela.

Os estudos que mais repercutiram na investigação da formação das impressões (e consequentemente, no desvelamento do impacto das primeiras impressões), foram conduzidos por Solomon Asch,[3] e apresentam duas principais conclusões: 1) existem qualidades que se sobressaem no processo perceptivo (conclusão que não será aprofundada); 2) as primeiras informações recebidas tem mais peso que as demais,[4] fundamentando-se a ideia de que há uma preponderância das cognições oriundas da primeira impressão relativamente as outras a elas conectadas, o que se denominou de efeito primazia.[5]

A pesquisa desenvolvida por Asch que acabou por comprovar tal efeito, deu-se (entre outras) da seguinte forma: elaboraram-se duas séries de características idênticas, que se diferiam apenas quanto à ordem em que apareciam escritas (em uma, inteligente, trabalhador, impulsivo, crítico, teimoso e invejoso; e na outra, invejoso, teimoso, crítico, impulsivo, trabalhador e inteligente), e as submeteram a dois grupos diferentes, que deveriam formular suas respectivas impressões sobre uma pessoa com tais atributos. Apesar de serem exatamente dos mesmos adjetivos, constatou-se que o grupo que recebeu a série com as características positivas primeiro, revelou uma impressão consideravelmente melhor sobre a pessoa imaginada, do que o outro, cujas negativas constavam a frente,[6] justificando a afirmação de que há uma primazia das informações que se recebe primeiro sobre as demais.

Logo, concluiu o pesquisador que: “As descrições dos estudantes indicam que os primeiros termos estabelecem uma direção, e esta exerce uma influência contínua sobre os últimos termos. Quando se ouve o primeiro termo nasce uma impressão, ampla e não cristalizada, mas dirigida. A característica seguinte está relacionada com a direção estabelecida. A opinião formada adquire rapidamente uma certa estabilidade; as características posteriores são ajustadas à direção dominante, quando as condições o permitem.”[7]

Harold Kelley, por meio de um experimento ainda mais realista, reforçou a conclusão de Asch. Na pesquisa que conduziu, antes de ouvirem um conferencista, duas classes de estudantes de psicologia ouviram uma breve apresentação do mesmo, na qual se lhes descreveram-no como sendo uma pessoa bastante fria, empreendedora, crítica, prática e decidida (turma A), e uma pessoa muito afetuosa, empreendedora, crítica, prática e decidida (turma B). Após a conferência (idêntica em ambas as classes) todos os estudantes tiveram que escrever uma redação expressando suas impressões acerca do conferencista. Como era de se esperar, o resultado demonstrou que a turma B (cuja descrição falava em “muito afetuoso” no lugar de “bastante frio”) revelou significativamente mais impressões favoráveis do que a turma A,[8] concluindo-se que “Os estudantes que tinham formado uma impressão preliminar do conferencista a partir da preleção introdutória manifestaram a tendência de avaliar-lhe o comportamento real à luz dessa impressão inicial.”[9] Além disso, verificou-se que os alunos que esperavam um conferencista afetuoso tendiam a dialogar mais livremente com ele do que os demais, sendo possível observar que as distintas descrições preliminares impactaram não somente na impressão final declarada, mas também no comportamento dos estudantes para com o conferencista.[10]

Quer dizer que, as informações posteriores a respeito de uma pessoa, em geral, são consideradas no contexto da informação inicial recebida,[11] sendo esta, então, a responsável pelo direcionamento da cognição formada a respeito da respectiva pessoa e pelo comportamento que se tem para com ela, podendo-se reconhecer, com Freedman, Carlsmith e Sears, que “As primeiras impressões são não só o começo da interação social mas também as suas principais determinantes.”[12] As causas para esse fenômeno são atribuídas tanto à necessidade de se manter a coerência entre as informações recebidas, quanto ao nível de atenção dado para as informações, que tende a diminuir substancialmente quando já se tem um julgamento formado, fruto de uma primeira impressão.[13] A compreensão dessa problemática nos remete a diversas situações no processo penal, como:

— risco para a imparcialidade do julgador que atua na fase pré-processual (decretando prisão cautelar, busca e apreensão, interceptação telefônica, etc.), pois ele forma a imagem mental a partir dessa primeira experiência, unilateralmente construída pelo acusador/investigador;

