Opinião

Bom senso deve nortear o representante do Ministério Público

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26 de julho de 2016, 7h17

Sou de um tempo em que o Ministério Público buscava atuar nos autos e o seu representante não se dava ao luxo de escolher determinadas demandas para funcionar, porquanto a instituição ainda buscava seu lugar ao sol na Constituição da República. Muitos anos se passaram e o parquet ganhou relevo no cenário nacional, até chegar aos dias de hoje, onde se pode cognominá-lo em um “Ministério Público Lava-Jato”, na medida em que o avanço tecnológico proporcionou melhores meios para levar a efeito sua investigação.

Já naquela ocasião existiam os promotores tribunos (a Justiça Federal estava engatinhando) que se vangloriavam de terem conseguido tantos anos de penas aos réus, lembrando os velhos justiceiros que consignavam na coronha de seus revólveres quantas mortes haviam alcançando. Ora, esse não é o perfil de um Ministério Público que a sociedade reclama, pois o que interessa é um representante do parquet justo e honesto, visto que são essas características que engradecem a instituição.

Hugo Nigro Mazzilli, um dos grandes representantes do Ministério Público bandeirante, em trabalho inserto na Revista Justitia do Ministério Público de São Paulo, ano 2007, 197, 287-292, traça o perfil do representante do parquet, dando ênfase no dever de agir, isto é, na obrigatoriedade de propor ação pública ou de intervir no processo, salvo quando a lei assim lhe facultar.

Todavia, ao meu ver, a par desses requisitos anteriormente expostos, um pormenor que reputo de grande valia é o requisito do bom senso, porquanto sem esse atributo o promotor de justiça ou procurador da república não vai exercer a contento o seu mister, pois tal característica é de ser utilizada já nas suas primeiras manifestações, isto é, desde a fase administrativa do procedimento. Noutras palavras, o bom senso deve nortear o representante ministerial desde a fase investigatória perante a autoridade policial até o final da instrução criminal em juízo.

Nunca compartilhei da ideia de que o Ministério Público deva postular o máximo que puder para, se for o caso, conseguir o mínimo nos processos em que atua. Ele deve buscar, isto sim, o que lhe é de direito, pois agindo desta maneira atenderá, de uma só vez, à sua consciência jurídica, como também tranquilizará o magistrado que, ao receber o requisitório inicial, saberá que quem a ofereceu não fez um exame perfunctório dos elementos de convicção amealhados para o bojo do caderno processual; antes, pelo contrário, proporcionará a sensação de que ocorreu um exame criterioso dos indícios e provas que o fez solicitar, em medida justa, o que lhe era de direito.

Faço esse introito porque tenho sido questionado nos meios sociais que convivo, ante a tomada de posição do Ministério Público mineiro no caso da apresentadora Ana Hickmann, amplamente divulgado por toda a imprensa escrita, falada e televisionada. Fui indagado se a tomada de posição do Ministério Público do Estado de Minas Gerais foi correta em não atender à sugestão de arquivamento do delegado de polícia e, via de consequência, ter oferecido requisitório inicial contra o cunhado da mencionada apresentadora. Rememorando os fatos, Ana Hickmann e sua equipe acabavam de se instalar em um hotel em Belo Horizonte na tarde de 21 de maio, quando inesperadamente e de inopino o quarto foi invadido por um fanático fã que, de arma em punho, disparava a esmo, chegando a atingir com dois tiros uma pessoa da trupe, quando então, em atitude extrema, Gustavo Correa, pondo em risco a sua própria vida, atracou-se com o lunático, desarmando-o e vindo a mata-lo durante a confusão. Esse, em abreviada síntese, é o quadro que se desenrolou no palco dos acontecimentos.

Sei que muito se discute na doutrina jurídica sobre o excesso da legítima defesa, mas esse questionamento social me remeteu ao início da década de 70 e à minha querida Faculdade de Direito, em que meu saudoso professor de direito penal Edgard de Magalhães Noronha, ao ensinar sobre a matéria, posicionava-se no sentido de que para fixação ou não do excesso da legítima defesa, isto é, aquela diferença existente entre duas qualidades, deveria prevalecer o bom senso além dos requisitos legais.

Confesso que na primeira hora tal discurso me colocou um ponto de interrogação na cabeça, pois aquela explicação era muito para um aluno neófito que acabara de iniciar o curso de direito. Impetuoso, questionei-o para que explicasse melhor, quando então me disse com todas as letras: “meu jovem, como tudo na vida, deve ser utilizado o bom senso, sobretudo no direito”.

Depois de mais de 40 anos de efetivo exercício de Ministério Público e Magistratura no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, confesso que o bom senso foi o melhor companheiro que tive no direito. Mas mesmo o bom senso deve se amparar em algum critério, a fim de que não fique a mercê do subjetivismo. Destarte, o critério adotado é o chamado de “homem médio”.

Voltando a nossa óptica para o caso da Ana Hickmann, conquanto existam vários requisitos para se apurar a possibilidade de excesso da legítima defesa, forçoso convir que Gustavo, expondo a sua própria vida em defesa da apresentadora e dos demais presentes no locus delicti, por conta do inesperado quadro que se pintava à sua frente, fez saltar fora seu extremo temor, em virtude do perigo grave que reinava no ambiente — uma pessoa totalmente desconhecida que entrou no quarto atirando —, evitando com seu agir a ocorrência de uma tragédia ainda maior.

Ora, é evidente que se instalou no instante dos fatos uma clara perturbação de ânimos, o que exclui, em tese, a responsabilidade do agente, conforme previsto no parágrafo único do artigo 45 do Código Penal Militar. Embora o nosso diploma repressivo comum não faça alusão a esse tipo de excludente, destaca-se que é muito mais apropriado aplicá-la a uma pessoa comum do que a um agente da justiça castrense, eis que o cidadão comum não convive com a violência e com a morte em razão da lufa-lufa cotidiana, daí por que, não sendo habituado a tais circunstâncias, merece a aplicação, como fonte do direito, do já descrito parágrafo único do artigo 45 do Código Penal Militar, conforme posicionamento atual da doutrina e jurisprudência em ocorrências que tais.

Teria o promotor de justiça ao oferendar denúncia contra Gustavo Correa agido com bom senso para evitar a desnecessária instauração de processos criminais, cujas circunstâncias apontem nitidamente para o reconhecimento do instituto da legítima defesa?

Esta é a questão.

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