Opinião

Advogados de suspeitos de terrorismo sofrem com terrorismo do Estado

Autor

28 de julho de 2016, 6h26

Estamos acompanhando com afinco os desdobramentos da chamada operação hashtag, que prendeu mais de uma dezena de suspeitos de integrar uma suposta célula terrorista islâmica no Brasil. O caso é relevante não só pelo tema do terrorismo em si, mas também porque é a primeira aplicação prática da Lei Antiterrorismo, sancionada em janeiro deste ano pela presidente Dilma Rousseff.

Eis que neste sábado (23/7) leio no portal Uol a notícia que me deixou com mais pavor: advogados dos suspeitos presos não estão conseguindo ter acesso aos seus clientes[1]. Os suspeitos estão presos na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS) e, segundo o Ministério da Justiça, o impedimento de vê-los está justificado pela Portaria 4 da Diretoria do Sistema Penitenciário Nacional, que dispõe sobre “regras para o atendimento de advogados aos presos custodiados nas penitenciárias federais”.

Tal documento, datado de 28 de junho deste ano, pouco tempo antes portanto da deflagração da operação, dispõe que (i) advogados somente podem visitar seus clientes presos no sistema federal uma vez por semana, nas segundas, terças e sextas-feiras, pelo período máximo de uma hora; (ii) advogados sem procuração não podem entregá-la para assinatura diretamente ao preso, devendo enviar o documento para análise do departamento jurídico da unidade prisional, que teria dez dias para análise e entrega do documento ao custodiado.

Ora, diversas ilegalidade e inconstitucionalidades dignas de um Estado de exceção estão aí contidas: (i) limitação indevida ao direito à ampla defesa (artigo 5º, LV, da Constituição Federal) na medida que impossibilita o imediato acesso de advogados a seus representados; (ii) criação de incomunicabilidade de preso, vedada pela Constituição mesmo em Estado de defesa (artigo 136, §3º, IV, da Constituição Federal); (iii) violação expressa do direito do advogado de se comunicar com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, onde quer que se encontrem, mesmo que incomunicáveis, previsto em lei federal (artigo 7º, III, da Lei 8.906/94); e (iv) inovação indevida na ordem jurídica, na medida que submete um documento representativo de contrato particular à análise do Estado, sem base legal para tanto.

A limitação ao direito de defesa aparece muito clara, porque sem o instrumento procuratório o advogado não terá acesso aos autos que deram origem às prisões, não podendo tomar conhecimento das imputações, de seu lastro probatório e, principalmente, da legalidade dos decretos de prisão. O que a portaria faz, basicamente, é autorizar que a Polícia Federal prenda qualquer cidadão por dez dias ou mais sem precisar prestar contas a ninguém acerca dos motivos e da legalidade da prisão, já que ninguém terá acesso aos autos — sigilosos — para poder contestar. Basta que o preso seja enviado ao Sistema Penitenciário Federal e ele literalmente será da Polícia Federal por dez dias ou mais.

Já a incomunicabilidade é uma consequência prática da portaria, uma vez que nega o acesso de qualquer um ao preso. Aury Lopes Júnior, discorrendo sobre a previsão original de incomunicabilidade no Código de Processo Penal, diz que “o artigo 21 do CPP está revogado pelo artigo 136, § 3º, IV, da CB, posto que, se está vedada a incomunicabilidade em uma situação de excepcionalidade, com muito mais razão está proibida a incomunicabilidade em uma situação de normalidade constitucional”2. Com muita razão está o professor Aury, uma vez que o dispositivo constitucional em comento veda a incomunicabilidade de preso na situação excepcional de Estado de Defesa, e, por consequência lógica, veda-a também no Estado de normalidade constitucional, em que atualmente vivemos. Ademais, a previsão original da incomunicabilidade no Código de Processo Penal dependia de despacho de autoridade nos autos, fundamento no interesse da sociedade ou conveniência da investigação, ou seja, não é portaria genérica de autoridade administrativa que pode implicá-la.

Ainda que existisse incomunicabilidade do ponto de vista constitucional e legal, é fato que o advogado tem direito de “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”. Tal direito está expressamente previsto no artigo 7º, III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, criado por força da Lei Federal 8.906/94. E, é claro, é impossível que portaria de autoridade administrativa de sobreponha a texto expresso de lei, como está acontecendo no caso em comento. Não bastasse a literalidade da lei, o artigo 5º, §1º, do mesmo diploma, afirma que o advogado pode atuar sem procuração quando há urgência, desde que se obrigue a apresentá-la no prazo de 15 dias, prorrogável por igual período.

Para arrematar, não há o mínimo porquê em exigir a análise da procuração por departamento jurídico de instituição prisional nenhuma. A procuração é o instrumento de contrato particular, o contrato de mandato, conforme disciplinado nos artigos 653 e ss do Código Civil. Contrato esse que se opera apenas entre o cliente e seu defensor, sem interferência de terceiros para o que quer que seja. Eventuais incompletudes, ilegalidades e incompatibilidades do instrumento de mandato em casos que tais só podem ser declaradas pela via judicial, sem que autoridade administrativa de nenhuma espécie se imiscua. No dia a dia do trabalho do criminalista jamais autoridade policial pediu para examinar a legalidade de procuração ainda não assinada, limitando-se a exigir sua exibição apenas quando já constituída, como é óbvio.

Diante de tamanha ilegalidade e inconstitucionalidade, vemos na operação hashtag que aparentemente o verdadeiro terrorista até agora é o Estado, por meio da Polícia Federal e pelo Departamento do Sistema Penitenciário Federal. O que esses órgãos têm a esconder da população a ponto de negarem acesso de advogados a presos e, consequentemente, aos autos da operação? O que eles têm a temer? Como disse o ex-deputado Adriano Diogo, ex-presidente da Comissão da Verdade Paulista, essa operação “é uma história muito mal contada”.[3]


2Direito Processual Penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 154.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!