— a manutenção do inquérito nos autos do processo conduz a que o juiz, quando da prolação da sentença, inicie a leitura dos autos pela denúncia, seguida da leitura de todo o inquérito. Com isso, após centenas (as vezes milhares) de paginas depois, ele finalmente conhece da prova produzida no processo, situação em que a primeira imagem está formada e consolidada, com evidente pré-juízo;

— as denúncias abusivas, eivadas de adjetivos que estigmatizam o acusado e se destinam a formar uma determinada imagem criminosa estereotipada do réu, que conduz a fixação de uma primeira impressão negativa, geradora de prejuízos cognitivos por toda a instrução e sentença;

— o problema dos laudos criminológicos na execução penal, que recorrem a categorias como 'perigoso', 'risco de reincidência em grau médio', 'personalidade desviada', 'tendência criminosa', 'mesocriminoso preponderante', etc.

Note-se que esses são apenas alguns dos vários contextos em que se poderia trabalhar os reflexos do efeito primazia no processo penal. Especificamente acerca da contaminação pelo inquérito, aliás, válido mencionar a pesquisa empírica de Bernd Schünemann, publicada no Brasil na obra “Estudos de direito penal, direito processual e filosofia do direito”, coordenada por Luís Greco, sob o intrigante título “O Juiz como terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança”,[14] que já foi aqui analisada[15] e ainda que sob outra perspectiva (teoria da dissonância cognitiva), traz dados satisfatórios sobre essa mesma questão.

Enfim, é preciso um olhar muito atento a essas situações (e outras similares), que ratificam e dão musculatura teórica e científica às diversas críticas feitas ao processo penal, justificando mudanças há muito tempo reclamadas, como a necessária implantação do juiz das garantias; da separação entre o juiz que atua na fase pré-processual e aquele que vai julgar (o problema da prevenção como causa de fixação da competência, quando deveria ser de exclusão); da necessidade de exclusão física dos autos do inquérito, etc., ou seja, diversas medidas que buscam dar eficácia ao devido processo e criar condições reais de possibilidade de termos um juiz imparcial. Não dá mais para fechar os olhos para essa realidade, exceto se for uma cegueira convenientemente inquisitória e justiceira.

 


[1] FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia social. 3ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. p. 41.

[2] MOYA, Miguel. Percepción social y de personas. In: FRANCISCO MORALES, J. (coord.). Psicología social. Madrid: McGraw-Hill, 1994. p. 99.

[3] GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Trad. José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 90.

[4] RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Psicologia social. 28ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 63.

[5] “[…] la información recibida en primer lugar tiende a ser valorada con más peso que la información recibida posteriormente (esto es conocido como efecto primacía).” (BARON, Roberta A; BYRNE, Donn. Psicología social. 8ª ed. Trad. Montserrat Ventosa; Blanca de Carreras; Dolores Ruiz; Genoveva Martín; Adriana Aubert; Marta Escardó. Madrid: Prentice Hall Iberia, 1998. p. 72).

[6] ASCH, Solomon E. Psicologia social. 4ª ed. Trad. Dante Moreira Leite; Miriam Moreira Leite. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 182-183.

[7] ASCH, Solomon E. Psicologia social. 4ª ed. Trad. Dante Moreira Leite; Miriam Moreira Leite. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 182-183.

[8] KELLEY, Harold H. The warm-cold variable in the first impressions of persons. Journal of Personality, 18, p. 431-439, 1950.

[9] GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Trad. José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 93.

[10] KELLEY, Harold H. The warm-cold variable in the first impressions of persons. Journal of Personality, 18, p. 431-439, 1950.

[11] GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Trad. José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 93.

[12] FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia social. 3ª ed. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. P. 40.

[13] MICHENER, H. Andrew; DELAMATER, John D.; MYERS, Daniel J. Psicologia social. Trad. Eliane Fittipaldi; Suely Sonoe Murai Cuccio. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. p. 150-151.

[14] SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 205-221.

[15] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz>.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • Brave

    é advogado, especialista e mestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.

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