Academia de Polícia

Sigilo e colaboração premiada na
visão do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

26 de julho de 2016, 11h50

Spacca
Já tivemos a oportunidade de tratar do tema da colaboração premiada aqui nesta coluna (Colaboração premiada e legitimidade do delegado de polícia). Nesta semana, nosso objetivo é tratar da questão do sigilo, sob a perspectiva dos entendimentos já firmados pelo Supremo Tribunal Federal, ao fixar o regime do sigilo imposto pela Lei 12.850/2013. Como se sabe, de acordo com a previsão no artigo 4° da Lei n° 12.850/2013, a colaboração premiada pode ter cinco objetivos:

I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

O sigilo é um dos elementos fundamentais que podem garantir a efetividade ou não de um acordo de colaboração premiada, visando sobretudo que possam ser alcançados os objetivos previstos em lei.  Num claro exemplo acerca da importância do sigilo, um colaborador que venha a revelar a localização da vítima ou mesmo do produto do crime, caso tal revelação não seja mantida em sigilo, fatalmente impedirá o seu alcance. Por óbvio, a palavra do colaborador não serve, com exclusividade, para amparar condenação penal mas deve sim, ser utilizada como ponto de partida ou atalho para a busca de elementos de prova que possam corroborar as suas declarações do colaborador. Portanto, a natureza do instituto trata-se de um meio de obtenção de prova (conforme decidido no HC 127.483), cuja característica primeira, segundo Tonini[1], é o elemento surpresa.

Com o objetivo de assegurar o sigilo da colaboração, a lei estabeleceu diversas cautelas a serem adotas pelas autoridades envolvidas no procedimento quando de sua judicialização, desde o protocolo, até mesmo a manutenção do sigilo após a homologação:

Art. 7º  O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto.

Uma vez firmado o acordo e adotadas as providências dele decorrentes (colheita de termos de declarações do colaborador, apresentação de documentos, etc), deve o instrumento ser submetido à homologação judicial, em procedimento sigiloso. De acordo com a redação do artigo, deve o procedimento ser distribuído apenas com informações preliminares, sem que sequer seja permitido a identificação do colaborador.

Tal medida, por outro lado, nos parece deixar de ser necessária na grande maioria dos casos, uma vez que já há dependência a outros procedimentos em andamento, uma vez que a colaboração ocorre, em regra, a partir de um inquérito policial instaurado, ou mesmo de uma ação penal, havendo, portanto, um juiz competente para apreciação do pedido de homologação.

 Ainda sobre o sigilo, a lei dispõe que, uma vez distribuído o pedido de homologação do acordo de colaboração premiada, caso não se faça acompanhado da íntegra das informações obtidas, conforme previsto no caput, as informações devem ser apresentadas pelo Ministério Público ou pelo delegado de polícia no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, diretamente ao juiz a quem recaia a distribuição.

Os autos do pedido de homologação do acordo de colaboração premiada terão seu acesso restrito ao Juiz, ao membro do Ministério Público e ao Delegado de Polícia, como forma de garantir o sigilo. No caso do defensor, o mesmo deve ter acesso aos elementos necessários ao exercício do direito de defesa de seu cliente. Entendemos aqui que o direito de acesso somente diz respeito à defesa do colaborador, uma vez que o acesso por parte de terceiros interessados (citados pelo colaborador) deve ser garantido apenas após eventual recebimento de denúncia, nos termos do §3°, conforme disposição legal expressa:

§ 3º  O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5o.

Importante aqui destacar que não deixa de ser sigiloso todo o procedimento, mas apenas a existência de um acordo de colaboração devidamente homologado e eventuais termos de declarações que embasam a denúncia enquanto peça inaugural da ação penal.

Por outro lado, nada impede que, havendo justo motivo ou realizadas as diligências necessárias no sentido de confirmar os elementos trazidos pelo colaborador, seja o sigilo dos autos levantado. Ademais, é importante destacar que, muitas vezes, há necessidade de realização de diversas diligências cautelares de busca de elementos de prova, a partir dos elementos indicados pelo colaborador, a fim de corroborar suas afirmações, como por exemplo quebras de sigilo bancário e fiscal, interceptações telefônicas e telemáticas, medidas de busca e apreensão, entre outras.

