Paradoxo da Corte

Considerações sobre o precedente judicial ultrapassado

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26 de julho de 2016, 8h05

Durante toda a evolução histórica da atividade judicial, a força vinculante das decisões sofreu profundas alterações, sendo correto afirmar que, hoje, nem mesmo a House of Lords — a Suprema Corte do Reino Unido — encontra-se absolutamente adstrita às suas próprias decisões.  

Aduza-se que, sob tal perspectiva, as técnicas do overruling (common law) e do revirement (civil law) representam situações específicas e excepcionais com o escopo de excluir do ordenamento jurídico determinado precedente, marcado pela obsolescência, para substituí-lo por outro, atual, mais condizente com as exigências sociais, que melhor se ajuste à hipótese sub examine.

Em princípio, nos sistemas dominados pelas regras do common law, todo precedente deve ser considerado nos julgamentos futuros de casos análogos.

Schauer, discorrendo sobre a eficácia vinculante, ínsita às rules of law moldadas nos pretéritos julgamentos, assevera que, paradoxalmente, as cortes de Justiça, em princípio, têm o dever de seguir o precedente não apenas quando imaginam estar ele correto, mas, ainda, quando entendem que o precedente emerge incorreto (Thinking like a Lawyer, 1ª reed., Nova Deli, Universal, 2010, p. 41).

Todavia, a inexorável evolução do Direito determinada pela dinâmica da sociedade dos países que se orientam pela doctrine of binding precedent permite que, em certas circunstâncias, venha oposta exceção à referida regra.

Apontando as causas de superamento de determinada tese jurídica, Patrícia Perrone Campos Mello, em sua sólida pesquisa sobre esta temática, destaca que o precedente judicial perde normalmente a seu status quando: a) desponta contraditório; b) torna-se ultrapassado; c) é colhido pela obsolescência em virtude de mutações jurídicas; ou, ainda, d) encontra-se equivocado. Assinala, a propósito, que tais fatores conduzem, em síntese, a “duas razões para se revogar um precedente: sua incongruência social e sua inconsistência sistêmica. A incongruência social alude a uma relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e os standards sociais; corresponde a um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas dos cidadãos. Ela é um dado relevante na revogação de um precedente porque a preservação de um julgado errado, injusto, obsoleto até pode atender aos anseios de estabilidade, regularidade e previsibilidade dos técnicos do Direito, mas aviltará o sentimento de segurança do cidadão comum”. Já a ideia de inconsistência sistêmica aponta para uma desarmonia entre as diversas regras que compõem um determinado ordenamento jurídico (Precedentes, Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 237 ss.).

Com efeito, as cortes superiores podem então substituir — overruled — um determinado precedente por ser considerado ultrapassado ou, ainda, errado (per incuriam ou per ignorantia legis). A decisão que acolhe nova orientação incumbe-se de revogar expressamente a ratio decidendi anterior (express overruling). Nesse caso, o antigo paradigma hermenêutico perde todo o seu valor vinculante.

É possível também que, sem qualquer alusão ao posicionamento jurisprudencial assentado, a nova decisão siga diferente vetor. Tem-se aí, embora mais raramente, uma revogação implícita do precedente (implied overruling), similar à ab-rogação indireta de uma lei. Anote-se que, ainda na Inglaterra, a Court of Appeal, por exemplo, não tem a prerrogativa de revogar implicitamente as suas próprias decisões. Se porventura proferir julgamento substancialmente divergente de anterior pronunciamento, em caso análogo, sem manifestar a intenção clara de revogar o precedente, será criada uma duplicidade de orientações, gerando evidente incerteza para as cortes inferiores, até que a House of Lords intervenha para fixar qual ratio decidendi deve prevalecer (cf. G. Moretti, La dottrina del precedente giudiziario nel sistema inglese, Contratto e impresa, obra coletiva dir. F. Galgano, Padova, Cedam, 1990, p. 57).

Distinguem-se ainda, como exceção à regra do precedente vinculante:

a) a retrospective overruling: quando a revogação opera efeito ex tunc, não permitindo que a anterior decisão, então substituída, seja invocada como paradigma em casos pretéritos, que aguardam julgamento;

b) a prospective overruling: instituída pela Suprema Corte americana, na qual o precedente é revogado com eficácia ex nunc, isto é, somente em relação aos casos sucessivos, significando que a ratio decidendi substituída continua a ser emblemática, como precedente vinculante, aos fatos anteriormente ocorridos;

c) a anticipatory overruling: introduzida, com inescondível arrojo, pelos tribunais dos Estados Unidos. Consiste na revogação preventiva do precedente, pelas cortes inferiores, ao fundamento de que não mais constitui good law, como já teria sido reconhecido pelo próprio tribunal ad quem. Basta portanto que na jurisprudência da corte superior tenha ocorrido, ainda que implicitamente, uma alteração de rumo atinente ao respectivo precedente. Ocorre aí “uma espécie de delegação tácita de poder para proceder-se ao overruling” (Sartor, Precedente giudiziale, Contratto e impresa, cit., 1995, p. 1.345-1.346).