Assim, uma vez realizadas essas diligências de caráter cautelar, entendemos que não subsiste razão para o sigilo quando embasem a decretação de medidas cautelares reais e pessoais em relação a investigados indicados pelo colaborador, mesmo que ainda não recebida a denúncia a fim de assegurar a ampla defesa, como por exemplo, em caso de decretação de prisão preventiva ou temporária.

Acerca do presente artigo, o ministro Roberto Barroso se manifestou pela imposição do sigilo às comissões parlamentares de inquérito, em decisão de 18 de novembro de 2014, no MS 33278-DF, onde manteve entendimento já expresso pelo ministro Teori Zavascki, no sentido de que, antes do recebimento da denúncia, o acesso aos depoimentos colhidos em regime de colaboração premiada é restrito ao juiz, ao membro do Ministério Público, ao delegado de polícia e aos defensores que atuam nos autos, excluindo-se outras autoridades, ainda que com hierarquia e poderes semelhantes (art. 7º da Lei nº 12.850/2013):

Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JURISDICIONAL. COLABORAÇÃO PREMIADA. SIGILO. OPONIBILIDADE A CPMI. AUSÊNCIA DE TERATOLOGIA. 1. Não cabe mandado de segurança contra ato jurisdicional, a não ser que se trate de decisão teratológica, o que não é o caso. 2. É plausível a tese segundo a qual, antes do recebimento da denúncia, o acesso aos depoimentos colhidos em regime de colaboração premiada é restrito ao juiz, ao membro do Ministério Público, ao delegado de polícia e aos defensores que atuam nos autos, excluindo-se outras autoridades, ainda que com hierarquia e poderes semelhantes (art. 7º da Lei nº 12.850/2013). 3. Writ a que se nega seguimento.

[…]

16. O sigilo previsto no art. 7º da Lei nº 12.850/2013, portanto, é instituído “como forma de garantir o êxito das investigações” (§ 2º), e, por isso mesmo, vale apenas temporariamente, até o recebimento da denúncia (§ 3º). Como se percebe, o sigilo é da essência da investigação.

17. Portanto, está longe de ser teratológica a interpretação segundo a qual, até o recebimento da denúncia, o acesso aos depoimentos colhidos em regime de colaboração premiada é restrito ao juiz, ao membro do Ministério Público, ao delegado de polícia e aos defensores que atuam nos respectivos autos. Isto porque a divulgação de dados durante o período crítico que antecede o recebimento da denúncia – ainda que para autoridades com hierarquia e poderes semelhantes – poderia comprometer o

sucesso das apurações, bem como o conteúdo dos depoimentos ainda a serem colhidos e a decisão de eventuais envolvidos em colaborar ou não com a Justiça.

Por outro lado, o STF tem entendido que o sigilo pode ser mitigado em determinadas circunstâncias, conforme decidido na Petição 5.952-DF, pelo ministro Teori Zavascki, em 16 de março de 2016:

4. Por fim, nada impede o levantamento do sigilo, tal como evocado pelo aditamento de fls. 243‐250. É que a Constituição proíbe restringir a publicidade dos atos processuais, salvo quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (art. 5º, LX), e estabelece, com as mesmas ressalvas, que a publicidade dos julgamentos do Poder Judiciário é pressuposto inafastável de sua validade (art. 93, IX). Não há, aqui, interesse social a justificar a reserva de publicidade. É certo que a Lei 12.850/2013, quando trata da colaboração premiada em investigações criminais, impõe regime de sigilo ao acordo e aos procedimentos correspondentes (art. 7º), sigilo que, em princípio, perdura até a decisão de recebimento da denúncia, se for o caso (art. 7º, § 3º). Essa restrição, todavia, tem como finalidades precípuas (a) proteger a pessoa do colaborador e de seus próximos (art. 5º, II) e (b) garantir o êxito das investigações (art. 7°, § 2º). No caso, o colaborador já teve sua identidade exposta publicamente e o desinteresse manifestado pelo órgão acusador revela não mais subsistir razões a impor o regime restritivo de publicidade.

No mesmo sentido também a decisão na Pet. 5.899-DF, da lavra do ministro Teori Zavascki, em 2 de março de 2016, no sentido de que o regime de sigilo previsto pela Lei 12.850/2013 tem como finalidades precípuas a proteção à pessoa do colaborador e garantir o êxito das apurações. Uma vez o órgão acusador manifestado o desinteresse pelo sigilo e a exposição pública do colaborador, inexistem razões para subsistir o sigilo.