É certo que todos esses mecanismos estão a evidenciar que a força vinculante do precedente não impede que uma determinada tese dominante, antes sedimentada, possa ser superada, passando-se a um novo processo de “normatização pretoriana”. A mutação progressiva de paradigmas de interpretação de um determinado episódio da vida, dotado de relevância jurídica, sempre veio imposta pela historicidade da realidade social, constituindo mesmo uma exigência de justiça.

Saliente-se que o superamento do precedente judicial, pelas mesmas razões supra alinhadas, igualmente se observa nos sistemas de civil law.

Seja como for, acerca desse assunto, deve ter-se presente que a abrupta alteração dos rumos da jurisprudência acarreta, em regra, gravíssimas consequências no plano da dinâmica do Direito, visto que: a) vulnera a previsibilidade dos pronunciamentos judiciais; e, de resto, b) produz inarredável insegurança jurídica.

Desse modo, para evitar esses sérios inconvenientes, é que foi instituída a denominada prospective overruling. Nesse sentido, o mecanismo da modulação dos efeitos constitui importantíssimo instrumento técnico, a ser prestigiado pelo legislador e pelos tribunais. De fato, o novo Código de Processo Civil consagra expressamente a modulação no artigo 927, parágrafo 3º: “Na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamentos de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Ressalta, a esse respeito, Marinoni, que: “Quando nada indica provável revogação de um precedente, e, assim, os jurisdicionados nele depositam confiança justificada para pautar suas condutas, entende-se que, em nome da proteção da confiança, é possível revogar o precedente com efeitos puramente prospectivos (a partir do trânsito em julgado) ou mesmo com efeitos prospectivos a partir de certa data ou evento. Isso ocorre para que as situações que se formaram com base no precedentes não sejam atingidas pela nova regra” (Eficácia temporal da revogação da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, Revista dos Tribunais, v. 906, 2011, p. 259).

Ademais, o “abandono” do precedente, sobretudo no ambiente de uma experiência jurídica dominada pelo case law, exige do órgão judicial uma carga de argumentação que supõe não apenas a explicação ordinária das razões de fato e de direito que fundamentam a decisão, mas, ainda, justificação complementar. Essa imposição natural é geralmente esclarecida pelo denominado princípio da inércia, segundo o qual a orientação já adotada em várias oportunidades deve ser mantida no futuro (por ser presumivelmente correta, pelo desejo de coerência e pela força do hábito). Não pode, pois, ser desprezada sem uma motivação consistente e justificada.

No Direito norte-americano, tanto a Suprema Corte quanto os tribunais superiores dos respectivos estados, ao longo da história, reveem seus precedentes quando manifestamente equivocados ou ultrapassados. Encontra-se expressivo exemplo da prática do overruling em uma conhecida situação na qual um consumidor acionou um fabricante de automóveis visando a receber indenização por danos pessoais, resultantes de defeito no carro. O tribunal de apelação reformou a sentença de primeiro grau, eximindo o fabricante de qualquer responsabilidade em relação ao demandante, porque este não era o comprador original. O automóvel havia sido adquirido de um terceiro (Johnson v. Cadillac Motor Co.). Ocorre que, posteriormente, por força de um writ of error (espécie de ação rescisória), a mesma corte, reexaminando a orientação que antes prevalecera e desconsiderando o caráter privado do contrato, julgou procedente o pedido de indenização, isto é, favorável ao consumidor, com fundamento em precedente do Tribunal de Apelação do Estado de New York (Mac Pherson v. Buick Motor Co.).

No Brasil, dentre muitos outros, exemplo clássico de superamento pretoriano decorre da evolução cultural atinente ao crime de adultério, dado o completo desuso do correlato impedimento matrimonial entre o cônjuge adúltero e o corréu e, consequentemente, a incongruência de toda a tendência jurisprudencial que se consolidara sobre tal questão, até ser aquele óbice completamente abolido da redação do artigo 1.521 do Código Civil de 2002.

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