Ainda sobre o sigilo vale destacar a decisão monocrática do ministro Teori Zavascki, de 11 de dezembro de 2015, na Pet. 5.790-DF, em que há longo arrazoado acerca do tema do sigilo dos termos de colaboração premiada[2], transcrita a partir da manifestação do Procurador Geral da República, com a diferenciação entre o sigilo endoprocessual e extraprocessual:

    “[…]  A primeira parte do art. 7º, § 3º, da Lei 12.850 trata do sigilo endoprocessual, ou seja, para as demais partes do processo, em especial para os atingidos pela colaboração. Por isso, dispõe que o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia (este, o limite máximo para a manutenção do sigilo do acordo). O foco, no caso, é o direito daqueles que foram atingidos pelo conteúdo do acordo, buscando maximizar (embora diferido) o contraditório e a ampla defesa. Em tal caso, o termo final do sigilo é o recebimento da denúncia. A partir desse instante, o acordo e seus desdobramentos tornam-se, necessariamente, públicos para os réus incriminados ou referidos pela colaboração (ao menos em relação àqueles termos pertinentes, que foram substrato para o oferecimento da denúncia). Mas é importante destacar que, conforme dito, trata-se de um termo final máximo.

 […]

    Por sua vez, outra coisa diz respeito ao sigilo extraprocessual (publicidade externa) – ou seja, a possibilidade de os cidadãos acompanharem ou não o processo. Também aqui incide princípio da publicidade, que se plasma, nas palavras de Ferrajoli, numa garantia das garantias ou garantia de segundo grau, ou seja, pois representam instrumentos pelos quais se assegura o controle sobre a efetividade das demais garantias. Em nosso ordenamento constitucional, a exceção à publicidade dos atos processuais somente deve ser admitida pela lei quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, conforme dispõe o art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal.

    No caso, a Lei 12.850/2013 dispõe, no art. 5º – expressamente referido no art. 7º, § 3º – que o colaborador tem o direito a ter seu nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados, assim como não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito. Estes seriam os motivos que poderiam justificar a manutenção do sigilo extraprocessual, focados na preservação da intimidade e imagem do colaborador.”

Em resumo, a posição do Supremo Tribunal Federal em relação ao sigilo é a de que, em princípio, o mesmo perdura até a decisão de recebimento da denúncia, nos termos do artigo 7º, § 3º. No entanto, essa restrição tem como finalidades a proteção da pessoa do colaborador e de seus próximos (artigo 5º, II) e a garantia do êxito das investigações (artigo 7°, § 2º).

Para o STF, uma vez que os colaboradores, que respondem, por exemplo, a outras ações penais com denúncia recebida, e já tiveram sua identidade exposta publicamente e o órgão ministerial se manifesta pelo levantamento, não mais subsistem as razões que impunham o regime restritivo de publicidade[3].

Ao tratar da questão da divulgação de depoimento em acordo de colaboração premiada por veículo de imprensa, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet. 5.220-DF, em 19 de novembro de 2014, pelo ministro Teori Zavascki, decidiu que, ainda que tenha ocorrido a divulgação, por veículo de imprensa, de eventuais termos, ainda assim não cabe a baixa do sigilo, por imposição da própria Lei 12.850 que estabelece que o acesso aos documentos relativos ao acordo de colaboração é restrito aqueles que dela participam.

Por fim, cabe destacar que a imposição do sigilo é medida fundamental visando assegurar o bom andamento das investigações visando a concreta obtenção de elementos de prova que corroborem as declarações do colaborador e assegurando, com isso, maior eficiência do instituto. Entendimento contrário significa grande prejuízo à própria eficácia do instituto.


[1] TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Trad: Alexandra Martins e Daniela Mróz. São Paulo: RT, 2002, p. 242-243.
[2] Decisão semelhante também proferida pelo Min. Teori Zavascki em 09/12/2015 na Pet. 5779-DF.
[3] Como por exemplo, as decisões nas Pet. 5263-DF, Agravo regimental na petição, decidido em 16/03/2015 e Petições 5208-DF, 5209-DF, 5244-DF e 5245-DF, decididas em 06/03/2015, todas do Min. Teori Zavascki.

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